Prédica: Apocalipse 14.6-7
Autor: Martin N. Dreher
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Data da Pregação: 31/10/1980
Proclamar Libertação – Volume: V
I – O texto na história
Quem lê Ap 14.6-7 pergunta, imediatamente, pelo motivo de se usar esta perícope como texto-base para a pregação em um Dia da Reforma. Essa pergunta tem sua razão de ser, pois, no presente texto, não encontramos nenhum dos temas que, normalmente, são apresentados como básicos para o movimento reformatório. Não encontramos aqui aquilo que se costuma designar de princípio protestante. Não ouvimos nada a respeito de graça que traz justificação, não encontramos palavra a respeito do perdão dos pecados, não ouvimos falar a respeito da redenção ocorrida em Cristo. É, porém, verdade que também não encontramos nele nada que fale contra aquilo que julgamos nele faltar. Essa situação nos leva a perguntar pela real intenção do texto.
Como texto para o Dia da Reforma, a perícope tem sua história. Um dos colaboradores de Lutero, Bugenhagen, o reformador da Pomerânia, viu no anjo que voa no meio do céu, dirigindo-se a todos os povos e anunciando um evangelho eterno, o próprio Lutero. A partir dessa perspectiva de Bugenhagen é que se começou a usar este texto em pregações de 31 de outubro. É importante sabermos dos critérios que levaram à escolha desta perícope para este dia. Nenhum pregador que leve a palavra de Deus a sério, vai poder compartilhar a opinião de Bugenhagen que, evidentemente, não é a opinião de Lutero. Por isso, torna-se importantíssimo que nos dediquemos ao estudo do texto.
II – Sugestão de tradução
V.6: E vi um outro anjo voando no meio do céu, este tinha um evangelho eterno para anunciar aos que estão sentados sobre a terra e a toda a nação e tribo e língua e povo, e ele falou em alta voz: V.7: Temei a Deus e dai-lhe glória, pois chegou a hora de seu juízo! E adorai aquele que fez o céu e a terra e o mar e as fontes das águas!
III – O contexto
A perícope encontra-se, praticamente, no centro dos caps. 4 – 22, que perfazem a parte principal do Apocalipse. Aqui o autor expõe, em uma série de quadros apocalípticos, as coisas que hão de acontecer depois destas (1.19). O cap. 14 abrange o objeto de todo o anseio escatológico da comunidade cristã primitiva: a vinda do filho do homem sobre as nuvens do céu. No cap. 13 fora relatada a situação de perigo para a comunidade (simbolizada pelos dois animais); agora, no cap. 14, as atenções são dirigidas ao cordeiro e à primícia (v. 4) dos redimidos. Seguem-se os brados de três anjos, que anunciam o juízo que há de vir para toda a humanidade. Os vv. 6 e 7 apresentam o brado do primeiro desses anjos.
IV – O texto
A expressão um outro anjo não nos deveria trazer grandes preocupações. Trata-se de uma formulação própria do autor do Apocalipse (cf 14.6,8,9). Este anjo voa. O verbo voar é encontrado, no Novo Testamento, apenas no Apocalipse (4.7; 8.13; 12.14; 14.6; 19.17) Somente em nossa passagem ele se refere a um anjo Nas demais passagens, está relacionado com pássaros. São raros os anjos que voam. Na Bíblia encontramos um anjo que voa, além do nosso texto, só em Daniel (9.21). E isso, no texto hebraico. A Septuaginta traduz a passagem com vir rapidamente.
Este anjo, visto pelo autor, voa no zénite, isto é, no meio do céu, no centro do céu. Esta expressão nos indica que sua mensagem se dirige a todos os povos, a toda a terra, a todo o homem. As palavras que seguem, para anunciar aos que estão sentados sobre a terra e a toda a nação e tribo e língua e povo, reforçam ainda mais esta certeza: o evangelho, trazido pelo anjo, dirige-se a todas as pessoas, sem distinção, a toda a terra (cf. 5.9; 7.9; 13.7). Todos ob povos devem preparar-se para o que há de acontecer.
