Prédica: 1 Coríntios 15.35-39,42b-44
Autor: Bertholdo Weber
Data Litúrgica: Dia de Finados
Data da Pregação: 02/11/1980
Proclamar Libertação – Volume: V
I – Introdução
O dia dedicado à memória dos finados costumava ser celebrado em nossas comunidades no último domingo do ano eclesiástico.; o domingo da eternidade. Aos poucos também os evangélicos habituaram-se a observar o feriado nacional Finados, comemorado a 2 de novembro e instituído pela Igreja Católica Medieval (séc. X) como festa de todos os fiéis defuntos.
Em geral, a tradição do culto dos mortos é uma das práticas fundamentais de todas as religiões, não só do cristianismo. Certos costumes e crenças primitivos, provenientes de ritos agrários da necrodulia conservam-se em forma de homenagens especiais até a nossa era secularizada. À semelhança do nosso texto encara-se os falecidos como semente preciosa com vistas a uma continuidade da vida no além. A crença na imortalidade da alma ou na reencarnação (Espiritismo) está tão viva hoje como antigamente, inclusive em nossas comunidades, onde se confessa dominicalmente: Creio…. na ressurreição do corpo. Mas também nessas imaginações inadequadas ao Evangelho se oculta um anseio e uma esperança legítima que não se conforma com que a morte seja o fim. Cabe à Igreja, justamente neste dia, em que surge a pergunta pelo destino eterno dos mortos, anunciar o acontecimento decisivo do qual fala o apóstolo no cap. 15, de 1 Co.
II – Considerações exegéticas
1.0 contexto
A nossa perícope 1 Co 15.35-39, 42b-44 – para abreviar a leitura do texto, omitimos os w 40s – deve ser vista no todo do seu contexto. Tema do cap. 15 é o quérigma da ressurreição do Cristo, fundamento e conteúdo central da fé cristã: Se Cristo não ressuscitou é vã a nossa pregação e vã a nossa fé (v.14). – Mas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo ele as primícias dos que dormem (v.20). Esta mensagem pascal da vitória de Cristo sobre o poder da morte revoluciona toda a velha criação sujeita à corruptibilidade, dando-lhe a promessa de vida nova e plenificada. Na ressurreição, igual à morte, não se trata apenas de um fato do passado, ocorrido com Jesus de Nazaré, mas sim da ação criadora-salvífica de Deus que em Cristo inaugura um novo éon, no qual e. morte já não existirá (Ap 21.4). Unidos com Cristo pela fé, participamos da sua vitoriosa ressurreição, já nesta vida antes da morte. E esta vida que consiste na comunhão de fé com Cristo se manifesta na vivência prática do dia-a-dia, na relação com os outros. A ressurreição diz respeito não só à situação que virá depois da morte, mas a fé no Ressuscitado envolve consequências concretas para esta vida que hoje vivemos.
2. O texto
Dentro deste contexto maior situa-se a pergunta especial como ressuscitarão os mortos?. Não se trata necessariamente de um problema discutido em Corinto. A frase mas alguém dirá – é uma fórmula da diatribe, que supõe uma objeção do adversário. Os coríntios não negam a esperança para além do túmulo, mas a interpretam em sentido puramente espiritualista. O motivo de negarem a ressurreição do corpo reside no dualismo (gnóstico) para o qual o corpo é o cárcere da alma que, por ser de natureza divina, é imortal. Esta doutrina gnostizante da imortalidade da alma, tão antiga e tão difundida, evidentemente não se coaduna com a ressurreição do corpo. Mas, face à decomposição física da matéria, o grego prende sua esperança na sobrevivência de um núcleo indestrutível. Na morte a alma imortal separa-se do corpo corruptível. A Bíblia não pode imaginar vida sem corpo. Conseqüentemente Paulo responde a esta pergunta não com argumentos filosóficos, mas servindo-se de uma parábola do âmbito da criação para ilustrar por analogia o que acontece na ressurreição do corpo. A expressão inicial, insensato!, já demonstra que para ele tal pergunta é tola e improcedente. A esperança cristã não é tão ingénua de acreditar na simples revivificação do cadáver dos defuntos, mas crê, isto sim, na nova corporeidade pneumática, espiritual, à semelhança do corpo do Senhor ressuscitado. Deus cria da morte nova vida revestida de corpo novo.
