Prédica: 1 Coríntios 11.23-29
Autor: Joachim Fischer
Data Litúrgica: Quinta-feira Santa
Data da Pregação: 03/04/1980
Proclamar Libertação – Volume: V
Tema: Quaresma
O texto apresenta palavras introdutórias de Paulo (v. 23a), as tradicionais palavras da instituição da Ceia do Senhor (vv. 23b-25), a interpretação paulina da Santa Ceia (v.26) e uma advertência contra a celebração indigna da Ceia (vv.27-29). Para compreendermos bem esse trecho, principalmente a advertência, é indispensável que consideremos todo o contexto dos vv. 17-34. Nele, Paulo se posiciona frente ao procedimento dos coríntios nas reuniões em que festejam a Ceia do Senhor.
I — A Ceia do Senhor na comunidade primitiva: ceia da fraternidade
Originalmente, o ato litúrgico da Santa Ceia estava ligado a uma ceia comum da comunidade. Nos primeiros tempos, o culto iniciava com a distribuição do pão, que é o corpo de Cristo. Seguia-se a refeição em conjunto. No fim, todos bebiam do cálice que representa a redenção realizada por Cristo. As palavras da instituição em Paulo (v.25) e no Evangelho de Lucas (22.20) ainda deixam transparecer essa sequência original. Jesus tomou o cálice “depois de haver ceado (Paulo), depois de cear (Lucas). Mas, apôs pouco tempo, a sequência foi alterada. Primeiramente houve a refeição em conjunto, depois o ato litúrgico com a distribuição do pão e do cálice. Os evangelistas Mateus (26.27) e Marcos (14.23) dizem que Jesus tomou o cálice a seguir, isto é, logo depois de haver distribuído o pão Nessa forma, a Santa Ceia foi festejada também na comunidade de Corinto, apesar da expressão depois de haver ceado nas palavras da instituição. Para Paulo, a fraternidade ou comunhão entre os participantes é um aspecto essencial da Santa Ceia. Hoje, na América Latina, é, sobretudo, (mas não exclusivamente) a Teologia da Libertação (Gutiérrez) que acentua a relação entre Santa Ceia e fraternidade humana.
II – A Ceia do Senhor na comunidade de Corin¬to: manifestação de diferenças sociais
A prática de celebrar o ato litúrgico após a refeição em conjunto possibilitou e facilitou o surgimento de graves distorções no sentido original da Santa Ceia, em Corinto. Os coríntios ainda se reuniam no mesmo lugar (v.20), “na igreja” (v.18). Mas, seu comportamento em tais reuniões contrariava frontalmente o caráter da Ceia, como manifestação da fraternidade e da comunhão. Haviam-se dividido (v.18) em partidos (v.19). Por isso, em suas reuniões não festejavam mais a autêntica Ceia do Senhor (v.20).
Alguns exegetas relacionam as divisões e os partidos dos vv.18 e 19 com as divisões mencionadas no cap. 1.10ss. Naquele trecho, Paulo critica o falso pluralismo teológico e eclesiástico, que leva a cisões e rupturas. Formam-se grupos que se fecham em si mesmos, contra os outros, cortando o diálogo com os que não são da mesma linha. O senhorio de Cristo é substituído por esta ou aquela liderança humana. Onde diferenças teológicas levarem a divisões estruturais, a fraternidade e a comunhão são destruídas. A Ceia não é mais do Senhor, e sim, do respectivo grupo.
Outros exegetas, porém, relacionam as divisões e os partidos dos vv.18 e 19 com aquilo que Paulo descreve nos vv.21 e 22. Quando os coríntios se reúnem para a refeição e a Santa Ceia, a comunidade se divide visivelmente. Por um lado, há os privilegia¬dos, membros que podem dispor livremente de seu tempo. Compa¬recem cedo às reuniões. Trazem sua comida e bebida. Já fazem sua refeição (v.21a). Por outro lado, há os menos favorecidos, talvez escravos que não podem dispor livremente de seu tempo. Devido aos seus compromissos, não podem chegar tão cedo à reunião, nem lhes é possível comer algo em casa, antes de irem ao culto. Do trabalho vão diretamente à igreja. Chegam lá quando a refeição já terminou. Participam somente do ato litúrgico, da Santa Ceia propriamente dita. Assim, alguns já estão embriagados quando começa a Santa Ceia; outros ainda tem fome (v.21 b).
