Prédica: 1 Pedro 2.15-17
Autor: Werner Fuchs
Proclamar Libertação – Volume: VI
Proclamar Libertação lI – Aspecto Eclesial
Libertação e Igreja
Também não tem jeito, hoje, de fazer uma comunidade cristã de verdade. Como é que vai fazer? Os pobres não têm nada. Os ricos não abrem mão do que têm. Dizem que os problemas da vida do pobre como terra, salário, emprego, não devem ser tratados na Igreja. A Igreja é para pensar só em Deus e na alma. É para rezar. E aí vamos amar, um comendo por três e três ficando sem comer?
A Igreja tem servido para encobrir a injustiça. É como um tapete bonito. A empregada da casa esconde a sujeira debaixo do tapete para ninguém ver. Mas daí a uns tempos a sujeira começa a feder e o tapete apodrece até. Assim pode acontecer com a religião sem compromisso.
um lavrador (Os estudos bíblicos de um lavrador, p.45)
I – De uma igreja burguesa, sem pobres, para uma igreja pobre, dos pobres
Através da salvação gratuita e da renovação espiritual e estrutural em Jesus Cristo, Deus escolhe para si um povo (l Pe 2.9s), a Igreja. É certo dizer que, historicamente, esta Igreja serviu de abrigo para pobres e fracos. Entretanto, do ponto de vista sociológico, as estruturas eclesiásticas muitas vezes reproduziram as estruturas das sociedades às quais pertenciam, relacionando-se melhor com os governos e poderes deste mundo do que com o povo de Deus. Jesus condenou severamente a Igreja que faz alianças com o poder e ajuda na exploração religiosa e econômica do povo (Mt 23), e bendisse a Igreja pobre, humilde e perseguida (Mt 5). Entre um extremo e outro situam-se as instituições eclesiásticas da atualidade, mas o Espírito Santo produz renovações surpreendentes, despertando solidariedade com os pobres e possibilitando sua participação na vida eclesiástica (cf. Conselho Mundial da Igreja,pp.9 e l7).
Líderes populares e políticos reconhecem que a grande novidade nos movimentos sociais da América Latina é. que a Igreja está tomando o partido da classe pobre e explorada (Medellín, Puebla). Pela primeira vez essa posição é tio ampla que abrange grande parte dos quadros diretivos das igrejas. A opção pelos pobres não é expressão de simples sentimentalismo, mas decorre de uma compreensão (nem sempre bem articulada) de que é preciso romper com o atual sistema econômico, que beneficia uma minoria rica e marginaliza milhões de trabalhadores. A igreja diz presente ao lado do povo porque sentiu o questionamento que as lutas e os sofrimentos dos pobres lhe colocavam e porque aprendeu a ver neles a própria ação de Deus através da história (cf. CIET n.° 27).
Todavia, em muitos setores das igrejas, quer protestantes quer católicos, a realidade da classe pobre ainda é ignorara ou até reprimida. Por isso surge um salutar debate interno, a partir das bases populares e em torno das lutas concretas.
Através dessa confrontação entre setores que são coerentes na opção pelos pobres e os que conservam privilégios e estruturas, a Igreja é lembrada de que não existe para si mesma. O Reino é o horizonte e o sentido da Igreja. Ela existe para testemunhar a presença de Cristo Libertador e de seu Espírito nos fatos e nos sinais de vida que se dão no caminhar dos povos (CIET, n? 37).
II – Transformações eclesiais
As mudanças decorrentes da opção em favor dos pobres não são fruto de um discipulado individual, mas, sim, de um seguimento coletivo de Cristo, que preferiu os pobres da terra armando sua tenda entre eles (Jo 1.14).
1. Nova espiritualidade: Em lugar de um clericalismo ou do fortalecimento da instituição, observa-se agora, pela presença do povo, o esvaziamento, a atitude de pobreza evangélica, a humilde solidariedade com os fracos (Mt 20.25-28) e a procura por uma partilha fraternal dos bens (At 4.34s).
2. Formação política: Inúmeras são as publicações em linguagem popular e os cursos populares que tratam de temas como eleições, sindicato, lutas e vitórias do povo, ferramentas para transformação, etc. Nunca os agricultores do Oeste do Paraná tinham ouvido um bispo (!) falar de sistema capitalista e explicar e denunciar os mecanismos de exploração do povo, como aconteceu numa recente visita de D. José Brandão, do Nordeste.