Tomando o exemplo do reino vegetal, Paulo diz: Bobo!, já viu uma planta ser igual a sua semente? Você já viu alguém semear plantas ou árvores? Semeia-se a semente, da qual vai nascer a planta ou a árvore. Assim, vivendo hoje, você, com a sua vida, é como uma semente da qual, quando morre, vai nascer um corpo novo, diferente, espiritual, pela força criativa de Deus.
Com outras palavras: É insensato quem não conta com o poder criador de Deus. A comparação entre a ressurreição e o grão que nasce é uma representação figurativa que, como tal, tem seus limites. Pois o apóstolo não quer afirmar, como os gnósticos, que em nós todos jaz, por natureza, um gérmen eterno, imperecível, rudimento do novo ser no além. É-lhe estranha a ideia moderna da evolução. Seu interesse se prende no mistério do agir criativo de Deus que justifica o ímpio, vivifica os mortos e chama à existência as cousas que não existem (Rm 4.17). Para Pauto (como para João) o grão, caindo na terra, morre. O morrer antecede a novidade da vida, que não se desenvolve a partir do perecível e tampouco é simples retorno à vida terrestre. É existência nova, de acordo com a nova criação iniciada em Cristo, e presente naqueles que, pelo batismo e pela fé, estão unidos com ele. A morte, com isso, não é bagatelizada. Todos os homens – também os fiéis – morrem, e o homem todo morre. O corpo que enterramos (terra à terra) não é simplesmente idêntico com o novo corpo da ressurreição que nos é prometido. Carne e sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorrupção. Mas, igualmente certo é que a vida eterna não será acorporal, destituída de forma corpórea (espíritos etéreos, almas despidas). Deus dá a cada semente-seu corpo específico, novo (vv.39-41). Paulo não reflete sobre a questão da identidade e continuidade do ser terrestre no novo ser ressuscitado. A analogia (vv.39-42a) somente acentua o poder criador de Deus, sua fidelidade e promessa do reino, na qual haverá libertação do pecado, da lei e da morte. Aquele que criou o mundo do nada e ressuscitou Cristo dentre os mortos, tem igualmente o poder de revestir-nos com novo corpo. Esta nova vida está semeada já agora naqueles que com Cristo morrem, conquanto pertencem a este mundo corrupto, e com ele ressuscitam diariamente para a novidade de vida (Rm 6).
As antíteses (vv. 42b-44) corrupção – incorrupção, desonra – glória, corpo natural – corpo espiritual, salientam o caráter milagroso da vida futura, a continuidade na descontinuidade. Ressurreição é nova criação, é dádiva do Espírito Santo criador Corpo espiritual é vida em sua totalidade na comunhão de Deus. O Espírito que em nós atua quer nos levar à participação no futuro de Deus e na comunidade do Ressuscitado. Ressurreição não significa a volta ao tipo de vida que agora possuímos, entregue às limitações de toda espécie. É a realização corpórea-espiritual do nosso destino verdadeiro no reino, com todas as implicações e possibilidades concretas já nesta vida, como antecipação do novo ser, do novo mundo, da plenificação do homem e dá redenção final de toda a criação (Rm 8).
III – Meditação
O Dia dos Finados suscita nas pessoas, que neste dia se lembram de maneira mais intensiva dos seus entes queridos, de forma expressa ou silenciosa, a pergunta pelo destino dos que partiram. As homenagens que se prestam aos mortos, as coroas e flores frescas nas sepulturas, podem representar um sinal de sincera gratidão e amor àqueles cuja morte chagou o coração. Muitas vezes, porém, é o costume e a tradição da sociedade que levam as pessoas a cumprir este seu dever de piedade. E até no cemitério, no lugar onde finalmente todos são iguais, ainda prevalece a diferença do 'status' das famílias (jazigos, coroas caríssimas, etc.). As flores que nos querem lembrar da transitoriedade da nossa vida passageira, representam, às vezes, tributos póstumos, expressando arrependimento de tudo que se fez ou se deixou de fazer ao inesquecível durante a vida.
