Prédica: 1 Tessalonicenses 4.1-8
Autor: Gerd Uwe Kliewer
Data Litúrgica: Domingo Reminiscere
Data da Pregação:02/03/1980
Proclamar Libertação – Volume: V
SANTIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS
I – Situando o texto
Tessalônica, cidade portuária no mar Egeu, era, no tempo das viagens missionárias de Paulo, um centro comercial de alguma importância, a porta para o interior da Macedônia e para o oriente. Era a capital de província e sede de um pro-cônsul. Participava do comércio intenso que se desenvolvera, sob a hegemonia romana, entre os países adjacentes ao Mar Mediterrâneo. Apresentava as características de um porto: centro de informações, encontro de culturas, população flutuante, albergues, bodegas e semelhantes, comerciantes hábeis e nem sempre honestos, prostitutas, pessoal desocupado vagando pelas ruas, acentuadas diferenças sociais, exploração dos vícios, etc. Paulo passou duas vezes por esta cidade, na sua segunda e terceira viagem missionária. At 17.1ss nos relata que, na primeira vez, Paulo teve que fugir, depois da pregação, da ira dos judeus que instigaram a turba de marginais e desocupados para expulsá-lo. A comunidade que surgira da atuação de Paulo era formada, predominantemente, de prosélitos – não-judeus já ligados à sinagoga que, no evangelho pregado por Paulo, descobriram a sua libertação do status inferior frente aos judeus. Incluía também convertidos da idolatria (1 Ts 1.9). Paulo, preocupado com essa comunidade que ele teve que deixar antes de concluir o trabalho e que ainda não estava firmada na fé e na doutrina, escreve esta carta, a mais antiga das suas cartas contidas no NT, e também o escrito mais antigo do mesmo. A redação, provavelmente, aconteceu em Corinto, onde o apóstolo parou por algum tempo durante a segunda viagem missionária. O objetivo da carta é incentivar, admoestar e firmar a comunidade. Ela está permeada pela expectativa da volta iminente do Senhor Jesus Cristo. Essa expectativa, porém, não é motivo para desleixo ou passividade, ou para uma exaltação religiosa que esqueça as coisas deste mundo. Antes, exige um preparo intensivo para esse evento. Paulo recomenda aos cristãos de Tessalônica uma vida santificada, sóbria, trabalhosa (4.9-12), para estarem preparados para a vinda do Senhor.
II – O texto
V.1: Além disso, irmãos, vos rogamos e exortamos no Senhor Jesus que, como de nós recebestes quanto à maneira de viver e agradar a Deus, assim também vivais, para que progridais cada vez mais.
V.2: Pois sabeis quais instruções eu vos tenho dado de parte do Senhor Jesus.
V.3: Pois esta é a vontade de Deus: a vossa santificação, (isto é), que vos abstenhais da prostituição;
V.4: que cada um saiba adquirir (possuir) o seu próprio recipiente (instrumento, objeto) com santificação e respeito,
V.5: e não dominado pela paixão, como fazem os gentios que não conhecem Deus;
V.6: que ninguém explore ou engane o seu irmão no negócio; porque o Senhor é o vingador de todas estas coisas, como já vos dissemos e testemunhamos antes.
V.7: Pois Deus não nos chamou para a impureza, mas para a santificação.
V.8: Destarte, quem rejeita isto, não rejeita ao homem, mas a Deus que também vos dá o Espírito Santo.
III – Procurando entender o texto
Os vv.1 e 2 servem de introdução à perícope. Paulo lembra os leitores que ele está reforçando ensinamentos já feitos anteriormente, e ressalta que não são seus, mas do Senhor Jesus.
O v.3 dá a afirmação chave: Essa é a vontade de Deus: a vossa santificação. O termo usado no texto original, traduzido como santificação, indica um processo, não um estado. Aliás, isso é igual no português, onde santificação indica um processo e santidade, um estado. Um processo que pressupõe a reconciliação com Deus e, a partir daí, visa a purificação da vida corporal, segundo os preceitos da vontade de Deus. Designa, então, o estilo de vida do cristão, a base ética da sua atuação neste mundo, Imprescindível para a salvação. Isto é, a santificação é consequência da salvação, e, ao mesmo tempo, condição para permanecer na salvação.
Nos vv. seguintes, Paulo concretiza essa exigência da santificação em áreas problemáticas da vida dos tessalonicenses: a prostituição, as relações matrimoniais, os negócios.
