DIA DA COLHEITA
A GRAÇA DE DEUS E AS AÇÕES DE
GRAÇA DOS SEUS FILHOS
I – Considerações preliminares
O assunto da Segunda Epístola aos Coríntios gira em torno da autoridade apostolar de Paulo. A grande coleta em favor dos pobres dentre os santos que vivem em Jerusalém (Rm 15.26), é apenas um sub-tema. Mas é sobremodo significativo que o apóstolo
– que tivera a sua autoridade seriamente contestada e questionada por elementos da gnose (veja principalmente 1 Co 5-8), os quais com a libertação experimentada pelo evangelho também se libertaram da obediência aos mandamentos de Deus, e ainda por elementos judaizantes (cap. 3), vindos com recomendações de Jerusalém
– tenha recuperado a sua autoridade, ele que não pertencia ao grupo dos doze (1 1 .4-6), a ponto de motivar e engajar os membros da comunidade de Corinto numa coleta em dinheiro, em favor dos membros necessitados de Jerusalém.
Tito, que fora o portador da assim conhecida carta das lágrimas (perdida e anterior a esta), na qual Paulo deve ter admoestado e censurado acerbamente os seus opositores e desfazedores (2.4; 7.8,9,12), volta a ser o portador desta epístola, inclusive com o encargo de, juntamente com dois irmãos, ajudar na organização da coleta (8.16-24; 9.5).
Não queremos incluir a coleta na teologia de todas as coisas (teologia da terra, da esperança, da ecologia, da libertação…), mas é certo que ela cabe na área da teologia prática. Ela merece uma reflexão muito séria, porque através dela um membro do corpo (a comunidade) vem em auxílio de outro membro. Coleta é expressão de solidariedade, sendo solidariedade uma das maiores expressões do que se pode entender por comunidade. Pensar nos outros, apesar de dificuldades ou mágoas pessoais, sempre foi uma forma de crescer no evangelho de Jesus Cristo, isto é, na comunhão com os irmãos, e nas ações de graça para com Deus (vv. 12 e 13).
II – Tradução
V.6: Isto, porém, (digo): quem semeia pouco, também colherá pouco, e quem semeia na expectativa de bênçãos, também colherá (sob) bênçãos.
V.7: Cada um (contribua) conforme decidiu em seu coração, não com má vontade ou por constrangimento; porque Deus ama a quem dá com alegria.
V.8: Deus pode derramar sobre vós, abundantemente, toda graça, de sorte que, tendo sempre, em tudo, ampla suficiência, podeis transbordar em toda boa obra,
V.9: como está escrito: Distribuiu, deu aos pobres, a sua justiça permanece para sempre (SI 112.9).
V.10: Aquele que dá semente ao semeador e pão para alimento, também suprirá e aumentará a vossa sementeira, e multiplicará os frutos da vossa justiça;
V. 11: em tudo sereis enriquecidos para toda a generosidade, a qual faz que por nós sejam tributadas graças a Deus.
V.12: Porque a diaconia (execução) deste serviço sagrado (liturgia) não só provê as necessidades dos santos, mas também produz frutos abundantes pelas muitas ações de graça para com Deus.
V.13: Pela demonstração desta diaconia, eles glorificam a Deus, pela obediência da vossa confissão (homologação) quanto ao evangelho de Cristo, e pela generosidade da vossa comunhão com eles e com todos;
V.14: e ha oração por vós, têm saudades de vós, por causa da superabundante graça de Deus (que é revelada) em vós.
V.15: Graças a Deus pelo seu dom inefável (indescritível).
