Prédica: 1 Coríntios 1.4-9
Autor: Werno Stiegemeier
Data Litúrgica: 18º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 05/10/1980
Proclamar Libertação – Volume: V
I – Texto
1. Tradução
V.4: Sempre agradeço a meu Deus, por causa de vós, pela graça de Deus que vos foi dada em Cristo Jesus,
V.5: que em tudo fostes enriquecidos nele, em toda palavra e todo conhecimento,
V.6: já que foi confirmado em vosso meio o testemunho de Cristo,
V.7: assim que não vos falte dom algum, a vós que esperais a revelação de nosso Senhor Jesus Cristo;
V.8: o qual também vos confirmará até o fim, para serdes livres de acusação no dia de nosso Senhor Jesus Cristo.
V.9: Fiel é Deus, pelo qual fostes chamados para a comunhão de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor.
2. Considerações exegéticas
Paulo inicia suas epístolas com uma saudação, a qual normalmente vem seguida por uma ação de graças, conhecida por proêmio. Com esta sua maneira de começar as cartas, o apóstolo segue o estilo epistolar conhecido na antiguidade. Ele, no entanto, adapta esse modelo a seu próprio sistema, utilizando-se do molde de orações judaicas. Não se trata, portanto, de mera formalidade, nem de um gesto de cordialidade. O proêmio é uma sincera oração de agradecimento, que também já está a serviço da proclamação do evangelho.
Antes de dirigir-se diretamente aos coríntios, Paulo agradece, em sua carta, pela graça de Deus que foi experimentada pela comunidade. Esta é uma constatação significativa, pois a ação de Deus em favor dos homens sempre está em primeiro lugar. Antes que o homem pense em fazer alguma coisa por sua salvação, Deus já o fez. E quem agradece conscientiza-se sempre de novo desse fato. Por isso, é importante que os cristãos agradeçam antes de fazer qualquer coisa. Procedendo assim, estarão dando a honra a Deus.
Fica claro, portanto, que o apóstolo não tem a intenção de glorificar e exaltar qualidades ou capacidades humanas. Ele tem em vista a graça de Deus, da qual vive a comunidade.
Essa afirmação responde uma pergunta que, muitas vezes, já foi levantada: como explicar o proêmio de 1 Co em relação a outras passagens dessa mesma carta, nas quais Paulo critica severamente o procedimento dos coríntios? O apóstolo os estaria elogiando com a intenção de preparar o caminho para as futuras críticas? Essa pergunta seria válida, caso se tratasse de um elogio pelo comportamento exemplar da comunidade. No entanto, o objetivo dessa oração é outro, ou seja, a glorificação de Deus, o qual, por sua graça, chamou essa comunidade à vida.
Graça sempre é uma dádiva. Isto o próprio termo já expressa. Mesmo assim, usou-se ainda o passivo de DIDONAI (dar) para acentuar e reforçar o caráter da XARIS como uma dádiva, um presente. E esta graça sempre é dada em Cristo. Isto significa que ela não pode ser experimentada como simples fenómeno psicológico dentro do homem, mas em Cristo, portanto, fora de nós, no evento de Cristo e na palavra do evangelho (Brakemeier, p. 16).
No v.5 é mostrado como a graça de Deus se manifesta concretamente. Trata-se de uma amostra dos dons experimentados pela comunidade. LOGOS (palavra) e GNÕSIS (conhecimento) são dois dons importantes para o desenvolvimento espiritual dos coríntios. Nos capítulos posteriores, Paulo critica a atitude deles perante esses dons (cf. 1.18sse 8.1ss).
O agradecimento desemboca na contemplação da revelação de Jesus Cristo, no fim dos tempos (v.7b e 8). A riqueza espiritual da comunidade não é a plenitude. A realidade do presente é apenas uma amostra do porvir. A existência de dons ainda não significa que o ESXATON já se tenha concretizado. As erupções carismáticas são o penhor para a segunda vinda do Senhor. A comunidade do presente vive sob a luz daquilo que haverá de ser, quando Jesus se revelar na consumação dos séculos. Jesus não é apenas aquele que veio e está presente no espírito. É sempre também aquele que há de vir. (Wendland, p. 17) Por isso, a comunidade ainda está a caminho, esperando ansiosamente pela revelação de Jesus no fim dos tempos. Os coríntios, porém, ao que tudo indica, não vivem dessa esperança cristã. Eles se orgulham e vangloriam, como se já tivessem alcançado a perfeição e como se não tivessem mais nada a esperar. Assim, ao incluir a perspectiva escatológica no final do proêmio, Paulo certamente tem a intenção de chamar a atenção deles, despertando-os para esta realidade por eles ignorada.