Também em Mc 13.10 ouvimos falar do anúncio da palavra de Deus, no final dos tempos: antes de o fim chegar, o evangelho (cruz e ressurreição de Cristo) deve ser pregado a todo o mundo. Em nossa perícope, porém, não se fala de o evangelho, mas de um evangelho. Esse um evangelho não é, simplesmente, a reprodução da mensagem da cruz e da ressurreição, em seu significado salvífico.
O v. 7 nos traz o evangelho eterno. Ele é qualificado de eterno, pois o autor do texto tem a intenção de afirmar que Deus tem 86 atido a ele desde o princípio, desde a eternidade. O evangelho é o anúncio da majestade de Deus. É o anúncio de que a existência do homem se deve ao Criador. O evangelho eterno fala de quem é Deus e de quem é o homem. Principiemos com o homem. O homem é o porta-voz da criação divina no temor, louvor e adoração que são devidos a Deus. Como criatura, o homem é porta-voz dos que dão culto a Deus, de suas criaturas. Em primeiro lugar, este culto, ao qual o homem é chamado, manifesta-se no temor que aqui é, claramente, uma das manifestações da fé. O homem é chamado a ser temente. Lembramos que, no Novo Testamento, os cristãos são chamados de os que temem a Deus. O Apocalipse dá aos que temem a Deus um assento entre os que são de Deus. Os vinte e quatro anciãos (Ap 11.18; cf. 19.5) saúdam a vinda do Reino de Deus com as palavras: Chegou o tempo de serem julgados os mortos, de se dar o galardão aos teus servos, os profetas e santos, e aos que temem o teu nome, pequenos e grandes. As palavras do anjo, em nosso texto, são pois, um chamado à fé em Deus. Em segundo lugar, o homem é chamado a dar louvor a Deus. O termo DOXA (glória) é, originalmente, na Bíblia, algo inerente a Deus. É a essência de Deus, é o brilho celeste no qual Deus habita A glória é, pois, algo que não é inerente ao homem. Se, na palavra do anjo, é ordenado ao homem (imperativo!) dar glória a Deus, ele está dando a Deus o que é de Deus e, reconhecendo, com isso, a soberania de Deus. Finalmente, o homem é chamado a adorar a Deus. O homem, chamado à fé em Deus e ao reconhecimento da soberania de Deus, só pode adorar a Deus. A parte final do versículo nos diz quem é este Deus que exige fé, reconhecimento e adoração: ele é o Criador; só ele.
Se resumirmos, em uma frase, o que o texto espera do homem, podemos dizer: que ele deixe Deus ser Deus.
A partir daqui podemos perguntar pelo conteúdo desse evangelho eterno. O evangelho eterno, trazido pelo anjo é anúncio de que Deus é Deus. Esse evangelho, anunciado a todos, é salvação para a comunidade que vive em situação atribulada (cap. 13), e é advertência para aqueles que, perseguindo a comunidade, não querem reconhecer que Deus é Deus. Deus, que vem para o juízo, traz salvação para sua comunidade e condenação para os que não reconhecerem que ele é Deus.
V – Para meditação e pregação
Dissemos, no início deste estudo, que a presente perícope não fala daquilo que comumente designamos de princípio protestante. Nada encontramos a respeito de justificação pela fé, perdão dos pecados, redenção ocorrida em Cristo. Que temos nesta perícope? Temos aquilo que vem antes de podermos falar de justificação pela fé, perdão dos pecados, redenção. A perícope nos fala daquilo, sem o qual não podemos entender justificação, perdão, redenção. A perícope nos fala de que Deus é Deus e de que ninguém mais é Deus. A perícope nos anuncia: Eu sou o Senhor, teu Deus…. Ela diz: No princípio criou Deus…. A perícope nos fala do tom e som primeiro de toda a nossa fé, vida, razão de ser: Deus.
Creio que muita prédica em Dia da Reforma não é mais compreendida por nossos membros. Nossos ouvintes, em 31 de outubro, não entendem mais muitas coisas que nós gostaríamos que entendessem, quando cantamos hinos da Reforma. Deus é castelo forte… cantado em tom fúnebre, nada mais tem do hino de batalha que soprava aos quatro ventos a descoberta: Deus é Deus! Nossos ouvintes não entendem mais muita coisa que gostaríamos de lhes transmitir da doutrina da Reforma, porque nas pregações falta aquele som primeiro, sem o qual toda a nossa pregação se perde: Deus é Deus!