Para Paulo, era inconcebível que urr cristão participasse da prostituição, em qualquer forma. O termo sado aqui (PORNEIA) não se refere somente à venda de amor por parte de mulheres. Aliás, parece-me que toda a perícope é dirigida, em primeiro lugar, aos homens. Portanto, não se trata de prostitutas, mas de prostitu¬tos, isto é, de homens que, para sua satisfação sexual, fazem uso de outras pessoas, moças ou rapazes. Mais tarde, na carta aos Coríntios, Paulo explicará melhor o seu repúdio: Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo? Posso então pegar os membros de Cristo e fazê-los membros da prostituta? Nunca! Ou não sabeis que, quem dorme com a prostituta, é um corpo com ela? (1Co 6.15s). Para Paulo, com a sua formação rabínica, a prostituição ligava-se ainda à idolatria; e de fato, no seu tempo, existia a prostituição sacra, ligada aos templos de diversos deuses. Mas, além disso, Paulo ainda designa outras formas de desregramento sexual com o termo prostituição.
O v.4 dá alguma dor de cabeça. O que vem a ser adquirir (possuir) o seu próprio recipiente (instrumento, objeto) – SKEUOS KTASTHAI, em grego? o substantivo grego SKEUOS significa, também quando usado no NT, recipiente, vasilhame, instrumento É evidente que a palavra aqui tem um sentido figurativo. Parece claro que tem algo a ver com sexo, em continuidade com o pensamento iniciado no versículo anterior. Três interpretações têm sido feitas na história exegética desse versículo (cf. ThWNT VIII, p. 366ss):
a) o substantivo SKEUOS é traduzido por corpo. Havia, na filosofia grega, a concepção do corpo como recipiente da alma. Daí ocorre, por exemplo, em Platão, o uso do termo com o significado de corpo. A palavra, porém não é usada com esse significado no NT. Essa concepção filosófica não aparece nos escritos de Paulo. Se em 2Co 4.7 ele fala do tesouro em vasos de barro, referindo-se aparentemente ao seu corpo defeituoso, isso tem significado sim¬plesmente alegórico, sem conotação filosófica. Será que se pode presumir que, para ele, esse uso da palavra era tão corrente que ele troca corpo por SKEUOS = recipiente? Fato é que, já muito cedo, entre os pais da igreja, surge esta interpretação. O versículo então significaria: Cada um saiba adquirir (possui) o seu corpo com santidade e respeito. Qual o sentido dessa exigência? Tratando-se do próprio corpo – as traduções católicas preferem esta interpretação -, significa, em continuidade à proibição da prostituição, uma exortação ao controle das paixões, dos desejos corporais, à autodisciplina, à ascese. Seria, então, exigência da santificação que o homem mantenha o seu corpo sob controle, não se deixe dominar pelos impulsos carnais, como os gentios que não conhecem Deus (também Paulo não estava livre de chavões e estereótipos!), e leve uma vida regrada. Este significado do versículo também não muda – mas restringe-se à área sexual -, quando a palavra SKEUOS é traduzida por membro masculino, o que também é possível.
b) A segunda possibilidade é traduzir SKEUOS por mulher. Uso semelhante do termo encontramos em 1Pe 3.7, onde se fala de vossa mulher como o recipiente mais fraco. Na sociedade daquela época, incluindo a hebraica, a mulher estava numa posição nitidamente secundária, era considerada objeto de posse. Por exemplo, o mandamento Não cobiçarás! (Ex 21.17) prevê a possibilidade de cobiçar – e roubar – gado, escravo, mulher, casa. A mulher entra na categoria dos pertences do homem. Mas não se fala na possibilidade de roubar um homem. Correspondia à ideologia machista daquele tempo (só daquele tempo?) ver na mulher um objeto, um instrumento para a procriação e a satisfação sexual; era ela recipiente do sémen masculino e, eventualmente, do filho que dele surgisse. Paulo, filho do seu tempo, participaria dessa ideologia machista e designaria, consequentemente, a mulher como SKEUOS = recipiente. A tradução do versículo seria: Cada um saiba adquirir a sua própria mulher com santidade e respeito. Significaria uma exortação aos tessalonicenses solteiros de, em vez de se deixarem contaminar pela prostituição, procurarem uma esposa e se casarem, encontrando no lar a satisfação sexual. Corresponderia à orientação dada por Paulo em 1Co: por causa da prostituição cada um tenha a sua própria mulher, e é melhor casar do que queimar em paixão (1Co 7.2 e 9). O matrimônio, uma proteção contra a prostituição – já que os machos precisam de sexo : não poderemos negar que esta visão definiu a ética sexual cristã durante a maior parte da história do cristianismo. A mulher é objeto, instrumento -como a prostituta -, mas elevada ao status legal de esposa, mãe, recebendo a sua subsistência em troca dos serviços prestados. Seria essa a intenção de Paulo? Verdade é que ele vai um pouco além da ética sexual do seu tempo. Ele acrescenta o em santificação e respeito, e não dominado pela lascívia…. Este acréscimo expressa uma profunda consideração para a pessoa da mulher, proíbe abusos e garante à mulher que ela seja respeitada dentro da sua função e posição.
