Prédica: 1 Pedro 4.7-11
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: Domingo Exaudi
Data da Pregação:18/05/1980
Proclamar Libertação – Volume: V
I – Questões literárias e de forma
A leitura de 1 Pe 4.7-11 evoca em nós a lembrança de 1Co 12.4-11; 28-31 e Rm 12. 6-8. Os tópicos do nosso trecho aparecem quase todos na perícope indicada da Epístola aos Romanos.
Mas apesar da forte semelhança com textos paulinos, não podemos constatar uma dependência literária. Antes, deve ser dito que elementos paulinos são incluídos num esquema parenético que se encontra, também, no final da Epístola de Tiago (5. 7-20). Nosso trecho distingue-se de textos semelhantes pelo acento dado à graça de Deus como movens (v. 10) e à sua glória como alvo (v. 11).
Existe a teoria de que 1 Pé 4. 7-11 seja o final de uma prédica batismal, W. Schmauch, por sua vez, insiste que não se trata do final de uma prédica, mas sim de uma oração final com traços parenéticos, no todo de uma liturgia de um culto batismal. Neste caso, sede sensatos e sóbrios para as orações teria o sentido do nosso convite litúrgico: oremos. A exegese, porém, mostra que se trata de uma exortação e não de uma expressão rotineira como oremos. Quanto ao amém, não era usado como final de prédica nem de carta. (Goppelt) Era empregado, isso sim, como confirmação no sentido de verdade, verdadeiramente, certo, sim
II – A vivência da fé na comunidade escatológica
V. 7a: O fim de todas as cousas está próximo – Esta afirmação tem ligação com 4.5 onde se faia da prestação de contas àquele que é competente para julgar vivos e mortos. Mas esta ligação não deve ser superestimada. O que importa é a relação com o que se segue. É certo que em muitas passagens a nossa epístola se refere ao juízo quando fala na expectativa do ESCHATON (1.17; 4.5; 4 17-19). Mas aqui está em evidência c caráter passageiro deste mundo. Para todas as cousas (PANTA), isto é, para tudo que perfaz este mundo que desafia os cristãos, mas que também lhes traz tanta tribulação, é chegado o fim (ËNGIKEN). Aí se evidencia que a Primeira Carta de Pedro, mesmo pertencendo à segunda geração de cristãos, mantém a expectativa pela proximidade do fim. Aliás, tal expectativa é mantida (e não somente em sentido apocalíptico!) através de toda a história da Igreja.
Na concepção de proximidade, antes de mais nada, articula-se uma avaliação da situação do mundo que corresponde a um aproximar-se de Deus que excede espaço e tempo, mais concretamente, ao já agora e ao ainda não do ESCHATON na história. (Goppelt) Essa dimensão da esperança não pode ser abandonada Somente a esperança pelo vindouro é capaz de dar ao presente seu verdadeiro valor e significado. (Schweizer) Não é verdade que a expectativa pela proximidade do fim conduz a um descompromisso com a realidade presente. Ao contrário! De modo especialmente intensivo monta guarda aquele que sabe que algo” se aproxima.
Toda a vida da comunidade está caracterizada por este esperar. O objetivo último de toda atividade cristã é a glorificação de Deus. Não que a glória lhe tenha que ser dada. Ele já a possui. Por isso, o indicativo! Mas na doxologia sua glória e seu domínio são reconhecidos e louvados.
A parênese baseada na expectativa pela proximidade do fim tem em vista a orientação para as cousas que têm subsistência dirigir-se a Deus em oração (v.7b); amor fraterno (v.8s); o servir na comunidade (v.10,11a) e uma vida em honra daquele que é o doador da vida (v,11b).
V. 7b: Sede, pois. sensatos e sóbrios para as orações. – Conforme antiga tradição grega, é SÕPHRÕN. sensato, aquele que percebe e medida que está colocada, tanto para ele próprio quanto para o seu mundo, e a observa. Esse uso linguístico entrou para a parênese cristã. É sensato quem vê a medida no sentido da expectativa pela proximidade do fim. Sob o aspecto da esperança, torna-se sóbrio para a oração. Em vista da proximidade do Senhor, vê as coesas em seu devido lugar e não se afoga num mar de agitações entusiásticas. A atitude condizente com a esperança cristã é, em 1 Ts 5. 1-10, a vigilância.
O plural orações lembra os múltiplos atos de orar. Peti¬ções, intercessão, agradecimento e adoração partiam do indivíduo como também do grupo e se guiavam pelo Pai Nosso. A oração era um sinal da existência escatológica da comunidade. O mesmo pode-se dizer da ÁGAPE.
V. 8: Antes de tudo, tende amor perseverante de uns para com os outros, pois amor cobre multidão de pecados. – Antes de tudo (PRÓ PANTÕN) indica que o amor aos irmãos tem preponderância sobre todas as outras cousas,exceto as orações. Esta primazia do amor ao próximo remonta à proclamação de Jesus. Ela determinou toda a pregação da cristandade primitiva. No mandamento do amor a vontade de Deus está resumida de forma simples, radical e compreensível. (Barth) O amor fraternal há de ser perseverante, isto é, contínuo.