Desse som primeiro nos quer falar a presente perícope, no Dia da Reforma. Algumas colocações em torno do Apocalipse de João poderiam nos auxiliar, a nós e a nossos ouvintes, na compreensão de toda a radicalidade da exigência da perícope. O Apocalipse de João, surgido quase que na mesma época que a obra de Lucas (Evangelho e Atos dos Apóstolos), quer anunciar, CG no Lucas, a vitória de Cristo. Enquanto Lucas passou a ser um dos escritos favoritos na Igreja, o Apocalipse foi deixado bastante por conta dos entusiastas e dos espíritos sectários. No entanto, o Apocalipse é, talvez, o livro do Novo Testamento no qual mais se manifesta o tema da liberdade cristã. Concordo com Ernst Käsemann, que aponta para o fato de que nenhum escrito do Novo Testamento é tão radical, em seu julgamento do Estado e em seu julgamento da Igreja, como o Apocalipse. No Apocalipse irrompe, qual vulcão, todo o ódio de que é capaz um cristão em sua crítica ao Estado romano, representado sob o nome de Babilônia. Este ódio contrasta com a maneira bastante amena de o Novo Testamento falar dos representantes dos imperadores romanos ou da própria autoridade (cf. a narrativa da paixão, especialmente em Lucas (!); Rm 13; 1Pe 2.13ss; 1Tm 2.1 s). Este ódio tem a sua razão de ser, pois o livro foi escrito durante o governo de Domiciano. Em épocas de perseguição, a mansidão pode abandonar o cristão! Disso o Apocalipse nos dá um forte testemunho. Para o cristão João, exilado em Patmos, Roma é um animal dos infernos e uma das maneiras de o Anticristo se manifestar. Frente aos abusos do Estado romano, a liberdade cristã de João adquire contornos nitidamente revolucionários. Mas, João não é revolucionário apenas em relação ao Estado. Excetuando-se as palavras de juízo de Jesus, não encontramos palavras de juízo mais duras contra a Igreja do que as palavras de João no Apocalipse (cf. as cartas às comunidades, em Ap 2 e 3: Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas!). O anúncio de juízo, feito pelo Apocalipse, é tal que o fim da história da Igreja consiste dos sepulcros dos santos e de um resto do povo de Deus. Aqui não há nada de triunfalismo. É certo que todo o Novo Testamento anuncia a vitória final de Cristo. Mas, no Apocalipse, esta vitória de Cristo só ocorre depois que o Anticristo teve vitória total sobre o mundo. O Apocalipse apresenta uma cristandade dizimada antes da vitória final de Cristo. Com sua liberdade cristã, João pergunta, em todo o seu livro, ao Estado e à Igreja: De quem é o mundo? De quem é o Estado? De quem é a Igreja? E responde: De Deus! E de mais ninguém! No Império Romano, o dono do Estado e, pelo menos, do mundo mediterrâneo era o César. Para João, que reconhecia apenas em Deus e em seu Cristo o dono do mundo, do Estado, a única opção que restava era negar obediência ao Estado, ao César, e dar-lhe o nome devido: Aquele que é contra Deus e seu Cristo – o Anticristo. Esta luta de João é a luta da Igreja, ainda hoje. A Igreja que pregue a respeito dos céus e deixe o mundo para nós! Palavras que não foram ditas apenas por nazistas, mas que também se fizeram ouvir entre nós. Em todo o seu livro, porém, João nos lembra de que a Igreja muitas vezes tem feito o que o Estado espera dela: que não pergunte de quem é a terra, o mundo, o Estado. Assim a Igreja tem louvado o Cristo nos céus, e esquecido que através de seu Cristo Deus clama: Minha é a terra e o que nela há! A Igreja tem esquecido de morrer para viver. No cap. 5 do Apocalipse nos é mostrado que o crucificado é o centro de toda a história, o centro de todas as atenções, o objeto de todas as aclamações. Quem pertence a seu reino está marcado com os estigmas do cordeiro, com a cruz. Esta cruz destina os que com ela foram selados ao martírio (= testemunho). Esta cruz os transforma em revolucionários. Eles não são revolucionários para si, não querem conseguir o poder, o mundo, para si, pois eles sabem de quem é o mundo: de Deus. Eles nada mais são do que os que querem reservar lugar para Deus neste mundo. São os que lutam, para reservar o lugar para Deus, porque sabem que o lugar é dele. Esta luta é travada por eles dentro da perspectiva do dia em que Deus vai mostrar, definitivamente, que ele é Deus. Naquele dia, não haverá mais choro, nem pranto, nem dor. Esta perspectiva de João é bastante diferente da perspectiva de uma escatologia realizada, que temos encontrado na história da Igreja há 1600 anos. O texto de João, em Ap 14.6-7, não nos chama, pois, a mostrar a Igreja como um cordeiro sem mácula, mas todas as suas máculas. À Igreja e ao mundo o anjo grita: Temei a Deus e dai-lhe glória, pois chegou a hora de seu juízo! E adorai aquele que fez o céu e a terra e o mar e as fontes das águas! A nós, como comunidade, e ao mundo o anjo grita: 1) temei só a ele; 2) louvai só a ele!, 3) adorai só a ele!
