Prédica: Êxodo 33.18-23
Autor: Meinrad Piske
Data Litúrgica: 2º Domingo após Epifania
Data da Pregação:06/01/1981
Proclamar Libertação – Volume: VI
Tema: Epifania
I – O contexto
O contexto maior em que se insere o texto Ex 33.18-23 são os capítulos 32 a 34. O tema das tábuas da lei quebradas e a história do bezerro de ouro (cap. 32) e as novas tábuas da lei lavradas por Moisés (cap. 34) servem de elo unificador do complexo todo. O capítulo intercalado entre estas duas histórias desenvolve o tema da saída do monte Sinai, com a questão aberta sobre a presença de Deus entre o seu povo.
Quatro trechos distintos compõem o cap. 33 e desenvolvem o tema comum da presença de Deus entre o povo. Sair do monte Sinai significa um acontecimento importante na história, pois até agora a presença de Deus estava assegurada, e surge a pergunta de como será no futuro. Por este motivo a questão da presença de Deus entre o seu povo é o tema comum destes quatro trechos que provavelmente foram compilados e unificados mais tarde. Sua inclusão entre a história do bezerro de ouro e as novas tábuas da lei tem sua origem na afirmação divina em 32.34: conduze o povo para onde te disse.
O primeiro trecho – 33.1-6 – descreve a ordem de Deus de abandonar o Sinai e caminhar para a terra que mana leite e mel, e contém a ameaça de que Deus não irá mais com o povo: eu não subirei no meio de ti, porque és povo de dura cerviz (v.3). Diante desta notícia o povo começa a prantear e, em sinal de arrependimento real e permanente, decide se desfazer de todos os seus enfeites: os filhos de Israel tiraram de si os seus atavios (v.6).
O segundo trecho – 33.7-11 – descreve a tenda da congregação, a tenda que Moisés armava longe do arraial e para onde se dirigia para falar com Deus, ou melhor: onde Deus se manifestava a ele. Esta tenda da congregação não é entendida como o lugar onde Deus habita, mas como o lugar onde Deus se manifesta a Moisés. Este trecho quer afirmar e lembrar que enquanto o povo estava no monte Sinai os israelitas tinham – por intermédio de Moisés — assegurada a presença de Deus em seu meio. Agora, diante da ameaça de que Deus os manda saírem do monte Sinai, temem não poder mais contar com a presença de Deus.
O terceiro trecho – 33.12-17 – descreve o pedido de Moisés a Deus no sentido de que Deus lhe dê um sinal ou uma garantia de sua presença entre o povo, bem como uma clara definição sobre o caminho que deverá ser trilhado. Subentende-se que o lugar onde Deus habita é o monte Sinai e agora, com a partida deste monte, o povo não mais poderá contar com Deus. Deus promete a Moisés que estará com ele, pois: achaste graça aos meus olhos (v. 17).
Após estes três diferentes trechos – que relatam a determinação de Deus de não ir com o seu povo, a descrição da tenda da congregação e a promessa divina, diante do pedido de Moisés, de que estará presente entre o seu povo — temos diante de nós mais um pedido de Moisés, um pedido que aprofunda a questão da presença de Deus entre o seu povo (w. 18a 23).
II – O texto
Este quarto trecho que compõe o cap. 33 de Êxodo provavelmente é um apêndice acrescentado mais tarde. Há indícios de que diversas camadas o compõem. A resposta de Deus ao pedido de Moisés contém três introduções diferentes — w. 19,20 e 21 — a palavra glória só aparece mais uma vez no v.22. Isto dá margem à interpretação de que originalmente o texto consistia apenas da pergunta de Moisés (v. 18) e de uma resposta de Deus (v.21-23). Neste caso os w.19 e 20 foram intercalados mais tarde.