III – Exegese
O v.6, ainda reportando-se aos vv. 1-5, contém o desafio vigoroso: Dai com abundância, Deus vos abençoará! Abençoar é dar farta e abundantemente. Quem dá com a intenção de abençoar o irmão, por exemplo, para semear em seu coração o louvor a Deus, este ganhará o louvor de Deus também para si. Dar é uma semeadura, da qual também brota uma colheita para o próprio doador. (Schlatter, p. 354) Mas quem semeia pouco, muito pouco deve esperar. Semear (dar), porém, não deve ser encarado mercantilmente (Gl 6.6-10). Pôr isso o apóstolo fala, depois, em generosidade (v.12).
v.7: A coleta deve ser dádiva, o que significa superar e ultrapassar-se a si mesmo em direção ao próximo. Assim a contribuição Implica alegria e desprendimento (Pv 11.25;22.9-LXX). Quem dá compelido, ainda retém! Mas Deus ama quem dá de mão e coração aberto.
v.8: A comunidade não demonstre pequena fé ao dar. Olhe para Deus, cujos recursos são imensuráveis (Fp 4.19). Ele pode dar o necessário para a própria subsistência, e ainda o suficiente para transbordar em favor de outros. Comparando a comunidade com o chafariz romano, ele é a fonte que faz transbordar a sua água de recipiente em recipiente. Um recebe do outro, e todos recebem de Deus.
v.9: Este dar generoso é ação de justiça, pois quem reparte com o irmão, realiza a justa vontade de Deus. Não negligencieis Igualmente a prática do bem e a mútua cooperação, pois com tais sacrifícios Deus se compraz. (Hb 13.16)
No v.10 o texto repete um pensamento anterior (v.8): Deus mesmo dará a semente (os recursos) para uma sementeira (ação) abundante, assim que a justiça dos plantadores do bem cresça mais e mais. Deus dá para dar! E mais: cuidará que as dádivas não venham a empobrecer os doadores. Ele provê.
No v.11 o apóstolo diz que a generosidade não só faz crescer frutos de justiça que honram a Deus, mas que ela ainda tem a virtude de despertar a gratidão a Deus naqueles que são o alvo da generosidade. Gratidão, porém, significa a glorificação de Deus; e a honra e a glória de Deus é o último alvo e sentido de todo o receber e agir. (Wendland, p. 199)
V.12: Uma coleta é nitidamente uma ação diaconal. Paulo, neste versículo, vai mais longe. Fala em LEITOURGIA, que é o mesmo termo que descreve o serviço de Zacarias no templo (Lc 1.23). Podemos, portanto, afirmar que ambos, a celebração de um culto e a arrecadação de uma coleta são serviços igualmente santos. E, como a comprová-lo, lemos que esta LEITOURGIA faz brotar orações de gratidão a Deus. – Aliás, diaconia e liturgia nunca estão restritas a si mesmas, sempre são testemunhos que louvam a Deus, o verdadeiro doador de todo o bem. E o louvor de Deus sempre foi o grande alvo de Paulo (1.10;4.15).
V. 13: Vendo a diaconia dos doadores, os irmãos beneficiados reconhecerão a filantropia do próprio Senhor (Tt 3.4). É como se coríntios homologassem com a sua ação o evangelho de Cristo, evangelho de doação, amor e solidariedade libertadora. – Diaconia é a profissão manual da fé! Uma obediente confissão. – Paulo está certo que a coleta também fará crescer comunhão entre irmãos que ainda não se conhecem. Vendo o serviço sagrado dos coríntios (de origem gentia), os irmãos de Jerusalém (judeus) louvarão a Deus, Pai e Redentor de ambos (Mt 5.16; 1 Pe 2.12). Além disso, enviando a coleta para Jerusalém, os coríntios ingressarão na comunhão maior dos cristãos. Já em 1 Co 12.26a o apóstolo se referia a esta unidade orgânica do corpo todo, no qual uns compartilham os sofrimentos dos outros.
V. 14: Não bastassem gratidão e louvor, os destinatários terão desejo e até saudade de conhecer os doadores. Não sendo isto possível, lembrar-se-ão deles em suas orações. E já hão se pergun-tará mais por judeus ou gregos, mas se falará em irmãos. Isto os membros de ambas as comunidades haverão de aprender. -Encerrando o tema excepcional desta epístola, o apóstolo, de antemão, agradece a Deus pelo que ele fará nos coríntios, e, por intermédio deles, aos irmãos em Jerusalém (v.15). Em si é indescritível a dimensão deste dom de Deus, que abre corações e mãos de uns para pôr em vibração e exaltação os corações de outros.
