Prédica: Colossenses 3.12-17
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: Domingo Cantate
Data da Pregação:04/05/1980
Proclamar Libertação – Volume: V
I – Introdução
Antes de entrar na análise do texto propriamente dito, gostaria de assinalar que se trata de um trecho bastante conhecido para a comunidade. Cl 3.12-17 é citado sob Matrimônio, no Manual de Ofícios da nossa igreja. Para após a alocução, está previsto como exortação aos nubentes o nosso trecho. É uma chance poder pregar exatamente sobre palavras bíblicas tão conhecidas e, talvez, pouco refletidas em sua profundidade
II — Considerações exegéticas
1. Revestidos do novo homem
A nossa perícope fala da nova vida, sim, do segredo da neva vida. Ai nada se pode entender a partir dos nossos pressupostos, mas tudo se nos torna compreensível em Cristo.
É necessário que vejamos o todo em estreita ligação com a confissão, no inicio do cap. 3. A comunidade cristã confessa que o Cristo crucificado f; exaltado e vive assentado à direita de Deus' (Cl 3.1. Cf. minha meditação sobre Cl 3.1-4, em Proclamar Libertação III, pp. 70-77).
Com essa confissão se afirma algo simplesmente extraordinário: ocorreu uma mudança de senhorio! Torna-se manifesto, de uma vez por todas, quem é o real Senhor do mundo. A mudança de governo que se deu na morte e ressurreição de Jesus Cristo, a razão da esperança estabelecida na sua exaltação à direita do Pai, atingiu também a nós pela palavra da verdade do evangelho (1.5). Recebemos a Cristo Jesus, o Senhor (2.6). Experimentamos o seu perdão (3.13). Deus nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do seu amor (1.13).
Ao mesmo tempo, o evangelho nos leva para dentro de uma tensão com os poderes do mundo, com as cousas que são aqui da terra (3.2). Decisivo, porém, é que não se trata simplesmente de uma contradição sem esperança, mas sim de um conflito esperançoso. (Held) Claro, poderia haver tentativa de fuga deste conflito.
As palavras se fostes ressuscitados juntamente com Cristo, buscai as cousas lá do alto (3.1) indicam a direção para as decisões e para toda a vivência do cristão. Mas poderiam, erroneamente, ser entendidas no sentido de sugerirem uma fuga do mundo. Se, porém, lermos adiante, veremos que em momento algum o autor de nossa carta pensou assim. Muito pelo contrário! Encontramos indicações bem concretas para vivermos os nossos dias sobre a terra. Não é indiferente o que fazemos aqui e agora. Tudo depende de que entreguemos à morte o que faz parte do velho homem e de que nos revistamos do novo homem Possuímos a nova vida. levando-a; isto é, aniquilando ativamente, de nossa parte, esse nosso passado já aniquilado com Cristo, esse tempo do nosso estar caídos no pecado. (Conzelmann) Nesse contexto, são citados cinco vícios. A eles são contrapostos, no v. 12, cinco virtudes Conforme Conzelmann, há por trás de tudo uma imagem do homem. a qual procede da religião persa. O homem constrói o seu verdadeiro ser, partindo de suas obras boas ou más. É assim que ele cria o seu eterno destino. Enfim, a existência do homem é uma contínua auto-realização que se cumpre nas obras.
Quanto aos catálogos em si, temos um esquema que contrapõe o antes e o agora. O que se esboça acerca do passado não é um quadro realista. Tais catálogos visam antes relacionar o que é típico. (Conzelmann) Procedem, originalmente, da filosofia morai popular grega e daí passaram para o judaísmo helenístico. Quer dizer, tais catálogos não contêm, por si mesmos, algo que seria especificamente cristão. O que podemos chamar de cristão é a nova fundamentação das exigências éticas.
