Prédica: 2 Coríntios 12.1-10
Autor: Wilfrid Buchweitz
Data Litúrgica: Domingo Sexagesimae
Data da Pregação:10/02/1980
Proclamar Libertação – Volume: V
I – Nosso texto
Faz parte do terceiro grande bloco da epístola, o qual abrange os caps. 10 a 13. O trecho é praticamente todo ele um vigoroso posicionamento frente a ataques, desconfianças e insinuações lançadas contra Paulo na comunidade de Corinto, por adversários que não é possível identificar exatamente, mas que Paulo desmascara como apóstolos da mentira. No cap. 10 Paulo rejeita três acusações e em 11.1-12.13 ele aponta para as inúmeras formas de sofrimento por que passou a serviço do evangelho, e para as revelações celestiais de que foi considerado digno. Em 12.14-13.10 Paulo fala dos planos para nova visita a Corinto, tece severas admoestações e ameaça usar de rigor no caso de a comunidade não se corrigir.
A tradução de Almeida é muito difícil de ser entendida numa leitura só e por isso precisa ser lida em partes para a comunidade e explicada, ou então se opta por uma tradução mais facilmente entendível, como, por exemplo, a Bíblia na Linguagem de Hoje. Simplesmente ler Almeida de um só fôlego será falta de sensibilidade para com a grande maioria das comunidades de ouvintes.
II – Exegese
Paulo sente necessidade de tomar medidas que normalmente não tomaria. A sua idoneidade pessoal, pastoral e teológica foi questionada e posta em dúvida, e a comunidade de Corinto foi afetada por isso e está em perigo. Paulo reage, enumerando uma série de acontecimentos na vida dele que, assim espera, podem ajudar a comunidade a reconhecer sua autoridade e honestidade. O que ele nunca fizera, por não ser conveniente nem importante, e por poder ser mal interpretado, Paulo se vê obrigado e livre para fazer agora: ele fala de si, fala daquilo que sofreu e experimentou. Sofreu e experimentou muito. Dificilmente alguém outro sofreu e experimentou tanto. Ele está disposto a competir com qualquer um, especialmente com aqueles que lhe negam autenticidade e autoridade. Ninguém experimentou mais que ele. Ele esteve no terceiro céu, esteve no paraíso, ouviu palavras que não se pode e não se deve dizer. Ao mesmo tempo está experimentando o inferno, o sofrimento, a mão de Satanás, e nem Deus o liberta disso, para que não se exalte. Experimentou céu e inferno, e bem que poderia falar disso. Se quisesse se comparar com outros, dificilmente alguém chegaria perto dele. Mas esta perspectiva de ver as coisas não leva a nada, não constrói, porque não é a perspectiva objetiva, verdadeira. A perspectiva verdadeira é outra, a de que o autor de tudo é Deus. A fonte da vida e de tudo o que a vida traz consigo é o poder de Cristo. Ele, Paulo, por si não é e não fez nada. Ele não quer ser nada. A fonte de sua vida e ação é a graça de Deus. Paulo, em última análise, é apenas receptor e portador da graça de Deus. Mas justamente por isso ele é portador de algo vital para outros; neste caso, a comunidade de Corinto. Ele passou esta graça adiante, fez-se instrumento dessa graça; a comunidade de Corinto tornou-se receptora dessa graça. Agora Paulo não pode ficar de mãos cruzadas quando este estado, esta situação, esta comunidade está sendo destruída. É de sua responsabilidade defender a graça de Deus, alertar a comunidade, desmascarar os adversários, os falsos profetas, os atrapalhadores de uma comunidade, os que de uma ou outra forma, dependendo de quem são os adversários, querem acrescentar algo à graça, querem complementar a graça e por isso a substituem, a destroem.
A experiência da graça deu a Paulo a liberdade de pedir a Deus, insistir com ele, que o espinho na carne lhe fosse tirado. Por experimentar a graça e confiar nela ele tem esta liberdade de pedir que Deus o liberte de seu sofrimento. Quando Deus lhe nega o pedido, Paulo aceita porque sabe que a graça com isso não fica diminuída. Se Deus o libertasse do sofrimento talvez Paulo começaria a confiar em si, em sua força, em suas qualidades, em seus méritos e ofenderia a graça de Deus. Pelo fato de Paulo aceitar a resposta de Deus se percebe como a graça divina é a força propulsora de sua vida, se vê que, de fato, a graça lhe basta. O não atendimento por Deus de orações de cristãos é, muitas vezes, dos maiores sofrimentos. Ouvir um não de Deus, esperar em vão a resposta de uma oração, é dos maiores causadores de sofrimento para o cristão.
