MEDITAÇÃO SOBRE O TEMA TERRA – I
TERRA NA NOVA SOCIEDADE
Atos 4.32-37 – Werner Fuchs
Queremos todos nossa terra em liberdade,
Foi Jesus Cristo que nos veio ensinar,
Que a terra só pertence a quem trabalha,
E não pertence a quem quer nos explorar.
Queremos todos nossa terra em liberdade,
Somos os soldados que enriquecem a nação,
Vamos viver unidos em comunidade,
E não queremos ser escravos nem patrão.
Somos nós quem produz os alimentos,
E não temos o direito de comer,
Estamos vendo que, de certo, no Brasil,
É quem trabalha que de fome vai morrer.
(de um Cancioneiro da Pastoral Rural da Bahia)
I – O Acontecimento da Palavra
Saudação. Vocês são comunidade. Pela fé em Cristo são Igreja. E a igreja sabe para onde caminha. Ouviremos da primeira igreja, aquela que se formou em Pentecostes, há mais de 1900 anos. Na primeira igreja tudo era de todos. Leitura: Atos 4.32-37.
Pergunta: Há diference entre a vida de um crente e a de um descrente (entre igreja e mundo)? Como?
Respostas: Quem crê em Deus, trabalha consolado. Enfrenta os problemas com mais esperança. Quem tem paz no coração, não vive à procura de briga, etc.
Conclusão: A fé transforma. Transforma a pessoa e a realidade. Não se conforma com o mundo (Rm 12.2). Deste mundo fazem parte a propriedade, o capital, as terras. E o mundo diz: Se você não tem dinheiro, não é ninguém. Na primeira igreja tudo era de todos.
– Era como uma sociedade. Sim. Eram unidos.
Vejamos melhor: Como a primeira igreja conseguiu essa união, em que todos repartiam o que tinham? Um operário, que já esteve preso, diz: Na cadeia, não tinha outra coisa para ler do que a Bíblia. Então, eu li como eles juntaram todo o seu dinheiro e repartiram conforme as necessidades. Cada um tinha tanto quanto o outro. Isso me impressiona muito. Mas eu não faria isso. (citado por Gollwitzer, p.181) Então, por que a primeira igreja conseguiu? Há dias, um homem dizia: Meu vizinho é tão rico, que não sabe o que possui. E está doente do coração. Mas continua trabalhando feito louco. Por que? Por que não vive uma vida confortável? Pro caixão ela hão poderá levar nada!
Tenho certeza de que vocês também afirmam: pró caixão a gente não leva nada. Há a piada do milionário que, ao morrer, exige que cada filho prometa colocar um milhão de cruzeiros na sua sepultura. O filho mais moço recolhe o dinheiro depositado no caixão pelos irmãos e destaca um cheque de 10 milhões… Quando o velho precisar, pode descontar o cheque… Ninguém leva nada para a morte. Isso é certo. Por causa da fé no Cristo ressuscitado, a primeira igreja afirmava, com outras palavras, a sua certeza e esperança sobre o futuro: logo, logo nos encontraremos com Deus. Jesus foi preparar morada e, em breve, ele voltará para nos reunir no Reino de Deus. E lá não vale nada ser rico ou pobre. Ou vocês pensam que no céu haverão casas luxuosas para alguns, e ranchinhos pro resto? Enormes fazendas para aqueles, e minifúndios para os demais? O Reino já começou com a ressurreição de Cristo, e nele não pode haver pobres (Dt 15.4). A consequência dessa certeza: Não posso segurar para mim o que falta ao meu irmão. Tudo é de todos. Não há nenhum necessitado.
Ouvinte: Eu comparo assim: Por que vou carregar nos bolsos todo tipo de remédio, esperando uma doença me atacar? É mais certo dar o remédio ao meu vizinho, que está doente.
Mulher: Por que a Igreja não continuou nesse sistema?… (Silêncio).
A pergunta está aí. Continua incomodando. Durante a história da Igreja algumas poucas pessoas e grupos conservaram acesa essa ideia e procuraram concretizá-la. Mas, por que nós não a seguimos? Por que vocês, agricultores, não plantam suas terras em conjunto, repartindo os frutos? A terra é de ninguém e os frutos, de todos. Por que todos não trabalham para uma caixa comum?
A pergunta fica. Entretanto, vamos observar bem uma coisa: Será que vai dar certo se o presbitério, a diretoria paroquial ou uma autoridade na igreja resolver seguir o sistema da primeira igreja? Criando uma nova lei, uma obrigação para os membros repartirem todos os seus bens? Na primeira igreja, quem vendia sua terra, como o José Barnabé, fazia isso livremente, naturalmente. Há a referência ao casal de velhos, no capítulo seguinte (At 5), castigados, não por segurarem para si parte do dinheiro recebido pela terra, mas porque haviam mentido; mentira quebra a união da igreja.