São poucos os anjos que voam. A mensagem do anjo que voa, em Ap 14.6, dirige-se a todos os que estão sentados sobre a terra. Por isso, nossa pregação deveria terminar com um convite aos que participarem do culto do Dia da Reforma, para que aceitem ser mensageiros da mensagem do anjo: Deus é Deus! O convite a eles deve ser feito dentro da certeza de que se Deus é Deus, ele leva do temor à confiança, do louvor à segurança, da adoração à certeza.
Que tem tudo isso a ver com o Dia da Reforma? Philip S. Watson deu à sua obra, que quer ser uma introdução à teologia de Lutero, o título Let God be God (Deixai Deus ser Deus) (Londres 1947), e viu, nesse título, o resumo das aspirações da Reforma: deixai Deus ser Deus. Realmente, toda a Reforma da Igreja começa ali, onde deixamos Deus ser Deus. Ali onde não se deixa Deus ser Deus, com todas as consequências, surge a auto-glorificação do homem, a divinização do homem. Onde esta divinização do homem se desenvolve, não temos mais o senhorio de Deus sobre a criação e o homem, mas o senhorio do homem sobre a criação e o homem. Aí surge a inversão dos valores; aí opressão, abuso, destruição, desconfiança, sofrimento passam a ser a tónica dominante. Aí temos pecado no mais profundo sentido da palavra. Aí o diabo(DIABOLEIN = confundir), a confusão, está à solta, aí temos Babel.
Diante deste fato, a pregação cristã tem sempre a precípua função de anunciar quem é Deus e quem é o homem; de anunciar quem é o criador e quem é a criatura. Onde ela deixar de fazer isso, estará sendo desobediente, estará deixando de dar nome aos bois, de chamar pecado ao que é pecado. Sua função é a de anunciar, com todas as consequências, que Deus é Deus. Deus é Deus, este é o cantus firmus de nossa perícope. A partir de seu escopo, é um autêntico tevto para um Dia tia Reforma; não de um Dia da Reforma que queira viver das glórias de um passado distante, mas de um dia tal que queira se colocar debaixo da palavra de Deus, com todas as consequências, para permitir que a Igreja que tem suas origens na Reforma de Lutero, seja uma Igreja sempre disposta a se reformar, a partir da palavra de Deus. O escopo de nossa perícope é um chamado a uma constância na vivência diária do cristão e na da Igreja. Para a vida do cristão deve valer: Deus é Deus. Para a pregação da Igreja deve valer: Deus é Deus.
VI – Bibliografia
– KÄSEMANN, E. Der Ruf der Freiheit, 4a ed., Tübingen, 1968.
– KRAFT, H. Die Offenbarung des Johannes. In: Handbuch zum Neuen Testament. Vol. 16a. Tübingen, 1974.
– LOHSE, E. Die Offenbarung des Johannes. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol. 4. Göttingen. 1968.
– STÄHLIN, W. Predigthilfen über die altkirchlichen Episteln, 2a ed., Kassel, 1955.