Prédica: Efésios 5.15-21
Autor: Meinrad Piske
Data Litúrgica: 20º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 19/10/1980
Proclamar Libertação – Volume: V
I – Considerações exegéticas
O contexto maior das recomendações do texto é a segunda parte da Epístola aos Efésios. Entendo que os primeiros três capítulos contêm a parte doutrinária, enquanto que os últimos três contêm a parte ética, ou seja, as recomendações práticas para a vida cristã. Enquanto nos primeiros três capítulos tudo está centrado na fé, nos últimos três tudo se concentra nas admoestações relativas à vida concreta.
O contexto menor é formado pelo cap. 5. Antecedem as admoestações que descrevem os leitores como sendo filhos amados e filhos da luz, para culminar com o chamado: Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo te iluminará (v.14). A partir daqui, entendemos o portanto com que inicia o v.15, o início de nosso texto. Este portanto serve ti e ponte entre as admoestações anteriores e as que se encontram nos vv. 15 a21.
Após o nosso texto, seguem-se as admoestações que falam aos cônjuges de seu relacionamento mútuo, servindo o v. 21 -sujeitando-vos uns aos outros – como elo de ligação entre as duas perícopes.
Constatamos, a partir daqui, que o texto não tem intenções doutrinárias, mas eminentemente práticas, significando isto que não podemos querer descobrir a teologia da Epístola aos Efésios neste trecho. Ele faz parte do grande complexo de admoestações, e assusta-nos o grande número de imperativos que aí encontramos: onze, em seu total. Somente nas entrelinhas conseguimos ver as motivações para as recomendações que contém.
Não há necessidade de relacionar o texto, em maior profundidade e com muitos detalhes, com o contexto em que está inserido. Explica-se por si só. Basta atentarmos para o fato de que nos confrontamos com recomendações que visam dar indicações para a vida cristã.
V. 15: Portanto, vede prudentemente como andais, não como néscios, e, sim, como sábios.
Devemos relacionar a palavra ''prudentemente com o verbo ver. Não se trata de andar com prudência, mas de ver prudentemente como se anda. Deve-se meditar, refletir e estudar com todo o cuidado como se anda. O acento está colocado no vede, tendo o sentido de: prestem muita atenção. São apresentadas duas opções para o andar: ou o fazemos como néscios, ou então como sábios. A escolha entre essas duas opções vai determinar a maneira de como nos comportamos na caminhada. A ignorância – néscios – tem o sentido de viver sem fé, enquanto que a sabedoria tem o sentido de viver em fé. A admoestação de andar como sábios está fortemente enraizada na tradição judaica e, em especial, na sua doutrina sapiencial, assim como o testemunha com muitos detalhes o Livro dos Provérbios – especialmente os primeiros nove capítulos – no Antigo Testamento.
V. 16: Remindo o tempo, porque os dias são maus.
A consequência do viver sabiamente está no imperativo de remir o tempo, fundamentado na constatação de que os dias são maus. Em outras passagens neotestamentárias, os dias maus são descritos com o termo este século, como por exemplo em 1Co 1.20; 2.8; Rm 12.2; Ef 1.21. Todo o tempo que não é tempo de Deus – tempo eterno – é tempo mau, por ser tempo rebelde a Deus. Tempo de Deus significa aquele espaço ocupado pela presença de Deus entre os homens. O cristão, que foi chamado por Deus e colocado dentro deste tempo, deve remir o tempo, deve aproveitas as oportunidades para tornar o tempo que tem à disposição tempo de Deus. Pode-se diferenciar entre tempo de criação e tempo de graça e de consumação. Este é o tempo que Deus usa para agir para o bem de suas criaturas e de sua criação. Sendo agora o tempo da graça, o cristão é instado a aproveitar o tempo – remir o tempo
– (no sentido de comprar o tempo para fora do tempo mau), aproveitando as oportunidades que Deus lhe concede para viver a realidade divina em sua vida.
V. 17: Por esta razão não vos torneis insensatos, mas procurai compreender a vontade do Senhor.
Este é o primeiro ponto culminante do trecho: procurar compreender a vontade do Senhor. Quem anda como néscio e ignorante é insensato, mas quem anda como sábio se esforça para remir o tempo, procurando compreender qual a vontade de Deus. A vontade do Senhor não está cimentada em leis e mandamentos, em regulamentos e tradições válidas para todos os tempos e para todas as situações, como se bastasse aplicar apenas o parágrafo correspondente apara a situação já preliminarmente prevista e considerada pela lei divina. Considerando a situação e a época em que se encontra inserido, o cristão deve procurar compreender qual é a vontade de seu Senhor. O seu dever é o de pesquisar, meditar, refletir e estudar com afinco, para poder compreender a vontade de Deus no contexto real de sua vida e existência.