Paulo se satisfaz com a graça de Deus, vive e prega a partir dela. A graça de Deus lhe é base e conteúdo da vida e o era para a comunidade de Corinto, também. Como tudo isso está ameaçado agora, Paulo se dispõe a fazer algo que normalmente não faria: aponta para sua vida, não por causa de si mesmo, mas para que através de sua vida a graça de Deus seja reconhecida e ajude os coríntios a se posicionarem corretamente. Ele faz isso com certo medo de ser mal entendido, de os homens enxergarem a ele, Paulo, em vez de enxergarem a Jesus Cristo. Mas já que seus adversários estão fazendo justamente isso e estão levando os coríntios a fazê-lo também, Paulo se apressa em tentar ajudá-los a verem aquele quadro na perspectiva correta. Paulo está neste quadro, mas ele é instrumento apenas; é verdade que um instrumento valioso, mas apenas instrumento. O homem é tentado constantemente, também Paulo sente o perigo da tentação, de rejeitar o papel de instrumento e se transformar em agente, ator, autor. Homens fortes, homens sábios, homens auto-suficientes correm especialmente perigo e então se tornam empecilho a ação de Deus. Homens fracos se prestam mais facilmente a serem instrumentos da ação e da graça de Deus, não por mérito deles, mas porque eles mesmos reconhecem a presença e a bênção da graça de Deus em suas vidas. Por isso Deus diz: a minha graça é o que de mais importante e vital vocês podem ter na vida.
III – Meditação
A Igreja é fruto da graça de Deus e, em segunda instância, ela é ao mesmo tempo instrumento da graça de Deus. Por isso Igreja sempre se deve à graça de Deus, e só à graça de Deus. Ao mesmo tempo a Igreja é devedora da graça de Deus a todos aqueles homens que ainda não ou não mais desfrutam dessa graça. Se a Igreja se nega ou se omite no papel de portadora da graça de Deus, graça que se torna audível e palpável e visível, ela se torna infiel à graça da qual ela própria vive.
É vital a Igreja ter consciência da verdade da graça e de que a graça lhe basta. É sabido que muitas vezes as igrejas adotam substitutivos para a graça. Querem se garantir com sua própria organização e administração, com seus programas de trabalho, com seus prédios funcionais e vistosos, com seu esquema de teologia. As igrejas e seus membros gostam de uma igreja forte, impressionante, de uma direção forte e dinâmica, e nem sempre notam que com tudo isso estão começando a substituir a graça por serviço a si mesmos, por boas obras voltadas para si próprios. As comunidades gostam de pastores impressionantes, que assumem a responsabilidade. Muita gente se apoia em pastores fortes, dinâmicos, com oratória fluente, pastores que mostram produção. Muitas vezes pastores se tornam substitutos da graça, substitutos de Jesus Cristo. Às vezes as pessoas se amarram mais no pastor do que em Jesus Cristo.
Também nós, pastores, gostamos de ser fortes, sábios, impressionantes, ter boa formação teológica, ter experiência no trabalho, pregar em igrejas grandes e cheias de gente, fazer programas bem sucedidos, usar microfone. Espinhos na carne às vezes se tornam fracasso pessoal, diminuem o valor da pessoa. Espinhos na carne conseguem cegar os olhos para a graça e, por vezes, são vistos e interpretados como sinais de ausência de graça.
Às vezes o aparato de uma igreja e os muitos programas de um pastor requerem tanta atenção e dedicação que impedem a atenção à graça. Estas coisas exigem tanto tempo e forças que tiram a liberdade de se entregar à graça. Prendem tanto que provocam escravidão e, mesmo querendo, não se consegue dar chance à graça. Numa época de grande confusão religiosa e teológica igrejas tentam garantir com própria sabedoria a pureza de sua doutrina. Então acontece como numa ditadura: Precisa-se impor cada vez mais a própria posição e reprimir cada vez mais a posição do outro. A opressão e a repressão teológicas e eclesiásticas têm que ser cada vez mais aperfeiçoadas para garantir a sobrevivência. Linhas teológicas diferentes têm que ser recusadas e eliminadas para se fortalecer e garantir a própria linha, sem se perguntar se a graça de Deus não poderia estar agindo livre e soberanamente na outra linha e na minha linha também. O corpo de Cristo, de repente, tem que ter somente pés para missão em outras áreas, ou somente mãos para fazer diaconia, ou somente ouvidos para atitudes poimênicas, ou somente bocas para protestos políticos, não bocas para anunciar perdão e conforto, ou somente para anunciar perdão e conforto, não mais bocas para denunciar injustiças. Pobre corpo de Cristo que se torna monstro de Cristo.
Paulo pediu aos coríntios que tentassem identificar a graça de Deus atrás de tudo aquilo que ele tinha dito e feito. Pediu que não olhassem para ele, suas qualidades pastorais, teológicas, morais. Onde é possível identificar a graça de Deus numa igreja, numa comunidade, num grupo, num pietista, em alguém da esquerda, ali Deus está usando este instrumento para construir seu reino e sua Igreja. Certamente nem sempre é fácil; às vezes é fácil, mas a gente nem se dá ao trabalho de tentar identificar a graça.