Em todos os casos, no texto como o temos diante de nós, temos de analisar a pergunta-pedido de Moisés (v. 18), a resposta sobre a misericórdia (v. 19), a resposta que contém a afirmação sobre a impossibilidade de ver a face de Deus (v.20) e o atendimento do pedido (v.21-23).
V.18 -Então ele disse: Rogo-te que me mostres a tua glória.
De maneira abrupta surge este pedido de Moisés. Moisés quer ver a glória de Deus e isto significa que ele quer ver a totalidade de Deus. Existem outras expressões que têm o mesmo conteúdo: o nome de Deus (não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão…, Ex 20.7), a face de Deus (buscam a face do Deus de Israel, SI 24.6), a presença de Deus (buscarei, Senhor, a tua presença, SI 27.8), a palavra de Deus (enviou-lhes a sua palavra e os sarou, SI 107.20), o anjo do Senhor (do céu lhe bradou o anjo do Senhor, Gn 22.11), a sabedoria de Deus (Jó 28). Todas estas expressões podem ser entendidas como sendo sinônimos de Deus mesmo. Isto quer dizer então que o nome, a face, a presença, a palavra, o anjo e a sabedoria, bem como a glória de Deus, são idênticos a Deus mesmo. Nós conhecemos no Novo Testamento a expressão do Verbo de Deus que é idêntico a Deus. Desta forma o pedido de Moisés vai no sentido de querer ver Deus.
V. 19 — Respondeu-lhe: Farei passar toda a minha bondade diante de ti, e te proclamarei o nome do Senhor; terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem eu me compadecer.
O acento deste versículo está no fato de Deus dizer a Moisés que ele tem a soberana liberdade de manifestar-se a quem bem quiser, sem estar preso a cerimônias ou ritos ou a preces a ele dirigidas. A manifestação da bondade de Deus – da proclamação de seu nome e de sua misericórdia -independe do homem e depende tão-somente de Deus mesmo. Constata-se assim a liberdade de Deus de manifestar-se a quem ele quer. Terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia atesta esta soberana liberdade de Deus. Isto tem como consequência: Deus pode manifestar-se ao homem, ao homem a quem ele escolher.
V.20 — E acrescentou: Não me poderás ver a face, porquanto homem nenhum verá a minha face, e viverá.
Tudo indica que mais tarde, depois de formulados os vv. 21 a 23 um autor incluiu este versículo com a constatação de que nenhum homem pode ver a face de Deus, preparando assim o entendimento daquilo que é dito nos versículos seguintes. A situação básica do homem diante de Deus é esta: ninguém pode aguentar a presença de Deus em sua vida. Em outras palavras: aquele que vê Deus, necessariamente tem de morrer. Este é um pensamento muito velho e bastante difundido no Antigo Testamento: a santidade de Deus não permite a presença do homem pecador e não santo.
Lembremos o relato de Gn 2, quando Adão diz a Deus: 'Tive medo e me escondi (Gn 2.10), ou então a cena da vocação de Isaías que exclama: Ai de num. Estou perdido, porque sou homem de lábios impuros e habito no meio de um povo de lábios impuros. (Is 6.5) Importante é guardar esta lição: homem nenhum pode ver a face de Deus, do contrário estaria morto.
V.21-23 — Disse mais o Senhor: Eis aqui um lugar junto a mim; e tu estarás sobre a penha. Quando passar a minha glória, eu te porei numa fenda de penha, e com a mão te cobrirei, até que eu tenha passado. Depois, em tirando eu a mão, tu me verás pelas costas; mas a minha face não se verá.