Pode-se ainda substituir o verbo adquirir, por possuir, dando-se assim um significado continuado à exortação. Cada um saiba possuir a sua mulher com santificação e respeito. Com isso, a exortação estende-se a todos os maridos e define as suas responsabilidades no sentido acima exposto. Mas a mulher fica a possuída, o marido, o dono.
c) Existe uma terceira possibilidade de tradução. Esta vê a locução SKEUOS KTASTHAI = adquirir, possuir um recipiente, uma mulher como um eufemismo para fazer amor, manter relações sexuais. Paulo teria, simplesmente, traduzido literalmente para o grego este eufemismo em uso na literatura hebraica. A tradução do v.4, então, seria: Cada um saiba fazer amor com a sua esposa em santificação e respeito, não sujeito à lascívia como os gentios…. Se interpretarmos assim, Paulo estaria opondo aqui duas maneiras de manter relações sexuais: A prostituição (v.3), onde uma pessoa procura satisfação sexual às custas da outra, onde o(a) outro(a) não é parceiro(a), mas objeto, instrumento para o prazer próprio. Onde o próprio prazer está no centro, onde o outro é obrigado a dar – em troca de dinheiro, de outras vantagens ou à força -, e a gente recebe prazer. Um ato egocêntrico, que nega o outro como parceiro. O que sobra é desprezo, desrespeito. E a segunda -o fazer amor em santificação e respeito? Decerto não haverá abuso, sujeição, busca de prazer egocêntrico. Haverá, sim, aceitação, disposição a dar, sensibilidade, compreensão, desejo de causar prazer e bem-estar ao parceiro, entrega total. Haverá liberdade de dar e receber, e o prazer surgirá como a soma das sensações mútuas. E sobram gratidão, realização e respeito.
O leitor, a esta altura, certamente já descobriu que a minha opção é a c). Mas, poderá perguntar: Não seria exigir demais de Paulo, vendo-o – solteiro e desconfiado das mulheres – assumir posições extremamente avançadas, ou melhor, inconcebíveis dentro da sua cultura e época? Realmente, é bem possível que a sua concepção se aproximasse mais da interpretação b), que, aliás, já é bastante avançada para um homem do seu tempo. Apesar disso, eu pergunto: Não nos será permitido estender as linhas libertadoras que ele aponta, atualizando-as para o nosso contexto, onde a exploração do sexo continua, onde pessoas humanas são transformadas em objetos sexuais, onde a opressão sexual pode e deve ser vencida?
O v.6 aponta outro problema ético dos tessalonicenses. Grande parte dos membros da comunidade provavelmente eram comerciantes, e, entre eles, a tentação de aumentar o lucro através de fraudes e usura era uma tentação constante. Ninguém explore ou engane o seu irmão no negócio…, exorta Paulo. Decerto podemos entender, aqui, sob irmão, o próximo, e não só o colega da comunidade. Neste versículo, alguns tradutores (também Almeida), em vez de no negócio traduzem neste assunto, considerando-o então uma continuação do versículo anterior: …e ninguém explore ou engane o seu irmão neste assunto (i.e., na área sexual)…. Esta tradução, além de não ter base suficiente no texto original, não fornece um sentido muito claro.
O v.7 reforça a colocação inicial do v.3; não há dúvida sobre qual a impureza: a prostituição, o abuso sexual, a fraude no negócio…
O v.8 esclarece: é Deus mesmo que está sendo rejeitado na irmã rebaixada pela prostituição, na esposa desrespeitada, no colega explorado no negócio. Deus, que nos deu o Espírito Santo, o Espírito da Santificação, está sendo ofendido. Não vamos poder dizer que a nossa relação com a prostituta não afeta a nossa fé em Deus, que o sofrimento do nosso parceiro matrimonial é para a maior glória de Deus, que Deus fecha um olho quando aproveitamos vantagens ilícitas…
IV — Meditando
Que vem a ser santificação? Que ela é uma consequência da salvação em Jesus Cristo e do dom do Espírito Santo, parece claro, mas quais os seus efeitos, suas manifestações? Podemos aceitar a doutrina e prática dos pentecostais, que entendem a salvação ou conversão como um ato concreto de libertação de vícios e males, através da força do Espírito Santo, que resulta, então, numa vida santificada, sóbria, sem fumo e álcool, prostituição ou outros excessos? Será que bastam esses sinais externos de santidade? Ou devemos entender a santificação como um processo íntimo, um exercício de domínio próprio, de controle das paixões e vontades más, de ascese e abstenção? Ou nos baseamos na santidade por graça imerecida, considerando-a uma qualidade advinda da morte de Jesus por nós na cruz?