3. Denúncia profética: Em inúmeros casos de violações de direitos fundamentais da pessoa, o episcopado ou conferências eclesiásticas passaram a denunciar as reais causas, tomando-se assim voz dos sem voz nem vez. Não pode ser subestimada a força dessa denúncia, pela pressão que exerce sobre os poderosos através da opinião pública. Contudo, ela precisa ser acompanhada de um engajamento prático, sob pena de ser facilmente esvaziada na sua força.
4. Ação transformadora ao lado do povo: Começando por uma nova organização popular, por meio de grupos, assembleias, movimentos (muitas vezes em aliança com organismos seculares, como sindicatos), a Igreja, ou seja, os pobres na igreja, exercem uma pressão de baixo, para a transformação da sociedade. As lutas, que iniciam com reivindicações de caráter econômico, passam a visar também mudanças na constelação do poder, ganhando assim, um cunho eminentemente político.
5. Ecumenismo na base: Fronteiras tradicionais entre igrejas são rompidas ao descobrir o povo que é um só, e que necessita aprender a agir em conjunto. Por exemplo, na luta pela terra, católico-romanos e pentecostais se encontram no mesmo sindicato. Diante da necessidade comum, a Bíblia tem a dizer-lhes algo de forma nova, diferente do que as tradições históricas particulares lhes ensinaram. Também surge abertura para aqueles ricos que se engajam na libertação dos oprimidos, por exigência evangélica (cf. CEET,nP 80 e 92).
6. Questionamento das estruturas eclesiais: As estruturas administrativas da igreja, com suas leis próprias de sobrevivência, autoridade e atendimento, tomam-se estreitas demais para a vivência comunitária, agora aberta para ampla participação do povo. Agentes de pastoral, por exemplo, liberam-se para atividades extraparoquiais. As próprias atividades de atendimento são colocadas em segundo plano diante da necessidade de reunião, grupos de reflexão, encaminhamento de reivindicações, etc. As formas de autoridade e hierarquia são relativizadas, sobretudo pelo reconhecimento da autonomia do povo da condução de suas lutas. Portanto, as instituições humanas, embora necessárias (KTISIS – l Pé 2.13s), são condicionadas à prioridade de amar os irmãos (ADELPHOTES – v. 17).
[estrutura instituição autoridade a casa…]
III – Questionamento de uma igreja institucionalizada (IECLB)
De um modo geral, a IECLB não fez a opção em favor dos pobres. Os pronunciamentos da presidência ainda permanecem distantes da realidade e não denunciam as verdadeiras estruturas de poder que esmagam o índio ou o agricultor expulso por barragens que beneficiam a grande industria. A prioridade reforma agrária entrou pela porta dos fundos e não conseguiu ficar dentro da casa. O culto aos posicionamentos confessionais luteranos do passado exige mais tempo e dinheiro que o engajamento ao lado das comunidades. A opção tornar-se-á cada vez mais difícil, à medida em que se concretizam as metas governamentais de esvaziar a população do Sul do país, dispersando-a em vastas regiões amazônicas.
Com a implantação de uma indústria e agricultura de tecnologia avançada, no Sul, as massas trabalhadoras volantes não poderão mais ser alcançadas pelas formas de trabalho tradicional, de modo que a igreja perderá -como já está perdendo — o povo que por tradição lhe pertencia (o colono), tornando-se cada vez mais uma igreja de classe média e alta. Ainda mais que, na atual forma de trabalho, a paróquia nem sequer está conseguindo incomodar os ricos. Por exemplo, membros de uma comunidade metropolitana do Sul realizam um luxuoso safári no Mato Grosso com todas as mordomias de praxe, sem que isso lhes cause conflitos de fé ou de participação nas atividades de sua igreja. Por idêntico motivo estrutural, não é possível haver operários ou professores de salários mínimo em cargos diretivos de uma paróquia, já que o estilo de reuniões etc. lhes impõe constantes humilhações. Tampouco surgem novas formas de vivência (pobreza evangélica) entre leigos, ou de ministério. A proposta de um grupo de pastores que optou por uma pastoral de convivência com o povo oprimido e marginalizado, não obteve nenhuma reação escrita por parte de membros da igreja ou pastores. Realmente, é mais cômodo varrer a sujeira debaixo do tapete e esquecê-la …
Por outro lado, há sinais de esperança; por exemplo: um grande número de pregações mais coerentes com o contexto brasileiro ou movimentos de solidariedade com pastores ou até grupos que estão sofrendo pressões de poderosos. Isso nos confirma na promessa de que um dia o cativeiro terá um fim, e isso nos impede de cair numa fé saudosista, introvertida ou alienada, mas nos envia para construirmos a vida e a paz (cf. Jr 29).