Não que igreja forte e bem administrada e pastor forte e dinâmico excluíssem a graça de Deus automaticamente. Uma igreja bem administrada pode ser instrumento mais eficiente da graça de Deus do que uma igreja sem muita organização. Certamente boas teologias e boa administração pouparam muitas igrejas de confusão e de um testemunho negativo aos olhos deste mundo. Ao mesmo tempo, a história tem exemplos de sobra de que em tempos de dificuldade e perseguição igrejas se renovaram e fortaleceram. Outro dia li uma palavra, uma espécie de provérbio, que dizia: Quando o pastor está na prensa, a comunidade se beneficia do óleo. Quantas vezes pessoas idosas e doentes confortam pessoas jovens e saudáveis.
Igreja só pode ser forte em cima da graça. Pastor só pode ser eficiente em cima da graça. E em cima da graça igreja é forte, mesmo quando não cai muito na vista. Pastorado em cima da graça tem garantia de bênção. Igreja em cima da graça tem promessa de vitória, mesmo numa época de confusão teológica e religiosa.
Onde está a graça na minha vida e pastorado? Tenho lugar para ela? Como vejo os meus espinhos na carne? Aceito-os para dar lugar à graça? Uso a graça que Deus me concede para pedir que Deus arranque os meus espinhos, e os da minha igreja, e os de meus colegas, e os de outras igrejas?
Ainda corremos outro perigo. O risco de, por uma falsa modéstia e falsa humildade, não mencionarmos os frutos que Deus por graça realiza através da nossa fé, de escondermos por falsa humildade os serviços que Deus realiza por graça através de nossa igreja. Às vezes tendemos a colocar a luz debaixo do alqueire.
Que é graça, concretamente? Pode ser uma palavra, uma notícia. Pode ser uma ação concreta, onde uma palavra não bastaria, onde uma palavra poderia ser desgraça. Graça, quando. apenas palavra pode se tornar desgraça. Graça, quando apenas ação também pode se tornar desgraça. Quando é que graça é graça e quando ela se torna desgraça?
IV – Prédica
Uma possibilidade é enfocar o texto a partir da missão. Que significa para o cristão e para toda uma igreja receber a graça de Deus? Pode-se ficar com ela sem passá-la adiante. Em nossa Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil temos muito pouca e, às vezes, nenhuma consciência missionária. Como se na nossa própria Igreja ou fora dela não existissem mais, ou não existissem de novo, pessoas que não sabem da graça de Deus e não a experimentam! Quão facilmente acomodamo-nos em usufruir da graça que nos é dada. Como seria o papel de instrumentos da graça de Deus?
.Outro caminho possível seria tentar ver-nos como cristãos e igreja numa época de grande pluralismo religioso e teológico. Como ser instrumento em favor da autenticidade do evangelho da graça, em meio à confusão das religiões e teologias? Como viver um ecumenismo autêntico junto com outras igrejas que confessam Jesus Cristo como Senhor e Salvador? Como viver o pluralismo teológico dentro da própria igreja? Como discernir os espíritos a partir do texto, dentro da própria igreja? Sem dúvida seria uma perspectiva importante em nossa igreja.
Uma terceira perspectiva de abordagem do texto poderia ser a pergunta de como a nossa igreja poderia ser instrumento da graça de Deus. Quando a igreja é instrumento da graça barata, e quando ela pode ser instrumento da graça rica? Que feições poderia ter esta instrumentalidade da graça na igreja? Poderia ser a proclamação da graça através de comunicação verbal? Poderia ou deveria ser a instrumentalização da graça através de gestos sócio-políticos? Poderiam ser ou deveriam ser os dois caminhos de comunicação ao mesmo tempo? Há outros caminhos?
V – Bibliografia
– CALVIN, J. Der zweite Brief an die Korinther. In: Auslegung der Heiligen Schrift. Vol. 16. Neue Reihe. Moers, 1960.
– DIBELIUS, O. Meine Kraft ist in den Schwachen mächtig (Prédica sobre 2Co 12.9). In: In Gegensätzen leben. Berlin, 1965.
– DIEM, H. Meditação sobre 2 Co 12.1-10. In: Herr tue meine Lippen auf. 4a. ed., Wuppertal-Barmen, 1962.
– HARTENSTEIN, K. Prédica sobre 2Co 12.1-10. In: Vom Wachen und Warten. Stuttgart, 1953.
– HARTENSTEIN, K. Prédica sobre 2 Co 12.7-9. In: Gnade und Wahrheit. Goettingen, 1949.
– WENDLAND, H. D. Der zweite Brief and die Korinther. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol. 7. 13a ed., Göttingen. 1972.