Para Paulo, não há dúvida de que a justificação é fruto da fé em Jesus Cristo, o Senhor e Salvador, e que esta justificação santificava os crentes. Mas ele não pára por aí. Ele vê que a santificação tem consequências bem concretas para a vida do cristão. A comunidade cristã sempre esteve consciente disso, e tem sofrido profundamente as deficiências neste campo. Grande parte dos conflitos e cismas do cristianismo têm sua origem na insatisfação com a falta de santidade entre os cristãos. Para realizar a comunidade dos santos, era necessário afastar-se da grande massa dos perdidos, formar uma comunidade à parte. O surgimento das ordens monásticas, dos anabatistas- na época da Reforma, de muitos movimentos religiosos da atualidade são exemplos disso. Santificação tornou-se sinônimo de ascese, abstenção do matrimônio, de relações sexuais, de boa comida, de prazeres em geral. A santificação se relacionou com conceitos da filosofia grega, que estabeleciam nítida diferença entre corpo e alma, dando ao corpo um significado subordinado, perecível desprezível e pregando a imortalidade, a divindade da alma. Assim, santificar-se era entendido como castigar o corpo, livrar a alma do peso dele, negar as suas necessidades e exigências, controlá-lo nas suas manifestações. A maior ênfase, neste sentido, foi dada à área sexual. O sexo, muitas vezes, aparecia como inimigo número um da santificação. Uma das consequências desse conceito de santidade tem sido a exigência do celibato.
Não me parece que as exortações de Paulo apontem para essa inimizade ao próprio corpo. O seu repúdio à prostituição não é repúdio ao ato sexual, mas à situação ignóbil em que ele se realiza, ao rebaixamento da pessoa humana que dele participa, e ainda às conotações idolátricas que o. acompanham. Paulo valorizava o matrimônio, a família – por que iria repudiar o sexo, fazer da renúncia a ele uma condição de santidade? Verdade é que ele considera o seu estado de solteiro uma situação conveniente, mas reconhece que isso não vale para todos os homens, e não vê mérito nela. (1Co7.7) O acento que coloca é outro. Parece-me que define a santificação, não a partir do próprio corpo, mas a partir do próximo. A santificação é um processo que se manifesta nas minhas relações com o próximo e, em termos mais amplos, nas minhas relações sociais. É na práxis diária da interação com os outros homens, meus irmãos e irmãs, que a santificação se realiza e ganha conteúdo concreto. O mesmo vale para a impureza, que é o contrário dela. A relação com a prostituta contamina e me rebaixa, não por a mulher ser impura, mas por ser o meu ato impuro, egocêntrico, rebaixante. A fraude no negócio me contamina, porque com ele eu prejudico, rebaixo o meu próximo. E de maneira positiva: o ato sexual entre parceiros que se amam, que se aceitam e respeitam, está incluído na santificação, porque está livre da vontade de aproveitar-se, de rebaixar o outro, de explorá-lo. Não é proibido fazer amor, e menos ainda fazer negócios – mas a honra e o bem-estar do próximo têm que ser resguardados; ele tem que ser aceito como pessoa, como filho de Deus, meu irmão. E assim, dessa santificação das relações com o próximo, das relações sociais, cresce a comunidade, a comunhão dos santos, na qual Cristo se faz presente. Por isso, quem rejeita a santificação das suas relações com o outro, não rejeita o homem, mas Deus.
Acho que o acento da pregação tem que recair nesse aspecto: santificação das relações entre os homens como consequência da salvação pela fé em Jesus Cristo. Os dois casos concretos abordados por Paulo, a vida sexual e os negócios, ainda estão longe de serem suficientemente santificados na nossa comunidade e sociedade, mas não precisamos restringir-nos a eles. Acho que o primeiro é paradigma para as nossas relações íntimas, afetivas e emocionais com o próximo, enquanto que os negócios servem de paradigma para as relações na área profissional e pública, como, por exemplo, as relações entre patrão e empregado, freguês e vendedor, cobrador e passageiro, médico e paciente, etc. Há muitas possibilidades de desenvolver o assunto nesse sentido.