Prédica: Hebreus 13.12-16
Autor: Walter Altmann
Data Litúrgica: Dia da Independência
Data da Pregação: 07/09/1980
Proclamar Libertação – Volume: V
I — A vida — ou melhor: a morte
A 24 de julho de 1979, após três anos de infatigáveis e inúteis buscas, Angélica Cáceres de Julien, uruguaia, finalmente reencontrou em Valparaíso, no Chile, seus netos Anatole e Lúcia Eva. Desaparecidas, juntamente com seus pais, na Argentina, em setembro de 1976, essas crianças haviam sido abandonadas incógnitas n urna praça de Valparaíso, no Chile, três meses após. A Sra. Angélica ainda não tem notícias quanto ao paradeiro de seu filho e de sua nora, pais das crianças. E provavelmente jamais terá. O próprio Anatole, então quatro anos, recorda-se hoje da polícia invadindo sua casa e de ter presenciado sua mãe ser baleada, enquanto o pai tentava escapar pelo teto. Fato é que os pais desapareceram, e as crianças só foram aparecer no Chile, onde acabaram sendo adotadas por um casal chileno.
São milhares os desaparecidos no Cone Sul da América do Sul (alguns poucos talvez vivos incógnitos, outros possivelmente ainda presos em algum lugar igualmente desconhecido, a maioria sem dúvida morta; jamais, porém, se obtém a confirmação, embora os governos chileno, argentino e brasileiro tenham admitido considerar mortos, para fins legais, os desaparecidos). São centenas as crianças procuradas (quantas igualmente mortas?, outras abando¬nadas em outro lugar qualquer, até além fronteiras, como no caso de Anatole e Lúcia Eva).
Quanta angústia de familiares e amigos, na incerta certeza da morte de quem desapareceu! Todos são vítimas de um criminoso sem rosto e sem nome – um sistema de repressão multinacional. (Rossi/Carvalho, p. 27) O drama de Anatole e Lúcia Eva, de seus pais adotivos e de sua avó legítima ainda não terminou. Nem , poderá mais haver solução. Com quem ficarão as crianças? Essa pergunta ainda deverá receber uma resposta, pelo entendimento das partes ou pelo pronunciamento da justiça. Não se desfará, porém, o trauma e o trágico sofrimento. Quem são os executores anônimos? Quem são os mandantes acobertados? Como minorar o sofrimento? Como fazer respeitar a criatura humana? Quando ainda comandante do III Exército, o atual Ministro do Exército brasileiro, General Fernando Belfort Bethlem, em aula inaugural para um grupo de T90 oficiais do Centro de Formação de Oficiais da Reserva, asseverava que os Estados americanos estreitam, cada vez mais, os entendimentos recíprocos, tendo' em vista a segurança do continente (Folha da Manhã, de 25-2-77, p. 8). Como entender essa frase, no contexto dos desaparecimentos? Certo é que as perguntas acima não têm recebido resposta. E Anatole e Lúcia E vá só foram encontradas, depois de empenhes de exilados uruguaios e organismos internacionais, quando a Comissão de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo assumiu o caso e publicou matéria em seu boletim Clamor, e este foi parar nas mãos da avó. Sinal de solidariedade humana, fraterna e livre de uma instituição eclesiásticas. Quanto à Doutrina de Segurança Nacional, esta tem sido reiteradamente acusada em pronunciamentos oficiais da Igreja Católica de garantir a segurança do Estado mediante a insegurança dos cidadãos.
