CULTO EM ÉPOCA DE ELEIÇÕES
1 Samuel 11.1-15 – Renatus Porath
I – Eleições – preocupação da comunidade cristã?
As igrejas, em várias regiões de nosso país, têm elaborado circulares, cartas e cartilhas para orientar o povo quanto ao seu compromisso na ação política através do voto (cf.: Carta aos Eleitores, no Jorev no 19, ano 78 e Cei n° 142, set. 78; Circular sobre as Eleições, dos bispos da Província Eclesiástica do Rio Grande do Norte; O São Paulo, 9 a 15/9, p.3). Para alguns, a igreja estaria comprometendo sua neutralidade política com tais manifestações. Mas assim como nosso ser cristão tem algo a ver com nossas necessidades básicas como família, alimentação, habitação e profissão, também não é indiferente para a comunidade cristã quem detém o poder ou a quem se incumbe a tarefa de governar.
Com o frequente abuso do poder, muitos cristãos identificam política com sua forma corrompida (Toda política é suja!), justificando, assim, seu voto impensado.
Eleições despertam uma mobilização geral, possibilitam um debate mais amplo de problemas que afetam a grande maioria de nosso povo. As relações de poder vêm à tona. O voto, em um estado de direito, entrega o poder ao grupo legitimado pela maioria. O governo brasileiro, consciente deste fato e prevendo uma alteração significativa a partir da vontade popular, aviltou a constituição de 69 e criou novas regras para o processo eleitoral e fim de se garantir no poder (pacote de abril/78). Um governo não aceito como legítimo por todos os grupos da sociedade precisa da força para assegurar a estabilidade do regime. (Chinoy, p.472)
Diante desse pequeno espaço reservado para a manifestação do voto popular, vale a pena lutar politicamente? Nenhum regime tem condições de se manter por muito tempo, quando um povo todo se lhe opõe. Também os membros da comunidade não permanecem meros espectadores. Ou têm uma participação responsável ou simplesmente são irresponsáveis. Mas por que regime lutar? Com que grupos somar forças, sem comprometer sua fé?
II – Em busca de um texto
Procurava um texto vetero-testamentário e parei finalmente em l Sm 11.1-15. Encontrei ai uma situação onde se apresentam intensas relações de poder, cada qual justificando sua postura com um programa bem definido. Por fim, a dura negociação em que o povo desempenhou um papel bem decisivo.
III – Diferentes partidos se articulam
No complexo chamado Samuel – Saul, que abrange os caps. 7 a 15, saltam aos olhos as diferentes posições quanto à instalação do reinado em Israel. Tentou-se resolver esta tensão de diferentes maneiras: a) reordenando os capítulos; b) detectando, basicamente duas tendências – uma pró-reinado e outra anti-reinado ou ainda uma linha a favor de Saul e outra contra. Mesmo aplicando este último critério, largamente aceito, ficam questões abertas numa mesma narração, proveniente de um mesmo lugar e de uma mesma época.
Quanto aos textos da eleição de Saul, dos quais o redator final tentou fazer uma história continuada, nós ainda podemos distinguir três narrações independentes: a) 1 Sm 9.1-10.16; b) 10.17-27; c) 11.1-15. Muito apressadamente se atribuí essas diferentes opiniões à esquematização teológica do Deuteronomista em época distante dos acontecimentos. Parece, no entanto, convencer muito mais que cada narração foi escrita obedecendo seu próprio propósito e sua própria tendência (Ishida, p.42). Os textos discre¬pantes documentam o desenvolvimento dinâmico das condições sócio-políticas desse importante momento histórico (op.cit., p.31).