Outro exemplo que ajuda entender a vida da primeira igreja: Existe entre vocês um pai que, cada dia, faz uma contabilidade dos pedaços de pão que cada filho come? Aldo comeu três fatias, sobram 32 até o fim do mês; Alberto comeu 5 pedaços, tem só mais 30 este mês; Ana já gastou 500 cruzeiros no médico, não pode ficar mais doente…? Quem faz isso? Meus amigos, na família tudo é de todos. Quem tem mais fome, come mais. Quem está doente, gasta mais… Isso para nós é bem natural. A primeira igreja era uma grande família.
Antes parecia longe e difícil essa primeira igreja. Agora, pelo exemplo da família, vemos que, em parte, já estamos vivendo como ela. Então, que faremos com o relatório da primeira igreja? Guardá-lo como lembrança? Como fotografia dos velhos tempos, na parede da sala? Pensando que hoje é diferente, que temos que viver a vida de hoje… do mundo? Ou vamos aceitá-lo como exemplo e ensinamento? Como impulso para transformar nosso mundo de fazendeiros e bóias frias, na certeza de que o Reino vem? Uma igreja precisa saber para onde caminha.
O último ponto: Numa igreja unida em comunhão total de bens, há duas coisas das quais, muitas vezes, sentimos saudade: pregação poderosa sobre o Senhor Jesus e bênçãos abundantes. A igreja vive da Palavra e sente o agir de Deus. Por causa do Senhor Ressuscitado, tudo pode ser de todos. Para que, um dia, Deus mesmo seja tudo para todos nós (1Co 15.28). Amém.
II – Comentários
Nas comunidades de agricultores – como provavelmente •m qualquer grupo de pessoas – houve dificuldade para que o diálogo deslanchasse. Pelas reações, posso deduzir que um dos motivos é a total novidade do tema. Tradicionalmente, as igrejas evitaram textos quentes, em termos sociais. Quanto ao tema específico Terra, a vida eclesiástica marginalizou (p.ex., nas séries de textos dominicais) porções bíblicas que falam da responsabilidade humana frente à terra e do equilíbrio ecológico (SI 115.16; Gn 1.28; Lv 25; Dt 15), da condenação à ganância do latifúndio (1 Rs 21; Mt 23.14ss; Lc 12.13ss; Tg 5), do desprendimento e da partilha dos bens ( 1Co 7.31; At 4.32ss), e, sobretudo, da esperança escatológica da uma nova cidade em que pisa o pé do aflito e pobre (Is 26), de um novo céu e nova terra (Is 65; Ap 21), em que habita justiça (2 Pe 3.13). Essa marginalização exegética e litúrgica fez com que a Igreja institucional se afastasse do povo oprimido, ou melhor, evidenciou a distância já existente. Mais ainda, fez com que a igreja perdesse, na prática, a noção de que é provisória e que caminha em direção ao Reino.
No caso específico de At 4.32ss, nota-se uma preferência da tradição eclesiástica pelo resumo anterior da vida da comunidade (At 2,42ss), embora os dois textos, juntamente com At 5.1 ss, devam ser considerados como uma unidade que descreve a igreja primitiva (cf. Gollwitzer, p.181). Seria tal preferência resultante do natural conservadorismo camuflado em equilíbrio dogmático? Explico: At 4 fala apenas da partilha dos bens, das terras e das casas, enquanto que At 2 (felizmente?) apresenta, lado a lado, quatro características da igreja (doutrina, comunhão, partir do pão e orações). Assim, o efeito para o discurso religioso (sermões, orações etc.) passa a ter uma pluralidade de enfoques, sem o compromisso de uma só consequência prática. Entretanto, apenas a ênfase na comunhão de bens e consequente distribuição a cada qual, segundo suas necessidades, poderá evidenciar que, para a primeira igreja, o Evangelho realmente significou uma transformação total, não um acréscimo religioso ou espiritual. (Quanto ao tema da marginalização de textos com interesse social, é muito significativa a comparação entre o Catecismo Menor de M. Lutero, e o Didaque dos primeiros séculos da era cristã, cujo primeiro capítulo já trata da preocupação pelos pobres.) – A tese, que mereceria maior fundamentação em outra ocasião, é de que equilíbrio dogmático sempre serve à conservação do status quo.