Os membros privilegiados da comunidade de Corinto, em sua piedade egoísta, transformavam a Ceia da comunhão num ato de ostentação. Envergonhavam os que nada têm e menosprezavam a igreja de Deus (v.22), a comunidade. Aparentemente, sentiam-se muito seguros, pois entendiam a Ceia do Senhor como garantia da salvação, como uma espécie de remédio da imortalidade que pudesse livrá-los do julgamento de Deus. Achavam que os menos favorecidos teriam, em todo caso, o que consideravam como o essencial de sua reunião, a dádiva espiritual, o ato litúrgico da Santa Ceia. As coisas materiais seriam assunto particular de cada um. A Santa Ceia não teria implicações materiais ou sociais.
Essa visível divisão social (ou grupal) da comunidade anula a Ceia do Senhor, da comunhão, da fraternidade (v.20). A rigor, nem sequer se pode falar mais de comunidade. Conseqüentemente, a atitude de Paulo diante de tal comportamento é bastante severa. Os coríntios comem o pão e bebem o cálice do Senhor sem discernir o corpo (v.29), isto é, não consideram que a Santa Ceia une os participantes, tornando-os corpo de Cristo. Agem como se a presença de Cristo se restringisse ao domingo, ao culto, ao ato litúrgico, à alma da pessoa. Para eles, Cristo não tem nada a ver com nossa vida diária, com o mundo, com as coisas materiais, com nosso corpo. Negam a responsabilidade do cristão por seu irmão necessitado. Tudo isso significa que os coríntios realizam a Ceia do Senhor de maneira indigna (v.27). Tal prática não tira apenas do irmão necessitado sua dignidade. Atinge o próprio Cristo. Ele é crucificado de novo. Sua comunidade, que é seu corpo, é dilacerada. Por isso, quem agir assim, será réu do corpo e do sangue do Senhor (v.27) e será condenado no juízo de Deus (v.29).
III – A Ceia do Senhor: participação consciente
Diante da situação em Corinto, Paulo chega à conclusão de que ninguém deve participar da Santa Ceia sem se ter examinado a si mesmo (v.28). Com isso, Paulo não exige que os cristãos se torturem a si mesmos, em sua consciência, por causa de seus pecados. Também não quer dizer que, da Santa Ceia, somente possam participar os perfeitos, pessoas que se sentem livres de pecado e culpa. Ao contrário: o Senhor, que está presente na Santa Ceia (por isso: Ceia do Senhor), veio buscar e salvar o perdido (Lc 19.10). Sua Ceia, portanto, é em primeiro lugar, e de modo especial, dádiva, graça, perdão, evangelho para os pecadores perdidos. Mas, é uma dádiva com consequências. Por isso, quem dela participa, deve fazê-lo conscientemente. Sobretudo, deve ficar claro que a Ceia do Senhor não pode ser separada da nossa responsabilidade pelos necessitados.
IV – A Santa Ceia na Semana Santa em nossas comunidades: uma tradição
Em muitas de nossas comunidades, na IECLB, é tradição que o membro participe da Santa Ceia pelo menos uma vez por ano, de preferência na Semana Santa. Por isso, acumulam-se nesses dias os cultos de Santa Ceia. São geralmente muito bem frequentados.
Muitas vezes, são bastante solenes ou até sérios e pesados. Parece que predomina a visão individualista da Santa Ceia: o indivíduo procura a Ceia como ajuda espiritual para sua alma. Considera-se muito pouco que a Ceia é uma festa e um ato da comunidade. Há membros que levam bastante a sério a palavra de Jesus em M t 5.23-24; não querem participar da Ceia enquanto tiverem uma briga pessoal com alguém. Mas, praticamente, perdemos a noção de que também a injustiça social, radicada nas estruturas sociais e políticas, é incompatível com a Ceia da fraternidade.
Assim, temos aí uma ótima oportunidade de falar sobre a Santa Ceia a um maior número de membros. É, também, uma oportunidade de atacarmos abusos e distorções em nossas celebrações da Ceia do Senhor, pois nossos cultos de Santa Ceia na Semana Santa dificilmente escapariam da crítica de Paulo. Mas o procedimento do próprio apóstolo recomenda que ajamos com cuidado e amor. A Santa Ceia em Corinto foi um escândalo. Mas, apesar disso, a crítica de Paulo é discreta (v.22) e sua admoestação, benévola (v.33-34), conforme a regra de 1 Co 13. Nossos membros aprenderam da tradição sua maneira de encarar e de festejar a Santa Ceia. A meu ver, não é nossa tarefa, nesta quinta-feira santa, pregar-lhes a lei e o juízo. Nem é possível eliminar, de uma só vez, as distorções na compreensão e na prática da Santa Ceia. Também neste campo não devemos fazer nada antecipadamente (v.21). Não nos devemos embriagar em nossos conhecimentos teológicos sobre a Santa Ceia (v.21). Não podemos usar o privilégio de nossa sabedoria teológica para envergonhar os leigos (v.22). Devemos esperar por eles (v.33), isto é, devemos ter paciência com eles. Em outras palavras: podemos usar esta oportunidade para compartilhar com a comunidade o que nós entendemos da Santa Ceia. Assim podemos dar, no espírito do amor e com firmeza, o primeiro passo para uma reflexão mais abrangente sobre a Santa Ceia. Depois do evangelho há, então, também lugar para as críticas e as admoestações que forem necessárias.