As três narrações têm em comum que o reinado foi instalado com a participação de Samuel, do povo e de Saul, o homem encontrado para o novo cargo. Mas os três textos divergem quanto à parcela de participação de cada um nessa luta pelo poder. A última narrativa (11.1-15) apresenta em larga escala a situação histórica em que ocorreu a implantação do reinado (o que não significa que as outras não tenham também dados historicamente autênticos). Sob forte pressão do povo, instala-se a monarquia em Israel. Na segunda (10.17-27), é destacada a intervenção de Deus na escolha do governante. Talvez por necessidade de maior apoio ideológico, nos Inícios do reinado, Saul precisasse de sanção divina para sua autoridade, tentando, assim, uma maior independência da assembleia popular. É bem provável que coroa e representante religioso tinham tido interesses comuns: Samuel querendo manter sua Influência no novo regime, enquanto que Saul precisava de afirmação no poder. Na terceira narração (9.1-10.16), está retratada esta mesma cooperação em um estágio mais avançado. Nesse relato a participação popular é reduzida ao extremo. A figura de Samuel é a dominante. Ele anuncia e unge o novo rei em resposta ao clamor do povo, ameaçado pelos inimigos (9.16). (Ishida, p.42s).
IV – Um regime inadequado
A totalidade das tribos não formava uma unidade política, nessa época. Algumas, do planalto central, e as do norte formavam, temporariamente, uma coligação. O que as unia eram inimigos comuns (filisteus e amonitas), sua mesma descendência e a adoração do mesmo Deus (Hermann, p.169).
Parece que os impulsos para a monarquia surgiram a partir das tribos do centro da Palestina. Deve-se destacar, principalmente, a confederação em torno do santuário de Silo, formada para enfrentar ataques dos filisteus. Eli, seu líder, era sacerdote – juiz (4.18b e 3.2), mas não guerreiro. As operações militares eram feitas coletivamente pelos anciãos das tribos, enquanto que Eli permanecia em Silo. è provável que tenha sido a primeira tentativa de ter uma liderança estável e substituir o líder carismático, espontâneo, por um hereditário (Ishida, p.33). Nesse tempo as tribos estavam no auge de sua crise. Após o colapso da confederação silonita, Samuel fez um grande esforço para restabelecer a união das tribos para, assim, se livrarem do domínio filisteu (lSm 7). As características de sua liderança se assemelham às de seu antecessor. Iniciou sua carreira junto ao santuário de Silo como vidente (ou profeta). Como líder acumulava várias funções: vidente (3.13); sacerdote (7.5ss); líder da confederação (7.15ss; 8.1).
Devia ser um líder que se movimentava de um centro cultual ao outro dentro da confederação, a qual devia abranger algumas partes de Efraim e Benjamin, conforme as cidades mencionadas em '7.16 (ishida, p.34s). Também Samuel devia entender seu cargo como hereditário (8.2), como seu antecessor. Não vejo por que muitos pesquisadores logo querem defender uma retroprojeção do reinado sobre a época dos juizes.
Diante da urgência de uma resistência mais eficaz para conter o expansionismo filisteu e amonita, articula-se um partido de oposição; isto é. o próprio povo, representado pelos anciãos, opunha-se ao grupo fiel a Samuel e seus filhos. Estes últimos, herdeiros imediatos, eram corruptos (8.3). Assim os anciãos estavam em busca de um novo regime que pudesse garantir maior estabilidade.
O incidente de Jabes-Gileade (1 Sm 11.1-15) nos retraia este quadro aflitivo e nas entrelinhas ainda transparecem as duras negociações que precederam à introdução do reinado em Israel.
V – Texto
V.l: Então subiu Naás, o (rei) dos amonitas, sitiando a Jabes-Gileade: e disseram todos os homens de Jabes a Naás: Faze uma aliança conosco e te serviremos.
V.2: (e) Respondeu-lhes Naás, o (rei) dos amonitas: Nestas condições farei aliança convosco, em que eu vaze todo olho direito de cada um de vós e traga desgraça sobre todo Israel.
V 3: Então lhe disseram os anciãos de Jabes: Dá-nos um prazo de 7 dias, então enviaremos mensageiros por todo o território de Israel; e se não houver um libertador para nós, então nos renderemos a ti.