Devo chamar nossa especial atenção para o fato de que não estamos sendo intimados a cumprir a vontade de Deus ou obedecer aos preceitos estabelecidos por ele, mas a procurar conhecer a sua vontade. Antes de cumprir, devemos entender qual a vontade de Deus: este é o dever especial e primeiro do cristão. O fazer teológico é a reflexão crítica a respeito da fé e da vivência cristã, a partir das situações existenciais e sociais, sob o critério da palavra libertadora de Deus. (O Evangelho e nós, p.53)
V.18: E não vos embriagueis com vinho, no qual há dissolução, mas enchei-vos do Espírito.
Podemos entender o não vos embriagueis com vinho de duas maneiras: uma, no sentido literal, como recomendação contra bebidas alcoólicas (o povo alemão de hoje só quer beber e encher-se, Lutero); e outra, num sentido mais genérico e amplo, como recomendação contra tudo que desvia de Deus (fontes alheias e externas, Russel). O que chama especial atenção é a recomendação positiva, diante da negativa de embriagar-se com vinho. Não se recomenda – como seria de esperar – a sobriedade, mas enchei-vos do Espírito. A sequência natural do versículo indica: não embriagar-se com vinho, mas embriagar-se com o Espírito. Enquanto que as consequências do vinho são descritas como as dissoluções, as consequências do Espírito são apontadas nos versículos seguintes em detalhes. Nesta afirmação acerca do Espírito, temos o segundo ponto culminante de nosso texto, sendo que, a partir daqui, são exemplificadas, nos vv. 19 a 21, em termos de vida prática, as consequências do encher-se com o Espírito.
V. 19: Falando entre vós com salmos, entoando e louvando de coração ao Senhor, com hinos e cânticos espirituais.
Infelizmente, esta tradução de Almeida (edição revista e atualizada no Brasil) é confusa, e não espelha com fidelidade e corretamente o que este versículo quer transmitir. Uma tradução mais correta seria: falando entre vós com salmos, hinos e cânticos espirituais, e entoando e louvando o Senhor. Assim se torna claro que as consequências da ação do Espírito têm caráter duplo: uma vez em direção a Deus e outra, em direção ao próximo. Os deveres para com Deus, a partir do Espírito, consistem em entoar e louvar o -Senhor, ou seja: cantar e tocar instrumentos musicais para o louvor de Deus. As consequências da ação do Espírito em relação ao próximo consistem em falar em salmos, hinos e cânticos espirituais. Esta consequência dupla da ação do Espírito tem a sua contribuição descrita nos versículos seguintes.
V.20: Dando sempre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo.
O falar com Deus entoando e louvando, no sentido de cantando e fazendo música, tem a sua continuidade no imperativo de agradecer a Deus por tudo e sempre. O agradecimento a .Deus está enraizado na herança recebida do judaísmo. Este ensinava a agradecer de manhã, à noite e também diante de todas as notícias que se recebia, quer fossem boas quer más. O agradecimento em nome de nosso Senhor Jesus Cristo deve ser entendido no sentido de Rm 8.32ss, onde Deus é louvado pelo fato de já ter dado a nós seu Filho, esperando-se que, por este motivo, venha a nos dar também todas as cousas.
V.21: Sujeitando-vos uns aos outros no temor de Cristo.
Este versículo volta, de novo, a atenção para o próximo. Além de falar com ele em salmos, hinos e cânticos espirituais – sendo que isto acontece no culto da comunidade, e deve ser interpretado no sentido de agir em conformidade com aquilo que os salmos, hinos e cânticos espirituais têm por conteúdo -, o cristão deve sujeitar-se ao próximo. Temendo somente a Cristo, o homem está livre para sujeitar-se ao outro, invertendo, assim, todo o direito de autoridade e seguindo o enunciado em Mc 10.45: O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir….
II – Reflexão
Não se pode anunciar este texto no sentido exato da palavra. Pode-se anunciar fatos, mas não recomendações. Claus Westermann descreve, com estas palavras, as dificuldades que o texto representa para o pregador do evangelho, para aquele que deve anunciar a boa nova.