Escolhi este caso para ilustrar a realidade de que em nossos países ainda temos muita morte – e pouca independência. O grito de Dom Pedro l, às margens do Ipiranga (Independência ou Morte?), ao proclamar a independência do Brasil de Portugal, em 1822, ainda está por se transformar em realidade. E só será realidade, quando o povo for livre e puder viver ele em segurança e justiça. Aliás, contrariamente ao que é sugerido pelas campanhas patrióticas e cívicas oficiais, bem como pelos manuais escolares de História do Brasil, não houve independência efetiva tampouco em 1822. É um traço característico da história do Brasil (e da América Latina, em geral), que sempre de novo nossas estruturas se moldaram aos sistemas de dominação e espoliação imperantes. À colonização ibérica, mais interessada na exploração dos recursos naturais do continente, seguiu-se, com a independência, a sujeição ao imperialismo mercantilista britânico, que foi sucedido pelo imperialismo capitalista estado-unidense (que estaria dando, lugar à espoliação capitalista multinacional?). Têm-se alterado, portanto, as formas de dependência, espelhadas nos sistemas de dominação social interna, mas não dado fim à dependência e à dominação em si. O sistema social, político e econômico latino-americano, a cada crise (não estaríamos em uma atualmente, outra vez?), tem demonstrado uma insuspeitada capacidade de sobrevivência (Donghi, p. 313).
Acrescente-se: como consequência dos estudos e entendimentos da Comissão Trilateral (Estados Unidos/Canadá, Europa Ocidental/Mercado Comum Europeu e Japão), já se espreita a colocação de nações do porte e dos recursos do Brasil num patamar intermediário entre os países desenvolvidos mais pobres e os países mais miseráveis do globo. A estes últimos já se dá o nome de Quarto Mundo, caracterização para as nações consideradas inviáveis e que portanto serão mantidas na miséria e na marginalidade total. Assim, em vez de se estreitar o abismo entre riqueza e pobreza (objetivo frustrado das décadas de desenvolvimento), introduz-se deliberadamente um artifício de divisão entre os subdesenvolvidos, para alargar ainda mais a distância entre nações ricas e pobres, perpetuando o sistema global de dominação e dependência.
Não há, pois, nesta data, razão alguma para euforia patriótica – tanto mais, porém, para uma tomada de consciência popular. O verdadeiro grito do Ipiranga ainda está por ser proferido.
II – Independência
1. Tradução
V.12: Jesus sofreu (a morte) fora da porta (da cidade), para santificar o povo, pelo seu próprio sangue.
V.13: Portanto, saiamos nós a ele, fora do acampamento seguro, levando junto conosco a vergonha (de sua condenação).
V.14: Na verdade, não temos aqui cidade permanente, mas nos empenhamos por aquela que há de vir.
V.15: Assim, através dele, ofereçamos sempre a Deus um sacrifício de louvor, isto é, fruto de lábios que confessam seu nome.
V.16: Não negligencieis a prática do bem e a mútua cooperação; pois Deus se agrada com sacrifícios dessa ordem.
2. Exposição
O texto se reporta a um povo que aguarda, procura e se empenha (todos esses três significados estão contidos no verbo EPIZÈTEÕ do v.14) por uma realidade definitiva que se contrapõe à realidade presente. Reflete-se aqui a consciência específica do povo de Deus de que só no próprio Deus nossa vida e a presente ordem encontram seu alvo e sua realização. Por isso, a comunidade cristã é uma comunidade peregrina, que não pára, não se acomoda nem se conforma. A Igreja como povo de Deus peregrino é um dos temas centrais da Epístola aos Hebreus.
Há na formulação do v. 14, é bem verdade, um forte influxo apocalíptico. A tradição apocalíptica descrevia o novo mundo como resultado de um portentoso drama final, em que a velha realidade e a nova se antepunham como grandezas irreconciliáveis e antagônicas. Aos crentes competia aguardar em confiança a ação decisiva de Deus. Tal visão dualista do mundo tem persistido também através da história da cristandade (praticamente em todas as denominações), tornando-a desinteressada da realidade circundante e assim um baluarte de sedimentação das injustiças sociais. Essa postura de negação ao mundo tem se nutrido de textos como o do v. 14.