V.4: E foram os mensageiros a Gíbeá de Saul e disseram isto aos ouvidos do povo; e todo o povo levantou sua voz e chorou.
V.5: (e) Eis que Saul vinha do campo, atrás dos bois, e Saul perguntou: Que há com o povo? Por que chora? Então lhe contaram o assunto dos homens de Jabes.
V.6: O Espírito de Deus tomou conta de Saul ao ouvir isto e acendeu-se violentamente sua ira.
V.7: Ele tomou uma parelha de bois, (e) retalhou-a e enviou os pedaços por todo o território de Israel peia mão de mensageiros dizendo: Quem não seguir a Saul e a Samuel (!), assim se fará a seus bois; aí caiu o susto do Senhor sobre o povo, e saíram como uma pessoa.
V.8: E ele os passou em revista em Beseque; (e) eram 300 mil israelitas e 30 mil, os homens de Judá.
V.9: Então disse aos mensageiros que tinham vindo: Assim direis aos homens de Jabes-Gileade. Amanhã virá libertação para vós, quando o sol começar a esquentar; e foram os mensageiros e o anunciaram aos homens de Jabes e ficaram alegres.
V.10: E os homens mandaram avisar: Amanhã nos entregaremos a vós, para que nos façais como bem entendeis.
V. 11: E aconteceu na manhã seguinte que Saul constituiu três pelotões e entraram no meio do acampamento por volta da vigília da madrugada e abateram a Amom até que o dia esquentou. Os sobreviventes e dispersaram e não ficaram dois juntos.
V.12: Então disse o povo a Samuel: Quem são os que dizem Acaso reinará Saul sobre nós? Dá-nos os homens para que os matemos.
V.13: E disse Saul: Não morrerá ninguém neste dia, porque hoje o Senhor promoveu libertação em Israel.
V.14: (e) Disse Samuel ao povo: Vinde e vamos a Gilgal, e renovemos ali o reinado.
V.15: E foi todo o povo a Gilgal e lá fizeram a Saul rei diante do Senhor e ofereceram sacrifícios pacíficos diante do Senhor e lá se alegraram muito Saul e todos os homens de Israel.
Por um regime libertador
a) O arbítrio prepotente e sarcástico diante de um povo desarmado: vv. 1-2.
A situação de Jabes-Gileade na Transjordânia é desesperadora. Os amonitas que se tornaram sedentários por volta de 1.200 a.C., assumindo a forma estatal à margem oriental do Jordão, promoviam incursões expansionistas em direção ao norte, tentando atingir o frutífero planalto central (Stoebe, p.220). Conscientes de sua absoluta superioridade, Naás, seu rei, propõe, aos israelitas aí residentes, um acordo desonesto. Não era um acordo entre partes iguais, mas sim entre um forte com status de dominador assegurado, enquanto que um fraco tinha que se contentar com a condição de vassalo. Esses acordos, comuns no mundo oriental, eram regidos por leis estabelecidas no ato da aliança. Mas a proposta do cacique beduíno não contém condições razoáveis. São tudo, menos direitos assegurados aos subjugados. O que ele propõe é reduzir ao nada a população israelita ali residente. É o retrato fiel do tirano despótico de todos os tempos. Não é por acaso que, justamente nesta semana de reflexão com o texto, um tirano (Somoza) é vencido pelo povo que este reduzira a bagaço de tanto sugar.
b) O povo encurralado em busca de libertação: vv.3-4.