V – A Santa Ceia: alimento do cristão para sua jornada de vida
1. O nome mais antigo da Santa Ceia é Ceia do Senhor (v.20) Foi instituída por Cristo mesmo (cf. as palavras da instituição, vv.23b-25) e é festejada por autorização e ordem dele (v.23: eu recebi do Senhor; vv.24 e 25: fazei isto…). É dádiva de Cristo: nela o próprio Senhor se nos dá a si mesmo. Ele se entrega em favor da comunidade e de cada membro pessoalmente. O cálice é a comunhão do sangue de Cristo; o pão, a comunhão de seu corpo (cap.10.16). Na Santa Ceia, pois, temos comunhão com Cristo. Somos unidos a ele. Somos incorporados em seu domínio com tudo que temos, sem distinção alguma. A comunhão com Cristo não precisa ser criada através do nosso culto. Ela nos é dada, porque tem sua base na morte e na ressurreição de Cristo. Nela participamos do sofrimento e da morte do Senhor. Ele, por sua vez, assume nossos pecados, nossas fraquezas, falhas e omissões. Em troca disso ele nos dá sua promissão, o poder de sua ressurreição (Lutero).
2. A Santa Ceia é a Ceia da renovação. Nela está presente, no meio da comunidade, o novo mundo da salvação, iniciado por Cristo através de sua morte: Este cálice é a nova aliança no meu sangue. (v.25) A Santa Ceia é o sinal visível da nova aliança que Deus prometeu (Jr 31.31), o sinal visível do novo mundo que Deus criará no fim dos tempos, o mundo da perfeição, da paz, da justiça, da alegria, da vida (cf. Ap 21.1-4). A presença da nova aliança, na comunidade, renova a vida da mesma. Chama seus membros para uma vida nova. Não permite estagnação. Compromete a comunida¬de para que não se conforme com o antigo.com a tradição, com o status quo, e sim, aspire e lute pelo novo mundo de Deus, em que não há mais contradições pessoais ou estruturais.
3. A Santa Ceia é a Ceia da memória de Cristo (cf. as palavras: fazei isto em memória de mim). Essa memória é, sobretudo, a memória da morte de Cristo. Não se trata apenas de um processo na mente das pessoas, de um simples lembrar-se de Cristo. É uma comemoração ativa. Festejando a Santa Ceia em memória de Cristo anunciamos sua morte (v.26); proclamamos que, com sua morte, já iniciou o novo mundo de Deus em meio a este mundo provisório, sujeito a sofrimento, injustiça, destruição. Mas proclamamos também que este nosso mundo, por causa da morte de Cristo, está destinado a ser salvo e libertado. Assim, a comunidade impede que Cristo seja esquecido e que o mundo perca a esperança. E quem participa da Santa Ceia em memória de Cristo, confessa visivelmente que quer ser um discípulo do Senhor, que quer seguir seus passos, que quer viver do encontro pessoal com o Mestre, que aceita viver sob o signo da cruz e na esperança da ressurreição (Gutiérrez, p.220). A memória de Cristo, em nosso contexto, é, portanto, mais um problema da vivência da fé do que um problema doutrinário. Por isso, a prédica não precisa abordar, a meu ver, a problemática da controvérsia entre Lutero (a Santa Ceia como presença corporal de Cristo) e Zwínglio (a Santa Ceia como ato simbólico de comemoração e confissão de fé).
4. A Santa Ceia é a Ceia da comunidade. Ela serve à edificação da comunidade como um todo, não à edificação egoísta do indivíduo. Onde ela é festejada como Ceia particular (de indivíduos ou de grupos dentro da comunidade), deixa de ser Ceia do Senhor. Pois Cristo sacrificou-se pela comunidade (v.24 : dado por vós). É verdade que na Santa Ceia cada um recebe a dádiva de Cristo pessoalmente, mas não como indivíduo isolado, e sim, como membro da comunidade.