Importa, porém, observar que no contexto bíblico global a apocalíptica recebe o corretivo da visão histórica. Mas mesmo na Epístola aos Hebreus, o ponto de comparação predominante é a expectativa de uma nova realidade. Deve-se tomar em conta também que, ao que tudo indica, a comunidade endereçada pela epístola se encontrava sob perseguição, não podendo, portanto participar ativamente na construção de uma nova realidade. Mesmo assim, sua consequência não é o descompromissamento, mas o empenho já agora pelo que há de vir. Temos então para com nossa realidade de hoje, a analogia de um povo em migração, à procura de novos dias. A igreja, quando igreja de Jesus Cristo, é um tal povo em migração.
As consequências já agora são por isso também explicitadas nos w. 15 e 16: os sacrifícios do louvor, da prática do bem e da mútua cooperação (KOINÕNIA). Há quem coloque uma preponde-rância no v. 15, fazendo com que a exortação ao sacrifício se reporte ao âmbito do culto da comunidade. É bem verdade que o v 16 apresenta uma mudança estilística (a primeira pessoa do plural e substituída pela segunda na exortação), c que poderia assinalar a mudança de tema. Mesmo assim, porém – ou, quem sabe, justamente por isso -, é significativo que o autor da epístola tenha considerado necessário adicionar a exortação do v. 16, ligando-o com o versículo anterior explicitamente pelo termo sacrifício.
Fazemos, portanto, bem em divisar, nesses dois versículos, a exortação à dedicação de vida do cristão, em suas três dimensões fundamentais: para com Deus (louvor), para com o próximo (prática do bem) e para com o irmão da comunidade (mútua cooperação ou comunhão). Mesmo uma comunidade peregrina, que busca o que há de vir, tem motivos constantes para o louvor a Deus pela vida, esperança e força que Ele proporciona. Ademais, uma comunidade peregrina, consciente de se encaminhar para uma nova realidade, não deixará de ver as múltiplas necessidades e sofrimentos como chances para a prática do bem. Uma comunidade peregrina sabe, por fim, que não aguarda legitimamente a fraternidade, se não é fraterna já agora. Aliás, a comunhão, o apoio e fortalecimento mútuos são uma necessidade para o povo migrante de Deus.
Misericórdia quero, não sacrifício (Os 6.6; Mt 9.13; 12.7). Nessa tradição se insere também o presente texto. Por isso o emprego do termo sacrifício, não como um ato litúrgico, desvinculado daquele que o oferece, mas como expressão da dedicação integral de vida, como já o expressara magistralmente Paulo, em Rm 12,1 s: o sacrifício de toda a pessoa, que na inconformidade com o mal presente, se transforma para tomar consciência da vontade de Deus.
A limitação do termo sacrifício a esse sentido se impõe também já pelo fato de ser canto firme constante da Epístola aos Hebreus que o sacrifício único, irrepetível, irrecorrível, definitivo e universal é a morte de Jesus Cristo. Isso nos leva aos vv. 12 e 13, onde a exortação apostólica recebe sua fundamentação e radicalização. (A delimitação inicial da perícope tem razão tão-somente pedagógica, pois os versículos anteriores explicitam justamente a contraposição do sacrifício único e universal de Jesus a todos os sacrifícios anteriores, repetidos e parciais.) A exortação se arraiga na morte de Jesus, que veio em favor de todos, de uma vez para sempre. Ele foi repudiado, não havia lugar para ele nascer, em vida não tinha onde reclinar a cabeça, sofreu a morte fora da cidade, o que significava, segundo a tradição, morrer na impureza e na execração. Também ele foi forçado a migrar, não teve direitos respeitados e foi vítima da repressão e da opressão. Rejeitado pelas forças religiosas, condenado pelas forças políticas, não esteve no centro, mas à margem, na periferia. Ali morreu. E assim santificou o povo.