Os anciãos de Jabes são os representantes legítimos da comunidade, responsáveis pelos assuntos políticos. Nosso relato aponta para a independência das tribos entre si. Elas podiam fazer acordos com os amonitas, sem antes consultar as demais tribos. As outras tribos deviam ter esta mesma forma de se autogovernar. (Ishida, p.47). Os jabesitas conseguem negociar um prazo de 7 dias para buscar quem os libertasse de tamanha ameaça de extinção. Também a concessão desta semana de tempo quer realçar a total certeza de que os amonitas eram invictos. Apenas um libertador, indicado por seu Deus, poderá livrá-los da desgraça. No AT, é em situação de injustiça e, em particular, de opressão injusta do povo escolhido que um libertador se faz necessário. Isto se aplica tanto a situações de guerra, quanto a situações de falta de legalidade. (Sawyer, p.478)
O líder guerreiro está às portas. Nada sabemos de uma busca em outros lugares. O território de Israel (v.3 e 7) a ser percorrido deve referir-se ao espaço ocupado pelo povo de Israel. Isto não significa que já formassem uma unidade política. No período pré-estatal havia dois significados para o termo Israel. Uma vez, compreendia a grande comunidade de todas as tribos. Por outro lado, também podia significar uma confederação local de tribos, organizada esporadicamente por um líder carismático num momento crítico. (Ishida, p.36) Em nosso relato, o segundo uso do termo parece mais provável. .
Os mensageiros são mandados, pelos representantes do povo, para o oeste do Jordão, a Gibeá da tribo de Benjamim. Seus habitantes deviam ter laços de parentesco com os de Jabes-Gileade, conforme Jz 21. isto explicaria por que os jabesitas se dirigem, primeiramente, a Gibeá (Soggin, p.43). O povo que recebe as notícias fica profundamente abalado, sem saber o que fazer. Um pranto geral toma conta da população, ciente de sua fraqueza e impotência.
Como evitar a desgraça (v.2) que paira sobre seus irmãos do outro lado do Jordão?
c) O Espírito de Deus faz despontar seu instrumento libertador: vv.5-7a.
Como no tempo dos juizes, um homem, camponês como os demais, é a resposta ao grito desesperador dos habitantes de Gibeá por seus irmãos. Ele nada sabe de uma indicação anterior e secreta (10.6), nem que o espera outra tarefa, além de sua lida diária na roça. Após ser informado do risco de vida que corriam seus companheiros do outro lado do Jordão, Saul é literalmente assaltado pelo Espírito de Deus que o muda em outro homem (10.6). Não para chorar com os que choram, mas para romper com toda limitação imposta, com toda opressão sarcástica.
A razão e o cálculo científico nos dizem: nada podemos fazer, os poderes e os problemas de nossa realidade são demasiadamente ingentes; o que nos resta é uma hesitação entre resignação e o desespero. O Espírito Santo rompe estas barreiras (…). Ele nos coloca a trabalhar, sem que a receosa pergunta pelo sucesso nos continue a paralisar. (Brandt, p.116)
Como primeira medida, o líder carismático retalha uma parelha de bois e envia os pedaços para as tribos, possivelmente, da confederação local. O gesto que já aparece em Jz 19.29ss fica claro a partir da declaração dos mensageiros. Era uma prática para convocar com urgência para a guerra santa, usando esse Instrumento de ameaça. Também a encontramos fora do âmbito das tribos Israelitas (Soggin, p.43).
A participação de Samuel na mobilização é quase nula (Ishida, p.35). Mas é bem provável que Saul tenha explorado a autoridade de Samuel para reunir suas tropas improvisadas (idem, p.48).
d) O povo, apercebido do sinal de Deus, deixa-se organizar para a luta: vv.7b-11.
O povo se sabe defrontado diretamente com o Deus soberano, cuja majestade provoca (…) medo e temor. Nesse período, Israel reconhecia na atividade desses caudilhos que arrastavam grandes massas à guerra santa de libertação, a presença de Javé em sua triste história. (Eichrodt, p.60s)
O número dos soldados arregimentados (300.000 israelitas e 30.000 de Judá), como uma pessoa – tamanha era sua unidade -são naturalmente exagerados. Mesmo que se traduza mil, não como número aritmético, mas como unidade étnico-política ou militar, não chegaremos à cifras condizentes com uma confederação derrotada (Soggin, p.43). Apesar desses elementos controverti¬dos, não podemos simplesmente descartar a narração como saga. As tribos de Judá dificilmente participaram dessa mobilização. Deve ser uma tentativa, em época posterior, de atribuir o acontecimento, provavelmente ocorrido com tribos isoladas (Efraim e Manassés), a todo o Israel (Stoebe, p.228).