Recomenda-se ler os vv. 1-5 deste capítulo para compreender melhor a reflexão teológica que o apóstolo desenvolveu nos vv.6-15. É compensador estudar e ver como Paulo pensava sobre a coleta, que mais parece ser uma grande campanha financeira. Vê-a como graça, expressão de generosidade, diaconia, bênção, serviço sagrado e confissão (homologação do evangelho pela ação do amor).
Poderíamos dizer: A diaconia da coleta é expressão da graça de Deus em uns, que por sua vez gera ações de graça para com Deus em outros! – Ou subsistirá alguma dúvida quanto à legitimidade teológica das coletas e doações? Mas para o apóstolo, natural¬mente, teria sido impossível coletar entre os de fora; basicamente impossível, porque para ele a honra a Deus era o grande alvo da coleta. (de Boor, p. 195)
IV – Meditação
Defrontamo-nos com um texto que oferece uma boa saída para a crise do Dia da Colheita, ou do culto de Ação de Graças pela Colheita. Tanto nas cidades quanto nos campos e na colônia, está havendo uma certa insegurança ou falta de motivação maior para a comemoração deste dia, principalmente em épocas de colheitas frustradas e salários defasados.
O texto não conclama à gratidão por colheitas, rendas, benefícios. Bem pelo contrário, ele convida para semear uma colheita para os outros, e afirma que esta atitude é uma maneira
essencialmente cristã para honrar a Deus pela sua graça, com a qual ele nos habilita para toda boa obra (v.8).
Houve, e queira Deus que ainda haja, comunidades que neste Dia da Colheita não pensaram em colher, mas em agradecer e dar a outros do que haviam recebido (Mt 10.8b). Levantaram coletas vultosas para necessidades fora da própria casa. Não fecharam em suas mãos os últimos cruzeirinhos, mas liberaram-nos para quem muito necessitasse (leia Dt 25.19; Lv 23.22). Certamente existem exemplos ilustrativos, como o de uma pequena comunidade que, no dia da inauguração do seu modesto centro social, mal concluído, não achou uma desculpa para reter para si a coleta, mas encareceu-a de coração em favor de um paupérrimo lar para crianças abandonadas em outra comunidade (aconteceu mesmo!).
Valeria a pena examinar quantas comunidades destinam a coleta da gratidão a terceiros. Não penso na coletinha, mas naquela parte de leão dos leilões, das ofertas por envelopes e outros. Não parece corresponder à intenção original deste dia, descolar ofertas para finalidades próprias. Aliás, a maioria das nossas comunidades teria até os recursos (graça) necessários para suprir as necessidades dos seus membros carentes. A questão não é financeira, é espiritual.
Voltando às coletas, especificamente, podemos dizer com base na perícope, que elas são uma expressão da vida das comunidades. E também da sua maturidade (Mc 12.41-44). Estas comunidades, saindo de si e endereçando os seus frutos de justiça (v.10) a outros, são exemplares na diaconia e liturgia (v.12). e por isso também na KOINÕNIA (comunhão) e na MARTYRIA (testemunho). Elas saíram da idade infantil do quem não chora não mama, para trabalharem consciente e responsável ente por outros. Elas sabem que amar o próximo é uma forma concreta e muito real de louvar a Deus (v.12).
Aqui já não se dá por dar. Também não se tem a necessidade de ser adulado para dar, ou ser recompensado com plaquetas ou diplomas de honra ao mérito (Mt 6.2). Estas segundas intenções são como o cupim nos pisos das nossas igrejas, casas e vidas. Por que ainda sempre precisamos acenar aos nossos membros com prêmios e vantagens, quando solicitamos suas contribuições? Não temos motivações maiores e profundas que nos movimentam? Só faltaria a Igreja, para evidenciar a sua falência espiritual, rifar um automóvel entre os membros contribuintes para soltarem os seus barões (cédula de Cr$ 1.000,00).