Já em 1.21 s é mencionado, além da esperança e da fé, o amor fraternal como básico para o cristão. Mas enquanto lá ele e fundamentado com a regeneração, aqui ele é sublinhado pela frase um tanto ambígua: pois amor cobre multidão de pecados.
Esta frase deve ter circulado como provérbio bastante conhecido no cristianismo primitivo. Pode ser encontrada também em Tg 5.20 e em 1 Clem 49.5; 2 Clem 16.4. Nossa carta faz uso desse provérbio que possivelmente já se encontrava ligado a um esquema parenético. Não se trata de uma citação de Pr 10.12, pois a formulação não segue a LXX (que é citada com frequência na 1 Pe)
Como é entendido esse provérbio no contexto da nossa carta? Conforme o uso do Antigo Testamento cobrir pecados é o mesmo que perdoá-los (et. SI 32.1). Os pecados de quem encobre o amor? Daquele que ama ou daquele que é amado?
O sentido talvez seja o seguinte, o amor fraternal deve ser exercido com perseverança, pois perdoando sempre de novo os pecados do irmão, este não chega a sucumbir sob o peso dos mesmos. (Cf. 1 Co 13.7)
Mas. conforme o Novo Testamento, pecado é desobediência a Deus. Por isso. muitos pensam tratar-se no nosso trecho do perdão dos próprios pecados através do exercício do amor fraterna: Goppelt chama atenção para o fato de que na soteriologia de 1 Pe a concepção de que obras caritativas possam cobrir pecados no juízo final, não faz sentido (cf. 1.18s; 2.24s), e propõe uma terceira interpretação: O provérbio não quer ser entendido como afirmação soteriológica, mas como indicação parenética com o seguinte sentido: exercer amor fraternal continuamente é necessário, pois amor, tanto o amor de Deus quanto o dos homens cobre multidão de pecados em nós como também nos outros. Temos aí uma correlação de relacionamentos pessoais, não de um ajuste de contas Entendido dessa maneira, o provérbio realmente pode estimular amor fraternal.
V. 9: Sede hospitaleiros sem murmurações. – Uma importante manifestação do amor fraterno é a hospitalidade concedida Naquele tempo era, sem dúvida, um pressuposto técnico para a missão cristã, bem como para a realização dos cultos. Estes eram celebrados em casas particulares. Deve-se pensar também nos cristãos que estavam em fuga por motivo de perseguição. Podemos imaginar que a hospitalidade se tenha tornado um ônus. Por isso, a exortação de que ela deva acontecer sem murmuração.
V. 10: Servi uns aos outros, cada qual com o dom que recebeu, como bons administradores da multiforme graça de Deus. – No v. 8 foi mencionado o amor fraternal, agora é apontado o servir com os diversos carismas, como sendo a atividade pela qual vive a comunidade cristã. DIAKONEIN era termo técnico para todo falar e agir através doa quais o evangelho era levado adiante. Conforme Mc 10.42-44, Jesus mesmo falou do servir como a atitude correia dos discípulos, de uns para com os outros. A participação no remo de Deus se documenta através do servir. A concretização do servir corresponde ao carisma que cada qual recebeu. Como aqui claramente encontramos terminologia paulma, convém apontarmos para Rm 6.23, onde o carisma de Deus por excelência é a vida eterna em Jesus Cristo, nosso Senhor. A multiplicidade de carismas é dada exatamente onde é doada vida eterna. Todo servir é um transbordar da graça que Deus concede. O homem desaparece O agir de Deus na comunidade e através dela é ressaltado É realmente libertador este versículo! O cada qual conforme os dons que recebeu liberta da arrogante corrida do homem em busca de afirmação própria. No seio da comunidade não é necessário querer conseguir tudo por meio das próprias forças. Cada qual pode contentar-se com o que lhe foi doado. Um não é mais que o outro. Todos ss encontram na mesma situação de administradores de dons que não lhes pertencem, mas que receberam para servir.