IV – Anúncio de libertação dentro da comunidade
Ao contrário de interpretações correntes, que entendem l Pe 2.15ss ou como dirigida a indivíduos ou como exortação concernente apenas à obediência civil (a partir do v. 13), julgamos corre to enfatizar a dimensão comunitária desse trecho. Uma vez por causa do contexto (nação santa, povo escolhido de propriedade de Deus — v.9) e outra vez por causa da compreensão teológica dessa EKKLESIA, – igreja – que, como seguidora de Jesus de Nazaré, também recebeu o poder, a unção do Espírito Santo para a mesma missão de seu Senhor (Lc 4.18ss). Assim, a vontade de Deus é praticar o bem comunitariamente, é levar a mensagem libertadora, em grupo, aos pobres, cativos e cegos. Isto requer que a comunidade aprenda a criar formas de ação coletiva e se exercite constantemente nelas, na prática do bem — dirigida não a si mesma, mas aos que são diferentes (num paralelo com Rm 12.20s, aos inimigos!). Supreendente nessa formulação da vontade de Deus é que, assim, os insensatos, os tolos, os que rejeitam a pedra angular (v.7), o mundo que adora o lucro, serão envergonhados e terão que se calar. Portanto, à comunidade cabe uma função sacerdotal de pressão transformadora neste mundo, com a participação viva e eficaz de todos os seus membros.
Tal serviço acontece, porém, não por ser em causa própria, mas porque a comunidade é propriedade de Deus, a quem teme acima de todas as coisas (v. 17). Nessa escravidão a Deus está fundamentada, dialeticamente, a liberdade cristã em Cristo (v. 16). Ê uma Uberdade política, porque coloca as autoridades civis no seu devido lugar e função, a saber, atribuir-lhes o castigo dos malfeitores (v. 14). Mas não é uma Uberdade diante da política, que pudesse ser desprezada. Ali está o abuso da liberdade a que l Pedro se refere, porque permitiria novamente que a maldade coletiva entre na igreja sob a aparência da independência. O maior perigo, portanto, das organizações e instituições que se criam para servir, é que elas, pelas suas próprias estruturas, já não o façam, e sim cometam injustiças e marginalizem os pobres, apesar de, pela retórica, ainda terem a finalidade libertadora. Assim, a igreja precisa se submeter a rupturas constantes (ecclesia semper reformanda – Lutero), justamente para não perder seu caráter de liberdade no serviço perante as ordens do mundo.
V — Esquema de prédica
1. Jesus Libertador, Senhor da comunidade libertadora, que para tal, precisa renovação interna;
2. dialética entre praticar o mal e praticar o bem em relação às estruturas da sociedade e formas de ação eclesial;
3. balanço da ação libertadora da comunidade (e da igreja), e consequências atuais (cf. II/1 até 6);
4. leitura complementar: Salmo 68.4 -12,19s.
VI – Bibliografia
– BARTH, G. A Primeira Epístola de Pedro. São Leopoldo, 1967.
– CONGRESSO INTERNACIONAL ECUMÊNICO DE TEOLOGIA (CIET). Documento final. In: Serviço de Informação Pastoral. Ano 4. Caderno 18. (Juiz de Fora) 1980.
– CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS. Por uma Igreja Solidária com os Pobres. In: Cadernos do CEDI. No 4. Rio de Janeiro. 1980.
– FITZMYER, J. A. The First Epistle of Peter. In: Jerome Bíblical Commentary. Bangalore, 1972.
– JETTER, W. Gemeinde. In: Religion und Theologie (VI x 12 Hauptbegriffe). Stuttgart, 1976.
– Os estudos bíblicos de um lavrador. In: Suplemento do CEI. No 25. Rio de Janeiro, 1979.
– WANGEN, R. Meditação sobre l Pedro 2.13-17. In: Proclamar Libertação. Vol. l. São Leopoldo, 1976.