Uma ação ou doação que fica presa ao doador (vaidade), jamais é diaconia ou liturgia, e muito menos KOINÕNIA e MARTYRIA! Estas têm a virtude de olharem para o irmão, esquecendo-se de si mesmas (Mt 25.37-39; 1Co 15.1-0). Por isso, são ações que fazem brotar comunhão, o desejo de se conhecer (v. 13) para, juntos, enaltecerem o seu Deus; e têm por fruto a oração e intercessão (v. 14), até mesmo entre desconhecidos conhecidos. Também não ficam ansiosas pela própria sobrevivência (v.8), porque o louvor a Deus lhes vale mais do que um bem-estar garantido.
Não será necessário ultrapassar os limites traçados pela perícope, ela que se refere estritamente ao relacionamento inter-comunitário. Mas não estaríamos violentando o texto, se optássemos por uma abertura para o mundo. A situação mudou desde então, e a igreja tem um lugar diferente no mundo do que outrora. Não precisamos deixar de fazer o bem principalmente aos da família da fé (Gl 6.10), mas também não podemos olvidar, neste contexto, que a comunidade é sal, luz e fermento no mundo, e que não lhe é permitido asilar-se a si própria em um gueto eclesial ou inter-eclesial. O evangelho precisa ser homologado por uma confissão insofismável (v. 13). A graça e a bondade de Deus também levam o endereço do mundo. Através da ação diaconal da comunidade, que é ação diaconal de Deus, o Senhor se revela como aquele que amou o mundo de tal maneira, que deu o seu Filho unigênito (Jo 3.16). Exatamente aqui se aplica o que Jesus disse em Mt 5.13-16. Daí também concluímos o quanto diaconia sempre tem de caráter missionário! – Somente uma compreensão exata da graça nos libertará para uma ação em favor dos que sofrem, choram e morrem resignada Ou revoltadamente. Quem não tiver experimentado a bondade da graça de Deus em Cristo, sempre será um estéril cumpridor de leis e parágrafos. Deus, porém, liberta e alegra.
V – Considerações para a prédica
a) No livro Gepredigt den Völkern (Vicedom et alii, p. 228) encontramos uma sugestão muito simples e clara para a prédica. Como, porém, o texto ali se limita aos vv.6-11, ela só poderá ser usada com determinado prejuízo para a nossa perícope. Mesmo assim será de utilidade transcrever o que sugere, anexando, porém, um 4° ponto para integrares vv. 12-15:
– l. Dai abundante e espontaneamente;
– II. A graça de Deus deve transbordar em todas as vossas ações;
– III. As ações de graça de todos os cristãos sirvam para honrar a Deus;
– IV. A ação solidária se traduz em comunhão e gera oração.
b) A meditação apresentada também pode ser útil para um culto em forma diferente no Dia da Colheita. Quem sabe se não seria uma bênção para a comunidade, se neste dia o texto fosse ligeiramente introduzido para uma reflexão conjunta (diálogo) sobre:
– 1. O sentido das coletas e doações (motivação e finalidade);
– 2. As contribuições, um fardo incômodo, ou uma confissão de fé para a honra de Deus?
– 3. Onde, no ano passado, semeamos (damos) de modo que Deus pudesse ser louvado com as nossas ações (e pelos beneficiados)?
– 4. Faz sentido manter o Dia da Colheita, em vez de instituir também em nossas comunidades o Dia de Ação de Graças?
c) Como sugestão adicional, recomenda-se ler, para quem tiver tempo e condições, o capítulo sobre Graça e Gratidão do livro de Gollwitzer (pp. 155-174).
IV – Bibliografia
– DE BOOR, W. Der Zweite Brief an die Korinther. In: Wuppertaler Studienbibel. Wuppertal, 1975.
– GOLLWITZER, H. Befreiung zur Solidarität. München, 1978.
– SCHLATTER, A. Die Korintherbriefe. Stuttgart, 1908.
– VICEDOM, G. F. et alii. ed. Gepredigt den Völkern. Vol. 2. Breklum, 1976.
– WENDLAND, H. D. Die Briefe an die Korinther. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol. 7. Göttingen, 1963.