V 11: Se alguém fala (apresente as suas palavras) como palavras de Deus; se alguém serve, faça-o na força que Deus supre, para que em todas as cousas, por meio de Jesus Cristo, seja Deus glorificado, a quem pertencem a glória e o domínio pelos séculos dos séculos. Amém. – A mordomia pode ser resumida na proclamação e na diaconia. Aqui são ressaltadas duas funções que são essenciais para a comunidade. A palavra e o servir. Ambos originam-se no estar curado diante de Deus. Todo falar, porém, somente faz sentido se as palavras se tornam palavras de Deus. Como se dá isso? O falar dos cristãos não se torna palavra de Deus simplesmente quando são repetidas certas formulações. O Novo Testamento todo mostra como a palavra de Deus foi relida em cada nova situação. O falar torna-se palavra de Deus somente se o evangelho for formulado sempre de maneira nova. À semelhança de Rm 12.3-8 temos aí uma exortação àqueles que falam tanto em particular quanto publicamente. Poderíamos parafrasear: quem passa adiante o evangelho, deve ter o cuidado de não o fazer a partir de si mesmo, mas a partir de Deus. Conforme 1.12, isto significa: no Espírito e na fé. Essa exortação inclui, por outro lado, a confortadora promissão de que o falar humano torna-se palavra de Deus se for norteado pelo evangelho que quer atingir os homens em sua situação concreta. Da mesma maneira deve ser entendido que a diaconia tem que efetuar-se na força que Deus supre. São realçadas ai a extensão e a intensidade de servir. Porquanto Deus não proveu seus servidores com escassa força, também o serviço não poderá ser pequeno, mas irá refletir a abundância da dádiva divina. (Barth)
III — Reflexões meditativas em direção à prédica
Não resta dúvida: Jesus Cristo, por meio da sua morte e ressurreição, inaugurou um reino que não é deste mundo, mas que, pelo simples fato de ser realidade, testemunha a todos os reinos e a todos os poderes deste mundo a transitoriedade dos mesmos. É dito que o fim de todas as cousas vem e já está vindo com toda certeza
As comunidades da Ásia Menor, os eleitos que são forasteiros da dispersão, sofrem duras perseguições. Penso que podemos imaginar o que poderá ser perseguição. Em meio a toda tribulação, a certeza de que o fim de todas as cousas está próximo significou para esses cristãos um forte consolo. Sim, significou uma boa nova, como em Mc 1.15: o reino de Deus está próximo. Em vista desta realidade estavam eles convictos de que valia a pena resistir e lutar. Todo empenho no sentido de melhorar a situação, servindo uns aos outros, não seria em vão, pois o fim, que é ao mesmo tempo cumprimento, já iniciou, está próximo! O Senhor está próximo!
Nem sempre esta mensagem foi entendida nesta dinamicidade que leva ao engajamento Há dois perigos básicos que dificultaram a caminhada de muitos cristãos ao longo da história. Em primeiro lugar, é grande a tentação de se querer fugir do mundo. Esperando pelo Senhor e pela consumação, muitos tem tentado viver como se tudo o que é terreno, não nos dissesse respeito. Sempre de novo acontece que cristãos, no entusiasmo da sue esperança, querem olhar somente para o além, deixando o mundo atrás de si. Mas tal piedade sempre descambou para um fanatismo desmedido que se destrói a si mesmo.
Existe ainda outra tentação que poderíamos chamar de antecipação entusiástica do fim. Trata-se aí de uma espécie de embriaguez que faz crer que se venceu as intempéries da vida. Mas isso somente dura até que se desperta para a realidade nua e crua. A verdade é que o mundo ainda não passou. Ele nos rodeia e se encontra em nós mesmos. E não lhe conseguimos resistir com as próprias forças. Unicamente aquele, cujo poder se manifesta na fraqueza, pode ajudar; aquele que prometeu o seu Espírito como fonte de poder. Não é por nada que o autor da nossa epístola conclama os cristãos a serem sensatos e sóbrios para as orações. Tudo depende de que o Senhor, que no fim dos tempos virá em glória, esteja presente já agora, em meio a toda dor e todo medo deste mundo e da vida.
Onde ele não estiver presente, a luta se nos torna pesado demais. Sucumbimos. Onde nós quisermos construir um mundo melhor apenas com nossas próprias forças, certamente fracassaremos. Onde quisermos, sozinhos, fazer frente às injustiças que nos rodeiam, certamente haveremos de desesperar.
Toda boa vontade para um compromisso com os pobres, por exemplo, não basta. Somente a presença do Cristo pobre faz com que vejamos com sensatez a realidade dos mais necessitados. A presença de Cristo já agora nos conduz a rejeitarmos a triste situação em que vive a maioria do nosso continente, a questionarmos estruturas iníquas e a lutarmos contra o pecado que há em nós.
A constatação de que o fim de todas as cousas está próximo não leva a fanatismo; mas também não leva a identificar o empenho pela criação de um mundo mais justo e fraterno com o reino de Deus em sua totalidade. Leva-nos, isso sim, a um engajamento sóbrio na luta contra as múltiplas adversidades, no sentido de reconhecermos que seu é o reino, o poder e a glória, para sempre!
IV – Bibliografia
– BARTH, G. A Primeira Epístola de Pedro. São Leopoldo, 1967.
– GOPPELT, L. Der 1. Petrusbrief. In: Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament. Vol. 12/1. Göttingen, 1978.
– GOPPELT, L. / HILDMANN, G. Meditação sobre l Pedro 4.7-11. In: Calwer Predigthilfen. Vol. 12. Stuttgart, 1973.