Pode-se repetir e interpretar – atualizando-as – as onze diferentes recomendações de que se compõe o texto, mas surge aqui a pergunta se isto seria de fato pregação. Pode-se procurar os indicativos, os fatos um tanto quanto ocultos e esparsos no texto, e a partir daqui entrar no campo das recomendações.
A afirmação que mais chama a atenção é a que descreve o nosso tempo, como sendo tempo mau ou dias maus. Convém, por isso, remir o tempo – o KAIRÓS – aproveitar o tempo que Deus dá. A partir de Mc 1.15, temos uma compreensão do que significa este tempo novo.este KAIRÓS que devemos remir e aproveitar: O tempo está cumprido, o reino de Deus está próximo, arrependei-vos e crede no Evangelho. Esta primeira pregação de Jesus Cristo aponta para o tempo novo que surgiu dentro do tempo velho e mau. A eternidade – tempo eterno – está próxima aos homens, na pessoa de Jesus Cristo, no Reino de Deus. O nascimento de Jesus Cristo, sua vida e obra, sua morte e ressurreição trazem à terra, para dentro deste tempo, o Reino de Deus. Diante desta realidade, todo o outro tempo – anterior e posterior – é tempo mau.
Este é o tempo em que nos encontramos e nele devemos agir, dentro deste tempo devemos caminhar em sabedoria, ou seja, em fé. Vindo a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho… (Gl 4.4) Esta plenitude deve ser vivida e considerada em todos os passos da caminhada.
Podemos ver todas as outras recomendações como aros que estão firmados nesse eixo central, que faz com que toda a roda exista: Remi o tempo, porque os dias são maus.
Nós vivemos esta realidade – somos participantes, pela fé, desse novo tempo – e, consequentemente, devemos- agir em conformidade com ela, traduzindo-a, com nossos atos e gestos, em realidade concreta.
Consciente de que está indo além do texto proposto, o pregador pode alicerçar as recomendações da passagem nesses fatos concretos. Basicamente trata-se de um fato: a pessoa de Jesus Cristo.
Existindo a possibilidade de remir o tempo, existe implicitamente também a possibilidade de não fazê-lo, a possibilidade de deixar de aproveitar a oportunidade. O SI 90 fala essa linguagem, especialmente quando constata que os nossos anos se acabam como um breve pensamento (SI 90.9). Diante da pergunta de como se realiza concretamente este remir o tempo, devemos optar entre uma pregação sobre todo o texto ou apenas sobre uma parte dele. Parece-me ser demais querer pregar sobre todas as recomendações do texto num só domingo e culto. Corremos o perigo de cansar os nosso ouvintes, confundindo-os com as muitas recomendações, e atrapalhando o entendimento da Palavra de Deus.
Uma possibilidade é concentrar-se nos vv. 15 a 17, tendo, então, como centro da reflexão, o v. 17, que fala da procura de compreensão da vontade de Deus.
Outra possibilidade é concentrar-se nos vv. 18 a 21, tendo, então, como centro da reflexão, a recomendação que rege estes versículos: o encher-se do Espírito. Neste caso, a meditação deve estar dirigida para a dádiva e as consequências do Espírito Santo na vida do cristão. Tenho, para mim, que esta segunda possibilidade seria excelente para um dia de encontros corais, ou para um domingo em que se reflete sobre o canto e a música, na igreja e na vida cristã. Pode-se levar a reflexão concretamente na direção de perguntar e responder, com o texto, sobre o nosso canto na igreja e seu sentido ou consequências para o relacionamento com Deus (cantar e tocar instrumentos musicais para o seu louvor, e agradecer sempre e em todos o lugares) e com o próximo (viver em conformidade com aquilo que cantamos em nossos salmos, hinos e cânticos espirituais).
Entendo que, em nossos dias, devemos refletir sobre a primeira parte do texto, considerando que, em especial, a pergunta pela vontade de Deus é de grande atualidade. A partir do imperativo de remir o tempo, podemos refletir sobre a necessidade de procurar compreender a vontade de Deus.
III – A caminho da prédica
Podemos estruturar a prédica em três assuntos principais:
1. Os dias são maus, por isso devemos remir o tempo. O tempo eterno, que é o tempo de Deus, entrou em nosso tempo na pessoa de Jesus Cristo. Convém remir o tempo que temos, tornar realidade, em nossas vidas e naquilo que está ao nosso alcance, o Reino de Deus que veio com Jesus Cristo. Devemos aproveitar as oportunidades que nos são dadas para concretizar o tempo de Deus, esvaziar os dias maus e preencher o vazio com a realidade da presença de Deus.