Outra razão para a dificuldade de diálogo coletivo sobre At 4.32ss, pode ser um sentimento de culpa daqueles que são proprietários, embora de pequenas áreas de terra. À primeira vista, até entidades que lutam para fixar o homem na terra, defender os direitos dos posseiros, barrar o avanço dos latifúndios (No Paraná, de 1970 a 1975, os latifúndios ampliaram sua área em mais de 800 mil hectares. – Fonte: IBGE) e exigir uma Reforma Agrária que venha a beneficiar 11 milhões de trabalhadores brasileiros sem terra – também tais movimentos poderiam sentir-se desnorteados quanto ao acerto das soluções defendidas: propriedade particular, a terra para quem nela trabalha etc. Entretanto, para evitar esse sentimento de culpa ou incerteza (e, por outro lado, a cómoda adaptação à mensagem indigesta de At 4) é necessária uma clara visão estrutu¬ral, que naturalmente não pode ser elaborada por um grupo durante meia hora de diálogo. Nesta análise, não é possível parar diante da simples posse da terra, mas atentar para o seu uso, para as relações de produção. Há terra que serve para a subsistência de uma família. Há terra que serve a uma empresa agropecuária com, fins lucrativos, dirigida à exportação e, na Amazónia principalmente, interessada na especulação imobiliária (terra como reserva de capital). Ora, quem quebra a comunhão de bens não é tanto o pequeno agricultor, que luta para sobreviver num sistema económico adverso, quanto b latifundiário, que expulsa famílias, posseiras há décadas, para implantar um projeto de desenvolvimento com incentivos fiscais.
A visão estrutural terá que enfocar também a pirâmide do poder. Tradicionais latifundiários e modernos grileiros ocupam os mais altos postos políticos. As leis (ou o desrespeito a elas) são elaboradas segundo os interesses desses privilegiados, num processo de tráfico de influências, corrupção e mordomias (Em Cuba, inversamente, deputado não é remunerado pelo mandato político que exerce.). E concordaremos com Marx: a função do Estado é proteger a propriedade privada dos bens de produção. Diante do poder desse estado capitalista, o projeto de comunhão de bens' de uma pequena igreja parece irrisório, insignificante. Mas, paradoxalmente, são as comunidades de base as mais temidas pelo sistema, porque, embora humildes, encerram em si uma força realmente transformadora, não reformista. Aí está a presença do Reino, a DYNAMIS da palavra da ressurreição (At 4.33).
A sugestão de sentimento de culpa, apelos à consciência individual e à boa vontade sempre acabam em beco sem saída, quando o problema é estrutural. Por exemplo, as frequentes mas inúteis campanhas de preservação ecológica. Certamente um agricultor pode se sentir co-responsável por ter devastado toda a mata que cobria sua propriedade. Mas foi conduzido a tal procedimento por fatores do sistema econômico: o imposto territorial que taxa em dobro áreas improdutivas, a insistência do vendedor de tratores, as facilidades de crédito bancário, a onda da mecanização etc. Além disso, quem mais depredou e destruiu a natureza foi o grande empresário, que permanece impune devido às suas amizades com as autoridades. Num sistema de exploração individualista não pode vingar o respeito pela natureza, já que até o respeito pelo próximo sucumbe ao interesse do lucro. Entretanto, no uso coletivo e social da terra, quando a terra pertence a todos em geral, e a ninguém em particular, haverá real condição de cuidar do descanso da terra. Por exemplo, o povo de Israel, sabendo que a terra pertencia a Deus, procurou guardar o sábado da terra (Lv 25). Numa região de minifúndio, a erosão é muito intensa porque, para lavrar em curva de nível, os proprietários teriam que juntar suas terras, o que o individualismo neles incutido não permite.
O primeiro a cercar um pedaço de campo, dizendo aos outros: Isto é meu!, e que ainda encontrou pessoas tão burras que acreditaram nele, foi este o primeiro fundador dessa nossa sociedade. E quantos crimes, quantas guerras, quantos assassinatos, quanta miséria teria evitado para a humanidade aquele que, derru¬bando a cerca, dissesse aos companheiros: Não dêem atenção a esse enganador. Vocês estão perdidos se esquecerem que os frutos pertencem a todos, e a terra, a ninguém! (Rousseau)
III – Bibliografia
– DIVERSOS. A Questão Agrária. In: Ensaios de Opinião. Petrópolis, 1979.
– GOLLWITZER, H. Meditação sobre At 2.41-47. In: Hören und Fragen. Vol. 4/2 Neukirchen-Vluyn. 1976.
– COMISSÃO PASTORAL DA TERRA DO PARANÁ. Sem terra e sem rumo. Junho, 1979.