As expressões revelação de nosso Senhor Jesus Cristo e dia de nosso Senhor Jesus Cristo são usadas para designar o segundo advento de Cristo. Dia do Senhor é uma expressão escatológica empregada pelos profetas do AT. Paulo a transferiu para a pessoa de Cristo, já que Deus lhe confiou a proclamação de seu senhorio. Maiores esclarecimentos sobre este dia são dados no cap. 15.
Como toda a vida espiritual da comunidade é fruto da graça de Deus, assim também a irrepreensibilidade até o fim não depende de seu próprio esforço, de seus carismas, mas sini da confirmação de Deus (cf. Conzelmann, p. 42. – Wendland, p 17). Este reconhecimento impossibilita a vanglória e qualquer entusiasmo religioso, pois, vista sob o prisma de suas próprias realizações, a comunidade é imperfeita. A perfeição somente lhe poderá ser atribuída por Deus mesmo. Ele é fiel. A sua vontade é sempre a mesma. Ele concluirá a obra que já foi iniciada.
A confiança em Deus tem sua base na vocação para a comunhão de Jesus Cristo. Esta comunhão é uma realidade presente, pois a vocação já aconteceu. E é dessa ação de Deus que a comunidade vive. Ela espera pela vinda de seu Senhor, como comunidade que está inseparavelmente unida com ele. Ela conhece o Senhor, pelo qual espera (Wendland, p. 17). Ela participa do sofrimento do crucificado e, ao mesmo tempo, já vive sob a luz da glória do ressurreto.
3. Escopo
A riqueza espiritual da comunidade é graça de Deus e não fruto de suas próprias realizações. Por isso, é Deus o destinatário da ação de graças. Mas a espiritualidade, que realmente existe na comunidade, ainda não é a perfeição. Ela vive, no presente, sob a luz daquilo que há de ser na revelação de Jesus Cristo no fim dos tempos.
II – Meditação
1. Apesar das deficiências e falhas constatadas na comunidade de Corinto, Paulo encontroumotivos para agradecer a Deus. Mesmo vendo os fracassos humanos, seu olhar conseguiu alcançar a ação de Deus. A graça de Deus fora ricamente experimentada pela comunidade. Isso era o importante. Também nos dias de hoje não encontramos comunidades das quais se pudesse dizer que são perfeitas. Por isso pergunto: Será que diante desse fato somos capazes de descobrir as coisas boas? Conseguimos ver a ação de Deus, apesar de todas as deficiências humanas? Acredito que muitas vezes a nossa atitude é a de pessoas que só sabem criticar. Talvez nossas comunidades às vezes não cresçam e não se desenvolvam justamente por falta de reconhecimento. Pode-se fazer a comparação com a educação de uma criança. Aquela que só ouve observações negativas a seu respeito, afinal vai adotar um comportamento equivalente. Agradecer a Deus pelo início de sua obra numa comunidade, certamente não fará mal. Quem sabe, até se possa praticar isso um pouco no culto que tem o presente texto como base para a pregação?!
2. O reconhecimento das coisas boas não deve ser um elogio diretamente dirigido à comunidade. Para isso o texto não nos conduz. Isso também dificultaria o reconhecimento de que tudo depende da graça de Deus. Pois, para a maioria das pessoas, essa é uma constatação difícil de ser aceita. Elas procuram acentuar suas próprias realizações. Muitos se orgulham quando podem falar, ao novo pastor, de seu esforço em favor da comunidade. Por isso é importante que se acentue sempre de novo a graça de Deus. Tudo o que somos e podemos fazer, devemos a ela. Foi Deus quem nos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz. E tudo isso através do evento salvífico de Jesus Cristo.
3. Deve-se dizer que há comunidades, nas quais praticamente não existe manifestação de vida espiritual. O que pensar delas? Não foi dada a elas a graça de Deus? Sabemos que Deus não faz acepção de pessoas. Por isso ele certamente dá a mesma oportunidade a todas. Acontece, porém, que há pessoas que foram agraciadas pela palavra e pelo conhecimento, mas ainda não estão vivendo a nova vida que receberam. Isso quer dizer: elas ainda não estão vivendo de acordo com aquilo que, na verdade, já são pela graça d« Deus (exemplo: pessoas batizadas que não vivem seu batismo).