2. É necessário saber e lembrar que estamos no caminho, estamos andando e, portanto, em movimento. Devemos verificar com cuidado como estamos andando; se estamos andando como os sábios ou como os néscios, como pessoas que entendem e compreendem seu andar, ou como pessoas que são levadas e empurradas sem terem opinião própria. Como o viajante, que faz uma parada para consultar o seu mapa e verificar a direção em que deve andar, assim nós devemos consultar o nosso andar.
3. Sendo os dias maus, estamos em tentação permanente de vagar como ignorantes e insensatos pela estrada da vida, seguindo apenas os trilhos que estão diante de nós. A verdadeira sabedoria, nesta caminhada, consiste em procurarmos compreender a vontade de Deus na atualidade em que nos encontramos. A vontade de Deus deve ser o nosso fazer teológico que nos leva a perguntar pela Palavra de Deus na situação da vida.
A vontade de Deus não é tão clara como poderíamos supor. Nosso texto nos convoca explicitamente a procurar compreendê-la. Entre nós existem diversas maneiras de interpretar e entender o que é vontade de Deus.
a) A interpretação fatalista: Esta explicação encontramos diariamente, quando ocorrem mortes, acidentes e catástrofes, quando estamos diante de fatos que não conseguimos entender ou explicar para nós mesmos ou para outros. Este entendimento da vontadede Deus, muitas vezes descrita como fatalidade ou como destino implacável e imutável, é muito popular. Neste sentido, reconhecer a vontade de Deus significa conformar-se com aquilo que aconteceu, aceitando como vindo de Deus o que nos sucede aqui na terra. Não podemos deixar de lembrar que esta atitude de aceitação está firmemente ancorada na tradição das igrejas cristãs. Cito, como exemplo, as seguintes palavras do hino do nosso hinário Suceda sempre o que Deus quer, onde se lê na segunda estrofe: aceito sempre o que lhe apraz,/ com alma agradecida.
b) A interpretação legalista: Também esta interpretação é bastante difundida em nosso meio, tanto em movimentos religiosos quanto no folclore de nossa terra. Neste sentido, entende-se que a vontade de Deus foi estabelecida pelos Dez Mandamentos e pelo mandamento do amor a Deus e do amor ao próximo. Existem muitas vi sacões desta interpretação, desde a burguesa, que indica certos critérios de comportamento, até a sectária, que proíbe muitas coisas, da televisão aos cabelos compridos para homens. Mas não podemos deixar de ver que existe aí muita seriedade na tentativa de compreender a vontade de Deus e de realizá-la na vida, obedecendo-se aos mandamentos de Deus.
c) A interpretação teológica: Esta interpretação não alcançou o êxito popular das duas primeiras. Entendo-a como teológica, no sentido do fazer teológico do qual fala o posicionamento do corpo docente da Faculdade de Teologia (vide bibliografia). Entende-se ai a vontade de Deus como a missão ou o dever que determinada comunidade, paróquia, igreja ou mesmo povo tem em uma situação concreta da história.
Sem querer excluir, sumariamente, as duas primeiras interpretações da vontade de Deus em nosso meio, creio ser nosso dever especial apontar e lembrar que a vontade de Deus deve ser procurada. Devemos procurar compreender a vontade de Deus em nossa situação específica. Para isso se torna necessário pesquisar e analisar, à luz da Palavra de Deus, a situação em que vivemos. Caminha certo o pregador que consegue atualizar o texto no sentido de refletir com a sua comunidade sobre a vontade de Deus na situação concreta, seja no âmbito individual, eclesiástico, social ou político.
IV — Bibliografia
– WESTERMANN, C. Meditação sobre Ef 5.15-21. In: Herr, tue meine Lippen auf. Vol. 2. Wuppertal-Barmen, 1959.
– O Evangelho e Nós – Posicionamento do Corpo Docente da Faculdade de Teologia. In: Estudos Teológicos. No 2, ano 18. São Leopoldo, 1978.
– GÓES, H. Weisheit in boeser Zeit. In: Deutsches Pfarrerblatt. 1968.
– ASTRUP, N. / HAUG, M. Kurze Auslegung dds Epheserbriefes. Göttingen, 1965.
– SHEDD, R. Tão grande salvação. São Paulo 1978.
– WEBER, O. Grundlagen der Dogmatik Vol. 2. Neukirchen, 1962.