Agora Deus atende ao pedido de Moisés, acrescentando, porém, um grande MAS. Deus aponta uma rocha sobre a qual Moisés estará, e Deus mesmo porá Moisés numa fenda — escondendo-o — e cobrirá o seu rosto para que ele não possa ver a sua glória. Deus atende ao pedido de Moisés e ao mesmo tempo o protege, pois deveria morrer — em consonância com o v.20 — se conseguisse ver a face de Deus. Só depois que Deus passar, Moisés poderá vê-lo; e isto, pelas costas. Significa isto que Moisés saberá da presença de Deus, Moisés verá Deus, mas apenas de costas, para que não possa olhar a face de Deus. Desta forma Deus atende ao pedido formulado por Moisés, mas não atende assim como Moisés o entendera; Deus atende à sua maneira. E esta maneira de atender revela a bondade de Deus para com Moisés e ao mesmo tempo a sua soberana liberdade de manifestar-se a quem e como ele quer.
Este trecho lembra em muito a visão de Elias, relatada em l Rs 19, especialmente w. 11 e 12: Eis que passava o Senhor; e um grande e forte vento fendia os montes e despedaçava as penhas diante dele, porém, o Senhor não estava no vento; depois do vento um terremoto, mas o Senhor não estava no terremoto; depois do terremoto um fogo, mas o Senhor não estava no fogo; e depois do fogo um cicio tranquilo e suave.
Nem Moisés deveria ver Deus face a face e nem Elias pôde ver Deus; podiam apenas sentir sua presença, ou vê-lo pelas costas. Isto quer dizer: Deus só é visível ao Homem em seu agir – em seu passar – quando tudo já aconteceu, quando a manifestação de sua glória já passou. Só posteriormente o homem pode dizer que viu Deus ou pode constatar que Deus agiu em determinado lugar e tempo.
III — A caminho da prédica
A prédica sobre este texto deve considerar a época do ano eclesiástico, a época da Epifania. O tema, tanto pelo contexto quanto pelo texto propriamente dito, enfoca a manifestação de Deus, e por este motivo deve ter sido escolhido para este segundo domingo após a Epifania. Deus se revela ou Deus se manifesta de diferentes maneiras aos homens. Ex 33.18-23 é um relato da manifestação de Deus e contém ensinamentos válidos para toda a cristandade.
A nossa situação específica, dentro da qual meditamos sobre o texto e na qual pregamos sobre este texto, deve ser refletida. Entendo que o ponto de partida pode ser a ordem de Deus, no contexto: Sobe para uma terra que mana leite e mel (Ex 33.3). Em seguida deve ser vista a afirmação de Deus de que irá com o povo, para depois entrar-se na questão da impossibilidade de ver-se Deus face a face, para explicar que Deus só pode ser notado naquilo que já aconteceu, ou seja, pelas costas.
1. A ordem de marcha e sua meta: a terra que mana leite e mel.
Deus mesmo dá a ordem de mover-se. O povo deve caminhar em direção à terra que ele prometera aos pais, a terra que mana leite e mel. Para se alcançar esta meta é necessário atravessar o deserto com suas fadigas. Mas a meta estará sempre diante dos que estão caminhando: a terra prometida. Não é só o povo de Israel na caminhada pelo deserto que olha para a frente, para o alvo de suas vidas; somos também nós. Entendemos a nossa vida sob o prisma da fé cristã, como o movimento para a frente, procurando a cidade que há de vir. pois não temos aqui cidade permanente (Hb 13.14).
Mas não só a partir da fé cristã nós vivemos na esperança do futuro bom e justo que há de vir com o reino de Deus. Também em nosso derredor — tanto no espaço quanto no tempo — alimentam-se esperanças de dias melhores para a humanidade, para o povo. Nós aguardamos o dia em que o reino de Deus se torna realidade. Sabemos que todas as ideologias fazem promessas relativas a um futuro melhor, mas geralmente este futuro melhor e mais justo está sendo reservado apenas para os nossos netos e bisnetos. Ideólogos estão sempre dispostos a sacrificar gerações em favor de um novo mundo sonhado, o mundo bom e justo que se realiza apenas no futuro. Mas nós estamos em marcha, estamos caminhando para a frente, em direção à manifestação do reino de Deus.