A morte dos vícios como o morrer da natureza terrena (v 5), por causa da morte e da ressurreição de Jesus Cristo, torna-se realidade para o cristão através do batismo. Já dissemos: ao despir-se do velho homem com os seus feitos corresponde o vestir-se do novo homem, que é Jesus Cristo. É dele que nos devemos revestir. Aliás, esta imagem do revestir-se é muito vigorosa e se presta, de maneira especial, para caracterizar a existência humana em relação a Deus.
As palavras do novo e do velho homem não se referem a uma conversão única e datável, mas assinalam a decisão sempre renovada de se deixar determinar por Jesus Cristo. O que aconteceu no batismo é renovado diariamente. Podemos lembrar as palavras de M. Lutero: O velho homem em nós, por contrição e arrependi¬mento diários, deve ser afogado e morrer com todos os pecados e maus desejos, e, por sua vez, sair e ressurgir diariamente novo homem, que viva em justiça e pureza diante de Deus eternamente. (Catecismo Menor)
Aqueles, cuja vida recebeu nova direção, são designados de eleitos de Deus, santos e amados (v.12). Todos estes conceitos se interpretam mutuamente e designam o mesmo, a saber, as pessoas com quem Deus fez nova aliança. Designam pessoas com as quais Deus, em sua condescendência, entrou num relacionamento de salvação. Estes conceitos não descrevem uma propriedade dos membros da comunidade em si, mas o agir de Deus neles Poderíamos lembrar que, nas cartas do Novo Testamento, os destinatários são, muitas vezes, chamados de santos. Mas é Deus quem santifica! Os santos em Corinto por exemplo, são os santificados em Cristo Jesus' (1 Co 1.2).
2. Novo estilo de vida
Aos eleitos de Deus, santos e amados são enumeradas as virtudes como obras do Espírito de Deus. O catálogo das virtudes consta, como o dos vícios, de cinco elementos. É importante ressaltar que os conceitos ai empregados são usados, também e antes de mais nada, em relação ao agir de Deus ou de Jesus Cristo. Senão, vejamos: OIKTIRMOS (misericórdia) aparece em 2Co 13 Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai de misericórdias e Deus de toda consolação. CHRÊSTOTÉS (bondade; encontramos, por exemplo, em Rm 2.4: Ou desprezas a riqueza da sua bondade (de Deus), e tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento?. ETAPEINÕSEN (humilhou-se) tornou-se conhecido através de Fl 2.8, que fala de como Cristo Jesus a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Repetidas vezes, o Novo Testamento se refere à PRAYTÈS TOU CHRISTOU (mansidão de Cristo). Veja 2 Co 10.1;GI 6.1. Rm 2.4 e 9.36 ressaltam a MAKROTYMIA (longanimidade) de Deus. Para a compreensão geral, devem ser observados textos como o Sermão do Monte e outros. Então veremos claramente que aqui, no nosso trecho, não são enumeradas virtudes isoladas, mas que o autor da Carta aos Colossenses traz uma ilustração típica para a nova humanidade. Expõe como, no discipulado de Cristo, se efetua o relacionamento verdadeiramente humano.
É correto afirmar que essas virtudes são dádivas de Deus e não posse do homem. Elas são a descrição do ambiente vivência! possibilitado por Deus (G. Harder). Nele se desenvolve um novo relacionamento com o irmão. Aqui um suporta o outro. Aqui se sabe o que é o perdão do qual se vive. Por isso mesmo o outro também é visto sob a misericórdia de Deus. O crente vive o que Cristo efetuou nele. Aprendeu tanto o perdoar como o compartilhar, o abrir reconciliador do coração como também da mão, coisas que superam divisões humanas!