Seja como for, nesse dia não peregrinamos aos cemitérios para prestar culto aos mortos, mas celebrar exéquias cristãs. Respeitamos os sentimentos de saudade, de dor e luto. A nossa tristeza e consternação não precisam ser reprimidas. Mas é justamente em meio à nossa aflição e revolta (por quê?), face à realidade brutal da separação, que nos alcança a mensagem da ação vitoriosa de Deus em Cristo, que superou o poder da morte e nos deu parte em sua vida incorruptível.
Na prédica, especialmente na colónia, pode-se aproveitar a ilustração da metamorfose da semente e do seu estado finei. Para ouvintes desligados da vida da natureza, poderia ser usado o exemplo de mutações biológicas para ilustrar o poder criador maravilhoso que pode dar-nos, em lugar do nosso corpo efémero e corruptível, uma nova existência corpórea-espiritual. Não ternos apenas um corpo, nós somos corpo. Deus nos quer inteiros, e na obra da redenção está incluído o nosso corpo, a nossa existência toda, não somente a alma. A ressurreição cio corpo nos anuncia a nossa libertação total de toda opressão, do absurdo e do nada A morte então é assumida dentro de uma esperança que alcança para além desta vida. A efemeridade da nossa vida, a doença, o sofrimento, o morrer diário que pontilha a nossa vida até a velhice, a morte repentina, a mortalidade infantil – esta não é a realidade definitiva. Dentro do velho mundo, em que vivemos e somos, com seu egoísmo e suas estruturas de opressão e injustiça, Deus, em Cristo crucificado e ressuscitado, tudo revoluciona e nos abre o futuro do novo homem e a saída libertadora para a humanidade. No meio do velho mundo e do homem pecador fermenta em Cristo um novo mundo e um homem já livre e liberto integralmente.
Temos que contar com os céticos e ir ao encontro dos que duvidam, mas não podemos querer provar o que é acessível unicamente à experiência da fé no Senhor ressuscitado e presente em sua comunidade. O Novo Testamento é muito sóbrio no descrever o que será depois. Basta-nos saber que os nossos mortos estão nas mãos do Senhor, poderoso e fiel para cumprir a sua promessa. Mas o Dia dos Finados nos envia ao cotidiano, onde levamos a nossa vida corporal no convívio com os outros. Isto, por que nesta terra a nova criação em Cristo quer manifestar-se no amor, no perdão, na comunhão com os irmãos. O reino da libertação definitiva quer assumir forma na construção de uma sociedade de justiça, de fraternidade e de paz. É preciso possuir o espírito de discernimento para que possamos ter uma ideia do alcance tremendo da fé na ressurreição do corpo, para a transformação da vida dos homens e da sociedade.
O ponto chave da fé na ressurreição é o homem descobrir na sua vida esta força atual e permanente de Deus que é um Deus dos vivos. Só assim o homem, ele mesmo, ressuscita e, ressuscitando, perceberá o alcance da sua fé na ressurreição. Não serão os argumentos científicos que darão valor à fé na ressurreição, mas será a experiência concreta… A única prova verdadeira da ressurreição que convence, é a vida que hoje ressuscita e se renova, que hoje vence as forças da morte, fazendo com que as forças represadas e oprimidas da vida sejam descobertas e libertadas para alegria e esperança de todos. Esse é o comprovante de que, no homem, atua uma força mais forte do que a morte, a força de Cristo ressuscitado. Onde estão esses sinais da ressurreição na nossa vida, para que a nossa palavra sobre a ressurreição de Cristo possa ter um comprovante? (Mesters, p. 207).
IV – Bibliografia
– BOFF, L. A fé na periferia do mundo. Petrópolis, 1978.
– EICHHOLZ, G. Meditação sobre 1 Coríntios 15.35-44. In: Hören und Fragen. Vol. 4/1. Neukirchen-VIuyn, 1975.
– EISS, W. Meditação sobre 1 Coríntios 15.35-44. In: Für Arbeit und Besinnung. Vol. 7/246. Stuttgart, 1976.
– MESTERS, C. Deus, onde estás? 5a ed. Belo Horizonte, 1976.
– WEBER, B. A morte na teologia de Lutero. In: Luther vive. São Leopoldo, 1946.