Os mensageiros que haviam saído em busca de um liberta¬dor (v.3), podem voltar e anunciar ao povo, cuja existência corria risco de ser extinta, a libertação (v.9), garantida por seu Deus, através de seu representante autorizado – Saul.
Os jabesitas, certos da libertação anunciada, mandam o recado adiante para os amonitas. A sutilidade do aviso salta aos olhos. Aparentemente, uma declaração de quem quer se render. Mas o verbo render-se pode significar também sair para, no caso, para a luta. As tropas de libertação se valem do ataque de surpresa, apanhando os inimigos desprevenidos. O orgulhoso rei Náas foi vergonhosamente derrotado. Há pouco ainda ostentava sua superioridade e achava poder fazer com aquele pobre povo o que bem entendesse. Seus planos expansionistas foram barrados por aquele que foi dotado com o Espírito do Deus desse povo que se encontrava em beco sem saída.
Mesmo que nós atualmente não possamos mais simplesmente encarar mudanças, nivelação de diferenças sociais ou mesmo revoluções violentas como um sintoma da presença do diabo -Lutero ainda assim diagnosticou a revolta dos camponeses na Alemanha do séc. XVI! – permanece a pergunta: Trata-se aqui realmente do Espírito de Deus ou meramente do próprio espírito dos homens? (Brandt, p.42). Onde detectar a presença deste Espírito do Deus libertador?
Já no AT ocorre uma mudança. O portador do Espírito não é mais o poderoso guerreiro, mas parece ser o Servo Sofredor de Is 52 e 53. Aquele que no NT é chamado de portador definitivo do Espírito, vem proclamar libertação (Lc 4.18), desistindo da espada como forma de impor seu poder (Mt 26.53), se vale da impotência do amor para interferir na triste história humana. Com ele, o carismático torturado e morto, o servo desprezado e abandonado, Deus se identificou. (Brandt, p.182) Ele não quer mais demonstrar seu Espírito através de seus exércitos. Se Deus ainda emprega a violência para o bem dos homens, isto o juízo final revelará. O que já agora sabemos com certeza é que ele está presente na não-violência, no sofrimento, na perseguição, no grito dos torturados e mortos por causa da justiça. É exatamente nessa estaca zero que o Espírito se torna criativo, mas nem por isso menos libertador. (Brandt, p. 183s)
O que permanece, apesar das novas preferências, ou justamente por causa delas, é que o Espírito de Deus jamais permite uma retirada covarde da miséria deste mundo. Ele continua a mobilizar o povo que crê no homem da cruz para que lute criativamente por uma nova forma de convivência, mesmo que seja provisória.
e) A implantação do novo regime gera conflitos: w. 12-15. Após seu sucesso militar, atestado de ser o designado de Deus, a assembleia popular pede, como a Gideão (Jz 8.22s), que Saul seja seu rei. Naquela ocasião, Gideão rejeitou a proposta popular, argumentando: O Senhor vos dominará!. Parece que desta vez o povo, através de seus representantes, encontrou a pessoa disposta a encabeçar o novo regime. Talvez não enxergasse, como Gideão, as verdadeiras dimensões dessa mudança histórica na convivência das tribos. A mudança que se prepara não foi um desenvolvimento natural, mas deve ter ocorrido sob duras negociações com Samuel e o grupo fiel a ele. O grupo que defendia o status quo, como único regime compatível com sua confissão (Javé é rei!), manifestou sua total desaprovação.
Em 1Sm 10.27, já se levantaram vozes contrárias quanto à Indicação de Saul. Alguns comentaristas vêem em 11.12-14 uma harmonização com aquela referência (assim Stoebe, p.228), mas lá o grupo duvida da capacidade de Saul para comandar as tropas de libertação, enquanto que aqui (v. 12), após o sucesso militar, não querem aceitá-lo como rei.