Ainda mais podemos dizer: Comum aos cinco substantivos é o rejeitarem toda sorte de auto-afirmação; todos eles apontam para o outro, o próximo, e exigem a -preocupação pelo bem-estar e a salvação do mesmo. Assim, o próximo se torna a única lei da própria vida, isto é, este próprio não pode senão servir ao próximo, em misericórdia e bondade, em humildade e longanimidade. Em tal subordinação está a profundidade desta parênese, pois de um tal servir somente se pode falar ali onde todo o Eu e o Tu foram superados e unidos em Deus. Porque cada Eu que serve a Deus e se lhe subordina está também chamado a servir incondicionalmente ao Tu com o qual está unido em Deus. Assim, cada santo, para expressá-lo em palavras luteranas, se torna um servidor de todas as coisas e sujeito a todos (Da liberdade cristã).
Acima de tudo isto, porém, esteja o amor, que é o vínculo da perfeição. (v.14) O cristão não vive em si mesmo, mas em Cristo e no próximo. Em Cristo, pela fé, e no próximo, pelo amor. (Da liberdade cristã) Todas as virtudes se resumem no amor. Metzger diz com razão: Somente o amor une e estabelece vínculos com perfeição. E por quê? Porque ele é incondicional. Manifestá-lo a alguém é sempre um livre doar. Aceitá-lo nunca é constrangedor. O amor faz com que a comunidade seja unida em comunhão Ele e critério e expressão para o que vem a ser cristão.
V.16: As forças para a nova vida, para a vivência em amor que assume formas bem concretas, recebemo-las onde habita a palavra de Cristo. E, vejamos bem, ela quer habitar ricamente entre nós. E onde ela habita, acontecem reuniões litúrgicas, mútua edificação e louvor a Deus.
V.17: Palavra e ação dos homens devem acontecer no nome do Senhor Jesus, isto é, no nome daquele que sofreu e morreu por causa do pecado da humanidade. Sofrimento também haverá de marcar o caminho dos seguidores deste Senhor. Apesar disso, os cristãos são chamados a serem agradecidos (v. 15), a darem graças a Deus Pai (v.17) e a louvarem a Deus com gratidão nos corações (v. 16). Como isso é possível? É possível olhando para Jesus Cristo e para a paz divina estabelecida nele. A graça de Deus leva a exultar e a cantar! Aí os homens são libertados do aborrecimento dos seus próprios planos para a riqueza que se abre na comunidade. Será grande o segredo da sua nova vida. Assim vem sobre nós e sobre a comunidade o desejo de nos tornarmos o que, aos olhos de Deus, já somos: nova criatura. É hora para vivermos, amarmos e cantarmos de todo coração! E não há lugar para uma divisão entre culto, liturgia, canto e vida de cada dia. Tudo é expressão do agradecimento a Deus, possível e real através de Jesus Cristo.
III – Caminho para a prédica
Encontramo-nos no domingo Cantate, isto é, na época marcada pela alegria pascoal. Jesus Cristo ressuscitou de entre os mortos. Venceu todos os poderes necrófilos! É Senhor sobre todos os senhores! Está sentado à direita de Deus! Vive e reina eternamen¬te. Cristo exaltado é o vencedor. A ele tudo terá que se subjugar. Nas nossas comunidades, gosta-se de cantar o hino 112. Muitos o sabem de cor: Jesus Cristo é Rei e Senhor, seu é o reino e o louvor. É Senhor somente, hoje e eternamente. Sim, podemos exultar porque nenhum poder deste mundo tem domínio sobre nós. É importante ressaltar que não se trata de um Senhor distante. Ao contrário, trata-se de um Senhor que nos dá nova vida, que nos dá parte na sua vitória. Com isso, somos os eleitos, santos e amados de Deus. Pode existir algo maior que isso? Temos paz com Deus. Dessa participação em Cristo nasce a comunidade, nasce a Igreja. Ela pode ser reconhecida em determinado estilo de vida. (Apesar da ambiguidade que, externamente, permanece quanto ao comportamento do cristão.) Os colossenses são admoestados a deixarem tudo o que antes lhes era importante e que fazia parte da sua vida: Despojai-vos do velho homem. Isso vai no sentido da conhecida frase paulina: Se alguém está em Cristo é nova criatura: as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas. (2Co 5.17)
A mudança é radical! Não há algo em mim, como que uma parte do meu ser, que se tenha tornado novo. Não! Eu, como um todo, e comigo o conjunto de minhas obras, toda minha conduta se tornou nova criatura.