Portanto – segue o v. 13 -, saiamos também nós a ele, também fora do centro seguro, para a margem, também nós com a vergonha que se abateu sobre ele. Quer dizer: enquanto o v. 12 dá a base cristológica para todo o agir do povo de Deus (sem ele nada podemos), o v. 13 enfatiza a consequência ética radical: nós, seus seguidores, seu espelho. Daí que o termo sacrifício nos vv. 15 e 16 se prestou como adequado. O louvor, a prática do bem e a comunhão não têm nada de romântico e sentimental, mas são expressão de uma vivência à margem, com o povo em migração forçada, fazendo história através do sacrifício.
A morte de Jesus é independência. Sua comunidade que o segue, é livre nele, mas busca a independência em meio à realidade de morte.
III – Pregação: Independência ou morte
Um elemento fundamental da pregação deverá ser a consciência de que, apesar dos chavões patrióticos e das campanhas oficiais, não somos uma nação independente. Ao contrário, vivemos num grave sistema de dependência, que ocasiona incontável sofrimento e morte. (Dar exemplos, de seu meio, de sofrimento causado pela injustiça social.) Ao mesmo tempo, não se pode desconhecer que há um profundo anseio popular por independência, que ocasiona mobilizações e movimentações. As grandes migrações, seja por razões políticas, seja por econômicas, de um país a outro, do campo para a cidade, para novas áreas de colonização, podem servir de figura e ilustração para tal fato, embora sejam em si reflexo das distorções existentes.
O outro elemento básico da pregação deverá ser o testemunho de nosso texto de que pela morte de Cristo há de fato um povo vocacionado para a independência, um povo que por isso pode e deve se colocar ao lado do anseio e movimento popular, não negando o seu sacrifício, isto é, a entrega de si mesmo a essa causa. O povo de Deus alia sua convicção de fé aos anseios populares. Apontará para Cristo, em quem unicamente se encontra perfeita independência, mas o fará através da solidariedade ativa com a esperança e a luta do povo oprimido. (Procurar exemplos em seu meio de como a comunidade cristã pode se inserir na luta do povo brasileiro.)
A pregação poderia seguir o seguinte esboço: Tema: Independência ou morte
V 14: O povo de Deus se empenha pela independência que vem de Deus.
Vv.15-16: No caminho para a independência o povo de Deus é chamado
a) ao louvor (para com Deus),
b) à prática do bem (para com o próximo) e
c) ao apoio mútuo (entre si).
Vv.12-13: A morte de Jesus ocasiona já agora independência, fortalecendo o povo de Deus junto aos que estão à margem, aos oprimidos.
Por fim, tentei transpor o texto para a realidade e a temática aqui esboçadas, e cheguei à seguinte tradução interpretativa:
IV – Uma nova tradução
V. 12: Jesus sofreu a morte, expulso da sociedade estabelecida para libertar o povo pelo seu próprio sangue.
V. 13: Portanto, saiamos nós a ele, para fora de estruturas protegidas, levando junto conosco a carga vergonhosa de sua condenação.
V. 14: Pois não temos aqui sociedade estável, mas empenhamo-nos por aquela que certamente se estabelecerá.
V. 15: Através de Jesus, estejamos sempre dispostos a um sacrifício adequado ao dele:
a boca comprometida com ele não cesse de engrandecer a Deus, o corpo não cesse de praticar a justiça e empenhar-se pela socialização.
É desses sacrifícios que Deus gosta.
V – Bibliografia
– DONGHI, T. H. História da América Latina. Rio de Janeiro, 1976.
– MICHEL, O. Der Brief an die Hebräer. Göttingen. 1966.
– ROSSI. C./CARVALHO. R. Órfãos pela repressão. In: Isto É. No 137, 8.8.79, pp. 24-28.
– SMOLÍK, J. Meditação sobre Hebreus 13.13-16. In: Göttinger Predigtmeditationen. Ano 22. Göttingen, 1966/67.
– SODRÉ, N. W. Formação Histórica do Brasil. São Paulo. 1967.