4. No que se refere à perspectiva escatológica, a situação de hoje. em geral, é diferente do que na época em que foi escrita a Primeira Carta aos Coríntios. A meu ver, dificilmente se encontra uma comunidade da qual se possa afirmar que esteja em plena posse da salvação. A maioria sabe que neste mundo nada é perfeito. Mesmo que se esteja satisfeito com o crescimento espiritual de um grupo, sabe-se sempre que ainda não é aquilo que há de ser. Existem, no entanto, dois outros grupos, cuja atitude deve ser abordada no presente contexto: a) aqueles que afirmam que o reino de Deus deve ser edificado, pelos cristãos, neste mundo; b) aqueles que não se importam com este mundo e seus problemas, tendo o consolo de que no céu tudo vai ser melhor.
a) Os representantes do primeiro grupo pretendem limitar a salvação, importando-se somente com aquilo que pode ser alcançado neste mundo. Às vezes, tem-se a impressão de que eles querem assumir a edificação do reino que tarda a vir. Parece que o homem deve assumir uma tarefa que Deus está deixando de cumprir. A perfeição ainda não foi atingida, mas o ser humano, através de inúmeros esforços, está a caminho dela. Não se reconhece mais que a consumação da salvação não depende do homem, mas da vontade irreversível daquele que iniciou e que há de concluir a sua obra salvífica.
b) A principal preocupação do segundo grupo é a salvação da alma. O sofrimento humano, as injustiças, a opressão e a exploração fazem parte deste mundo passageiro. Dessa maneira, não são objeto de uma reflexão mais profunda, nem de um envolvimento no sentido de combatê-las. O homem, de qualquer forma, não é capaz de modificar toda uma situação ou um sistema. Preocupar-se com essas questões seria perda de tempo. O que importa é que a pessoa tenha uma vida melhor no além, depois da morte. Por isso, a pregação e todas as outras atividades eclesiais visam somente a habilitação do homem para a entrada no reino futuro.
Nessas duas posições, uma é o extremo da outra. Por um lado, acentua-se de maneira unilateral o engajamento do cristão na luta por um mundo mais justo e humano, correndo, desta maneira, o perigo de transformar a mensagem cristã em mero humanismo. Do outro lado, separa-se a pessoa em duas partes, ou seja, corpo e alma, merecendo a alma uma atenção especial, em prejuízo do corpo. Além disso, a atenção dos fiéis é desviada do mundo real em que vivem, para um mundo futuro, cuja visualização, muitas vezes, talvez vem acompanhada por pensamentos ilusórios.
A meu ver, deve existir um denominador comum entre essas duas linhas. Em cada uma encontramos aspectos importantes e indispensáveis. Por isso, os representantes de uma devem ouvir o que os da outra têm a dizer. Apoiando-me no que a exegese elucidou, defendo o seguinte ponto de vista: A luta do cristão por um mundo mais humano é indispensável. A correta compreensão do evangelho leva, obrigatoriamente, a esta atitude. Isto, no entanto, não significa que se esteja edificando o reino que Deus prometeu para o futuro. Tudo o que os cristãos estão fazendo até agora, em nome de seu Mestre, é apenas uma amostra daquilo que há de ser, quando o futuro mundo de Deus for estabelecido em sua plenitude, no fim dos tempos. Os cristãos formam o povo dos que trabalham por um mundo melhor, enquanto esperam ansiosamente pela vinda de seu Senhor. Em outras palavras: os eleitos de Deus trabalham no reino, enquanto esperam que o próprio Deus o edifique.
III – Sugestões para a prédica
1. Mencionar, inicialmente, alguns aspectos positivos que se destacam na comunidade a que se dirige a prédica. Ver onde se constata que Deus agiu e está agindo, agraciando a comunidade com toda sorte de dons.
2. Aprofundar o assunto da graça. Toda esta riqueza encontrada na comunidade quer despertar em nós a gratidão. A honra não cabe a nós, pois é graças a Deus que chegamos até o ponto em que nos encontramos. A gratidão nos liberta para uma vivência ainda mais autêntica do evangelho.
3. Apesar desses pontos positivos, a comunidade ainda não é perfeita. Ela está a caminho, esperando a manifestação do reino em sua plenitude.
4. Os que foram chamados para o discipulado de Jesus, engajam-se por um mundo melhor, mais justo e mais humano. Esse engajamento, porém, não substitui o mundo novo que Deus há de criar. Ë somente uma antecipação daquilo que haverá de ser na revelação de Jesus Cristo.
5. Por isso, os cristãos formam a comunidade daqueles que esperam.
IV – Bibliografia
– BRAKEMEIER, G. A Primeira Carta aos Coríntios. (polígrafo, Faculdade de Teologia da IECLB) São Leopoldo, 1973.
– CONZELMANN, H. Der erste Brief an die Korinther. In: Kritisch Exegetischer Kommentar über das Neue Testament. 118 ed. Göttingen, 1969.
– FISCHER J ed D. Ernesto Th. Schlieper – Testemunho Evangélico na América Latina. São Leopoldo, 1974.
– WENDLAND, H.D. Die Briefe an die Korinther. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol. 7 Göttingen, 1972.