Curiosamente o povo, a esta altura, já conquistara Samuel para seu fado. Tanto é que pedem dele os defensores do regime obsoleto. A força da assembleia popular é evidente nos primórdios do reinado em Israel. O povo tinha projetado seu novo regime a partir dos povos vizinhos e defendia como plataforma:
1º.) Na política externa, um poder militar mais eficaz para garantir a vida do povo. Isso significava um governo hereditário (l Sm 8.19-20).
2°) Liderança estável (o que um líder carismático temporário não podia oferecer).
Onde residia o conflito principal na implantação do novo regime? O povo estava colocado diante de duas alternativas: Por um lado, crer em Javé como rei e libertador e viver ameaçado pelas novas incursões de algum povo vizinho, uma vez que o líder carismático, após sair vitorioso da luta, voltava para seus afazeres. Por outro lado, adotar o protótipo de reinado, conhecido pelas tribos, a única forma de governo que poderia oferecer segurança, mas que estava comprometido com uma ideologia incompatível com sua fé em Javé, como rei. No mundo cananeu, o reinado vinha acompanhado de caracteres divinos e por isso despóticos em relação a seus súditos. Se esse tipo de monarquia fosse aceito acriticamente, viria em prejuízo da fé em Javé e, consequentemente, o povo voltaria a perder sua liberdade. Desta vez não a perderia para um povo vizinho opressor, mas para o novo governo que instalariam.
Sob pressão da realidade, porém, eles se viram forçados a pensar e a atuar para encontrar uma solução, a qual, sem negar as exigências da fé, respeitasse também as exigências prementes da situação real do povo oprimido. (Mesters, p.23) Esta síntese conseguiram, negociando com Samuel que não só cedeu ante as pressões do povo, mas participou ativamente no estabelecimento do novo regime, quando viu garantida a soberania de Javé no reinado. Os contornos de uma monarquia, assim entendida, devem ter sido claramente definidos, ao proclamar diante da assembleia do povo, o direito do reino (10.25). Apesar de lSm não relatar sobre seu conteúdo, deve ter-se baseado nos principais deveres do rei em Dt 17.14ss: 1S) ser candidato do povo de Israel; 2°) garantir a liberdade conquistada no Egito; 3°) ter uma estrutura de governo que não oprima seus irmãos.
Saul se compromete com um reinado diante de Javé, pois ele fala do acontecimento afirmando: hoje o Senhor promoveu libertação em Israel! (v. 13). Portanto, não será um regime que venha ferir a soberania de Javé, antes será instrumento dele para promover e assegurar libertação para seu povo que corria risco de vida.
Com essas salvaguardas, o povo, Saul e Samuel se dirigem a Qilgal, centro cultual da tribo de Benjamim. Esta tribo parece ter dado o apoio principal ao governo de Saul (Stoebe, p.230). Lá não renovaram o reinado (v.14), como quer o redator que lutou por uma harmonização dos diferentes textos, mas o estabeleceram. Vencidos os conflitos, o êxito é total, quando agora o povo pode entregar o poder ao primeiro governante do novo regime. Visivelmente alegre, o povo festeja, em culto de ação de graças, o resultado de sua ação política, na qual não precisaram negar sua fé.
VI – Texto versus realidade
O elemento desafiador deste testemunho bíblico não está em que nos empenhemos por um regime monárquico, como único compatível com nossa fé. Muito pelo contrário, 1 Sm 11 é uma voz eloquente do interesse de Deus pela libertação histórica de um determinado povo e de como ele prepara seus instrumentos (pessoa e regime) para essa ação. Por outro lado, vemos os membros desse povo preocupados em articular sua fé diante da nova forma de governo que a realidade impõe como única libertadora. Toda fé que não se encarna na dura realidade em que vive o povo, é alienadora. Podemos reservá-la para o culto apenas, justificando até nosso distanciamento da luta por uma convivência mais justa. Ou ainda podemos negar nossa fé, ao abraçar, acriticamente, o programa de um grupo da sociedade, sem perguntar: Corresponde ele às exigências de nossa fé em Deus, como libertador absoluto em Jesus? Respondem tais propostas, de fato, aos gritos do povo? (Veja carta aos eleitores, acima mencionada.)