Pela Santa Ceia, a comunidade é constituída como corpo terrestre do Cristo crucificado e ressurreto (cf. 10.17), como instrumento humilde de seu domínio. Na Santa Ceia, esse corpo torna-se real e visível. Torna-se real e visível a comunhão dos santos, pois tendo comunhão com o Senhor na Santa Ceia, temos também comunhão entre nós. Na comunidade, um é co-responsável pelo outro. Neste sentido, a Santa Ceia é a Ceia da responsabilidade mútua. Esse aspecto foi esquecido em Corinto. Mas para Paulo era importantíssimo. A participação na Santa Ceia é incompatível com a existência de injustiças e marginalização, pessoais ou estruturais, na comunidade. É verdade que a eliminação efetiva das injustiças e da marginalização não é condição prévia para a participação na Santa Ceia. Mas é impossível participar da Santa Ceia e cometer ativamente injustiças, ou justificá-las, ou não estar disposto a combatê-las, ou marginalizar pessoas. Neste ponto, o posicionamento de Paulo é claríssimo. Mas, provavelmente, neste ponto nossos membros terão as maiores dificuldades, porque nossa tradição não valorizou – ou não o fez suficientemente – este aspecto.
5. A Santa Ceia é a Ceia (o alimento) na jornada terrestre da comunidade e dos cristãos, entre a morte de seu Mestre e sua segunda vinda (v.26). Está ligada ao passado, à morte de Cristo na cruz, e ao futuro, à renovação total de todas as pessoas e de todas as coisas. Aponta para a cruz como o lugar em que nossa vida tem sua origem. Ao mesmo tempo, indica a meta para a qual mos, sem, no entanto, antecipar o fim. Vivemos na tensão entre a morte de Cristo e sua segunda vinda, entre o sofrimento e a libertação, entre a aparente vitória das forças do mal e o triunfo definitivo do bem. Em meio a esta tensão, a Santa Ceia nos alimenta e nos fortalece para que não percamos o ânimo e não mos no caminho difícil da existência cristã. A Santa Ceia tem seu devido lugar neste mundo, em nossa jornada terrestre. Ela nos mostra que temos que viver nossa fé neste mundo. Não podemos usá-la para fugir da nossa realidade e das nossas dificuldades para um mundo ideal de tranquilidade. Assim, fugiríamos também da nossa responsabilidade pelo irmão. Mas, justamente devido à morte de Cristo, somos responsáveis uns pelos outros (cf. também cap 8.11-12; Rm 14.15).
6. A Santa Ceia é a Ceia dos que nada têm. Há cristãos que se perguntam seriamente a si mesmos se são dignos de receberem a Santa Ceia. À primeira vista, essa atitude parece corresponder perfeitamente à admoestação de Paulo no v.28. Mas, na verdade, há uma diferença fundamental. Paulo não pergunta pela qualidade da pessoa (se ela é digna ou não para participar da Santa Ceia). Pergunta pelo procedimento da pessoa (se ela age de maneira digna ou indigna em sua participação na Santa Ceia). Temos, pois, o direito de advertir a comunidade contra escrúpulos falsos. Não precisa sentir-se puro quem quiser participar da Santa Ceia. Antes pelo contrário: a Santa Ceia existe para cristãos que sentem seu pecado e sua culpa, que sentem a necessidade do encontro com Cristo, a necessidade do perdão, da graça, do fortalecimento, do consolo. A Santa Ceia é dada aos que nada têm (v.22), aos que têm fome de Cristo (v.21), aos que se confessam indignos diante do Senhor (Mt 8.8 = Lc 7.6), aos bem-aventurados de Mt 5.3-11. Tais necessitados participam da Santa Ceia de maneira digna. Os participantes dos cultos da quinta-feira santa têm consciência dessa sua necessidade?
7. Na quinta-feira santa temos uma boa oportunidade de iniciar, juntamente com a comunidade (certamente numerosa neste dia), uma nova reflexão sobre a Ceia do Senhor. Tal reflexão seria uma boa atualização da admoestação paulina: Examine-se o homem a si mesmo, e assim coma do pão e beba do cálice. (v.28)
VI – Bibliografia
– ALLMEN, J.J.von. Estudo sobre a Ceia do Senhor. São Paulo, 1968.
– BORNKAMM, G. Meditação sobre 1Co11.23-32. In: Herr, tue meine Lippen auf. Vol. 2. Wuppertal-Barmen, 1959.
– A Ceia do Senhor (Comissão Mista Católico-Luterana, documento). São Leopol¬do, 1978.
– CONZELMANN, H. Der erste Brief an die Korinther. In: Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament. Vol. 5/11 Göttingen, 1969.
– FÜRST, W. Meditação sobre 1Co 11.23-29. In: Göttinger Predigtmeditationen. Ano 28 Göttingen, 1973/74 – GUTIÉRREZ, G. Teologia da Libertação. Petrópolis, 1975.