A partir daí é que, na comunidade, esboça-se uma vivência que é tão diferente da que o mundo conhece. Mas a comunidade não deixa de ser um grupo em peregrinação, a caminho. Ninguém ainda atingiu a perfeição. Por isso a ambiguidade, para quem acompanha de fora os passos, por vezes demasiadamente temero¬sos, daqueles que seguem a Jesus Cristo como seu único Senhor.
Por isso também sempre de novo a admoestação – como no caso dos colossenses – revesti-vos do novo homem, revesti-vos de Cristo!
Quem se sabe nova criatura é levado pelo amor, que é o vinculo da perfeição, a ensaiar novas atitudes em relação aos irmãos. Não poderá, por exemplo, permanecer indiferente diante da presença avassaladora da fome, da doença e da morte em várias regiões do nosso país.
Casaldáliga conta que, na primeira semana de sua estada em São Félix, Mato Grosso, morreram quatro crianças. Diz ele em seu diário: passaram por nossa casa em caixas de papelão, como sapatos, em direção daquele cemitério sobre o rio, onde posteriormente havíamos de enterrar tantas crianças – e tantos adultos – mortos ou matados – talvez sem caixão e até sem nome' (Casaldáliga, p. 31). Casaldáliga defendeu este povo atacando as causas de tão estúpidas mortes. Ousou ensaiar atitudes correspondentes ao novo homem. Quem é nova criatura, não fica indiferente onde impera a injustiça. Em meio à ganância dos poderosos, onde o dinheiro e o 38 se impunham, começou a brotar esperança para gente que cala quase sempre, que vive onde nascer, morrer, matar eram os direitos básicos, os verbos conjugados com assombrosa naturalidade. E essa esperança começou a brotar a partir de alguns poucos que se revestiram do novo homem.
Não precisamos ir tão longe. Ao nosso redor há muitos exemplos que engrandecem o nome do Senhor. Há milhares de pequenas flores desabrochando por aí a fora. Nas nossas próprias fileiras, há tantos irmãos que de fato arriscam viver como alguém que se revestiu de Cristo! Gostaria de apontar para o ensaio de W Buchweitz, Que é Igreja? (Estudos Teológicos, Ano 18, Caderno 2) Há tantos que fazem tudo o que fazem, em nome do Senhor Jesus, seja em palavra, seja em ação, dando por ele graças a Deus Pai. Cantai ao Senhor um cântico novo!
IV – Bibliografia
– CASALDÁLIGA, P. Creio na Justiça e na Esperança. Rio de Janeiro, 1978.
– CONZELMANN, H. Der Brief an die Kolosser. In: Das Neue Testamenf Deutsch. Vol. 8. 9a. ed. Göttingen, 1962.
– FISCHER, M. Meditação sobre Cl 3.12-17. In: Herr, tue meine Lippen auf. Vol. 2. 4a. ed. Wuppertal-Barmen. 1962.
– HARDER. G. Meditação sobre Cl 3.12-17. In: Göttinger Predigtmeditationen. Ano 61. Caderno 2. Göttingen. 1972.
– HELD. H. J. Meditação sobre Cl 3.12-17. In: Hören und Fragen. Vol. 6. Neukirchen-Vluvn. 1971.
– LOHMEYER. E. Die Briefe an die Kolosser und an Philemon. In: Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament. 93 ed. Göttingen. 1953.
– MEZGER. M. Meditação sobre Cl 3.12-17. In: Göttinger Predigtmeditationen. Ano 35. Caderno 2. Göttingen, 1966.