Israel lembra a comunidade cristã da necessidade de que a fé que atua no amor (Gl 5.6) se expresse também na ação política. Ela fará isto, somando forças com grupos que querem de fato um povo com direito à vida. Uma democracia cristã é tão inviável quanto o é a civilização cristã!
Para onde nos empurra hoje o Espírito de Deus? Será ele menos atuante do que nos tempos dos guerreiros carismáticos? Será que o Espírito do Pai de Jesus Cristo não equipa mais para a luta dentro da história?
O Espírito sempre se torna ativo no amor e este não podemos restringir a bel-prazer.
Como auxílio para a reflexão – texto X realidade – transcrevo um programa mínimo, elaborado pela Frente Nacional do Trabalho, como base para discussão entre trabalhadores em época de eleições:
– defesa da liberdade sindical, de forma que os sindicatos defendam os interesses dos trabalhadores;
– alteração da lei do FGTS, garantindo estabilidade no emprego do trabalhador;
– participação dos trabalhadores na administração do INPS, do BNH, do PIS/PASEP etc., que são sustentados pelo dinheiro do próprio trabalhador;
– alteração da lei de greve, de forma que o trabalhador tenha poder de barganha, isto é: tenha força e condições para exigir melhores salários e condições de trabalho; (Está sendo conquistado em parte!)
– participação dos trabalhadores na elaboração, aprovação e execução da política econômica do governo, pois os trabalhadores são os mais atingidos, principalmente através da política salarial;
– implantação de uma reforma agrária efetiva, que garanta posse da terra e condições de vida digna ao homem do campo e que garanta um preço justo para os produtos que o lavrador plantar e colher, pondo fim aos latifúndios;
– fim dos atravessadores e intermediários, de forma que o lavrador receba um preço justo por seu produto, e que esse produto não chegue encarecido ao consumidor;
– mudança na política econômica do governo, deixando o país de exportar os nossos alimentos mais necessários para o próprio povo, e não permitindo que as multinacionais consigam lucros fabulosos às custas da exploração do trabalhador brasileiro;
– convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte (uma assembleia especial para redigir uma nova Constituição), com a máxima participação dos trabalhadores,
– luta pela criação de um partido dos trabalhadores, dirigido pelos trabalhadores. (Extraído de FNT, Cad. de Formação no 3)
VII – Bibliografia
– BRANDT, H. O Risco do Espírito. São Leopoldo, 1977.
– CHINO Y, E. Sociedade. Uma introdução à sociologia. São Paulo, 1976.
– EICHRODT, W. Teología del Antiguo Testamento. Vol. 2. Madrid, 1975.
– HERMANN, S Geschichte Israels in alttestamentlicher Zeit. München. 1973.
– ISHIDA, T. The Royal Dynasties in Ancient Israel. Berlin/New York, 1977.
– MESTERS, C. Palavra de Deus na história dos homens. Vol. 1. 5a ed.. Petrópolis, 1973.
– SAWYER, J. What was a mosia? In: Vetus Testamentum. Vol. 15 Leiden, 1965.
– SOGGIN, J.A. Das Königtum in Israel, 1967.
– STOEBE. H. J. Das erste Buch Samuelis: Kommentar zum Alten Testamenl. Vol. 8/1 Gütersloh, 1973.
Recomenda-se: A História do Voto no Brasil e Eleições; Voto de Trabalhador (respectivamente, cadernos 2 e 3 da série Debates, da FNT/ Trata-se de brochuras para debates em grupo, que podem ser solicitadas da: Frente Nacional do Trabalho, Av. Ipiranga, 1267 — 9e andar, 01.039 São Paulo (Cap.)