2. Deus está conosco na caminhada.
A pedido de Moisés, Deus prometera acompanhar o seu povo na caminhada pelo deserto. O povo não estaria sozinho e desamparado, estaria acompanhado por Deus mesmo. Não haverá apenas o sofrimento com a fome e a sede, com a doença e a morte. E não haverá apenas a esperança de uma terra prometida que mana leite e mel que deverá consolar os fracos e moribundos, que deverá dar novo alento aos que se cansaram e começam a desesperar. Não apenas o consolo de um além muito bonito e distante vai dar forças e alento aos que estão em marcha. Deus mesmo estará presente. Deus mesmo estará com eles. Não estará apenas na meta, no alvo que é a terra prometida, mas estará com eles também no caminho. Deus é ao mesmo tempo o alvo e o caminho. Enquanto estamos a caminho, a Palavra de Deus, o Batismo e a Santa Ceia estão conosco nos dizendo e afirmando: eu estou convosco, eu sou a vossa bússola, sou o vosso consolo e a vossa força. Isto é muito importante: saber-se amparado e guiado por Deus, saber-se consolado e fortificado com a sua presença, mesmo ainda em caminho, mesmo ainda não tendo alcançado a meta e o alvo estabelecidos. Desta forma a própria caminhada já é graça divina, pois acontece com a presença de Deus.
3. Na caminhada não podemos ver Deus face a face.
Moisés pediu a Deus que este lhe permitisse ver a sua glória. Queria ter certeza, queria convencer-se que Deus mesmo, o mesmo Deus da libertação do Egito, o mesmo Deus da aliança no Sinai estava com ele. Queria ver a glória de Deus, a totalidade de Deus. Queria saber como era Deus mesmo. E desta certeza sobre Deus e acerca de Deus lhe nasceriam as respostas às perguntas que tinha consigo. Mas Deus não lhe permite isto. Homem nenhum pode ver Deus. É questão de crer ou não crer. Andamos por fé e não pelo que vemos vale também aqui. No momento em que o homem vê Deus de frente não há mais necessidade de fé e de confiança. Todas as dúvidas estarão dirimidas. Tudo estará claro e não haverá mais conflitos sobre a vontade de Deus. No momento em que vemos Deus não precisamos crer mais, não precisamos lutar mais, não necessitamos caminhar adiante, pois o alvo e meta da fé já estará conquistado. Por enquanto nós — durante a caminhada — vemos Deus tão-somente por intermédio de sua Palavra e dos sacramentos. Neles a presença de Deus nos é dada. Mas isto só enxerga quem tem os olhos da fé.
4. Só descobrimos que Deus agiu na história, quando esta ação já é passado.
É impressionante que Deus permite a Moisés — atendendo parcialmente ao seu pedido — vê-lo pelas costas. Não é dado ao homem prever a ação de Deus num futuro perto ou distante e não é dado ao homem reconhecer de imediato quando e onde Deus está agindo neste momento. Só mais tarde, só depois que Deus já agiu nós podemos descobrir as pegadas de Deus na história com os homens. Ninguém se arrogue o direito de dizer onde e quando Deus está agindo, e ninguém julgue saber quando e onde Deus irá agir no futuro. Nós só o saberemos depois que tudo passou. Só depois podemos descobrir que Deus agiu desta e daquela maneira. Só então podemos analisar o que Deus fez com determinado povo, na história de determinada nação, na vida de certa pessoa, na caminhada da igreja. Por isso é tão importante para nós refletirmos sobre a história de Deus com o seu povo.
IV – Bibliografia
HOFFMANN, G. Meditação sobre Ex 33.18-23. In: Deutsches Pfarrerblatt. Ano 68. Caderno 21. Kassel, 1968.
– NOTH, M. Das zweite Buch Mose. In: Das Alte Testament Deutsch. Vol. 5. Göttingen, 1961. –
-WEBER, O. Grundlagen der Dogmatik. Neukirchen, 1964.
Proclamar Libertação 6
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia