Prédica: Isaías 6.1-13
Autor: Milton Schwantes
Data Litúrgica: Domingo da Trindade
Data da Pregação:14/06/1981
Proclamar Libertação – Volume: VI
1No ano da morte do rei Uzias vi o Senhor sentado num trono alto e elevado. E sua bainha enche o templo. 2Serafins estão parados acima dele, cada um com seis asas. Com duas cobrem seu rosto. Com duas cobrem seus pés (= sexo). Com duas voam. 3 E um gritava para o outro e dizia:
Santo, santo, santo — Senhor Zebaote, a plenitude de toda terra é sua glória.
4E estremeceram os pinos das bases por causa da voz do que grita. E a casa(= o templo) se enche de fumaça. 5E eu disse:
Ai de mim!
Eis que tenho que silenciar! Eis que sou um homem com lábios impuros! E moro em meio a um povo de lábios impuros!
Pois ao rei, o Senhor Zabaote. viram meus olhos!
6E voou para num um dos serafins, em sua mão uma pedra em brasa, que com uma espevitadeira tirara de cima do altar. 7E fez tocar minha boca e disse:
Veja! Isto tocou em teus lábios.
E se afasta tua culpa e teu pecado está perdoado.
8 E ouvi a voz do Senhor dizendo:
A quem envio? E quem vai por nós? E eu disse:
Eis-me! Envia-me!
9E ele disse:
Vai e dize a este povo: Ouvi constantemente,
mas não entendais! Vede continuamente,
mas não compreendais!
10 Enche de gordura o coração
deste povo! Seus ouvidos faze pesados!
Seus olhos fecha (cola)! Para que não olhe com seus olhos!
Com seus ouvidos não ouça! Seu coração não entenda!
E, em consequência, se converta e se cure.
11E eu disse:
Até quando, Senhor?
E ele disse:
Até que estejam desertas: as cidades sem morador, as casas sem pessoas, e a roça está se desolando em deserto.
1 2 E Javé mandará para longe as pessoas
e se tornará grande o abandono em meio à terra.
13Mas se nela ainda permanecer uma décima parte, será destruída novamente como o terebinto e o carvalho que ao serem derrubados deixam brotos.
Semente santa é seu broto!
I
Este texto é exuberante! É uma perícope por demais rica para ser absorvida numa só prédica. A esta afirmação cheguei, ao meditar e estudar esta passagem; mas ela também se me impôs quando, nas últimas semanas, elaborei uma prédica e quando num grupo tratamos de meditar este texto. Ele sempre se mostrou por demais compacto para poder ser devidamente enfocado numa só atividade. Aliás, quando a gente observa seu aproveitamento na série de perícopes verifica-se o mesmo: sua aplicação ao Domingo da Trindade insiste num só detalhe, i.e., no v.3 (santo, santo, santo – Senhor Zebaote …); sua delimitação varia: para uns a perícope só abrange vv. 1-8, para outros inclui vv.1-10, para mais outros engloba vv.1-13. Isto mostra que é muito difícil abarcar numa só atividade as múltiplas e magníficas facetas desse texto.
Em consequência proponho que se faça dele o texto-guia para o trabalho pastoral de toda uma semana: pregação, estudo bíblico, programa de rádio, aulas, etc., enfocando em cada oportunidade um determinado aspecto da unidade. A seguir, em todo caso, tratarei de condicionar minha exposição a esta proposta:
II
No que tange à forma, Is 6 apresenta uma alternância mui interessante entre relato e fala (cf. acima a disposição gráfica do texto). No início predo¬mina o relato (cf. vv.1-2). No fim sobressai a fala (cf.vv.9-13). Com esta coincide outra observação: o texto inicia como visão, mas mais e mais passa para a audição. Seu ápice está na audição, no fim. Estas observações formais dão à nossa passagem uma clara tendência para a pregação.
Com relativa facilidade se percebe três partes na perícope. Vv.1-5 estão voltados à visão; talvez até se possa dizer: ao espetáculo da visão. Neles contrasta a excepcionalidade do espetáculo visionário(vv.1-4) com a pequenez do profeta (v.5). Vv.6-8 estão centrados no envio. A cena da purificação do profeta (vv.6-7) prepara o comissionamento (v.8). Vv.9-13 – quase a metade do texto! — se ocupam com a tarefa profética. Estas três partes formam um todo que apenas em seu final (vv.9-13) chega a seu auge. Por isso não se deveria querer interromper a perícope no v.8, como muitas vezes ocorre.
Is 6 não é um texto único! Encontra-se na tradição de muitas passa¬gens semelhantes que narram visões e vocações. Tanto no AT (Ex 3.1ss; Jr 1.4ss; Ez 1-3; etc.) quanto no NT (Gl l.l0ss; At 9.1ss; etc.) encontramos textos semelhantes ao nosso. Em I Rs 22.19ss inclusive deparamos com um texto de estrutura idêntica à de Is 6. Especialmente significativo é que ambos sejam visões da corte divina, i.e., os dois profetas (Isaías e Micaías) vêem o Senhor rodeado de sua corte celeste. Portanto, Isaías formula nosso texto dentro de uma linguagem tradicional. Essa observação é importante para a prédica, pois ajuda a evitar a idealização de Isaías como um personagem único e isolado.
A situação em meio à qual este texto foi vivido e anotado ainda tranparece bastante bem através de suas palavras. A visão ocorreu no ano da mm te do rei Uzias. Este provavelmente foi o ano 736 a.C. Na época, o reino de Judá(Sul) vivia uma situação de relativa estabilidade. Os exércitos assírios que poucos anos depois aterrorizaram a Síria e a Palestina ainda estavam distantes. Além da data podemos descobrir através de indicações do texto em que lugar u deu a visão: no final do v. l o profeta certamente se refere à sala central do templo; no v.4 cita as bases do pórtico do santuário; no v.6 se re¬fere a um utensílio sacerdotal. Estas indicações apontam para o interior do templo de Jerusalém como local da visão! É bem possível que a visão tenha ocorrido por ocasião de um culto no templo. Na oportunidade, Isaías talvez í «tivesse apresentando oferendas no interior do santuário.
Ainda podemos observar que uma situação bem específica fez com que Isaías anotasse sua visão. Esta foi a da Guerra Siro-Efraimita de 734/3 a.C. Is 6 encabeça o livro(Is 6.1-9.7) sobre a atuação de Isaías nessa guerra! (Cf. maiores detalhes em Proclamar Libertação V, p. 295s.) Neste livro somos informados de que o profeta tentara influenciar e corrigir a corte real de Jerusalém e de que isso fora inútil. Em consequência Isaías passou a expli¬citai o fim desta corte. O anúncio de fim e destruição é a mensagem específica deste livro. Também nossa perícope culmina nessa mensagem (vv.9-13)!
III
Diversas observações indicaram o final de nosso texto (vv.9-13), a tarefa profética, como seu momento culminante. Proponho fazer deste o assunto da pregação.
O aniquilamento é o conteúdo da missão de Isaías. Não há de ser por acaso que já o v.1 começa de modo sombrio: no ano da morte … Já essa data contém um mau presságio. Os vv.9-13 desenvolvem e especificam o processo de morte que a palavra profética desencadeará. Trata-se de uma assustadora cadeia de funestos pormenores, em meio aos quais Isaías chega a Intervir com um grito de espanto e pavor: até quando, Senhor? (v. 11) E não é por menos! Pois a palavra de Isaías provocará justamente o inverso daquilo que esperaríamos de um anúncio profético: ele não abrirá mas fechará t compreensão e o conhecimento (v.9), o coração, os ouvidos e os olhos (v. 10). Ao invés de provocar a conversão, impossibilita-la-á junto a este povo (v. l 0 final). A radicalidade dessa função da palavra profética é impressionante! E, no entanto, ela ainda é mais arrasadora nos vv.11-13; a destruição abarcará também as cidades e a roça (v. 11). O v.1 2 parece falar até de um despovoamento de todo mundo. O aniquilamento, em todo caso, será total;não deixará nenhuma sobra (v.13). Portanto, Is 6 inicia sob o ternário da morte (v.l) e conclui com o extermínio total (v.13)! Esta morte parte de um núcleo e vai atingindo grupos sempre maiores: o núcleo central reside na morte do rei e no aniquilamento deste povo; a partir desse foco passam a ser atingidos círculos sempre maiores: as cidades e a roça (v.1 1), a humanidade (v.l 2) e, por fim, a destruição é total. Uma vez verificado que a destruição tem um de seus focos iniciais naquele povo, mencionado nos vv.9s, torna-se importante saber quem é este povo. Percebe-se com facilidade que o profeta utiliza a palavra povo num sentido bem específico em Is 6-9: é fácil de perceber que em 7.2,17; 8.1 Is; 6.9s povo é o clã ou o grupo da corte real! Efetivamente fora o clã da corte que por primeiro se negara a dar ouvidos a Isaías (cf. 7.3ss, l0ss). A desobediência deste grupo arrastará consigo o restante da população (v.11), sim envolverá até mesmo a humanidade (v.12).
A gente não deveria fugir da realidade deste texto, afirmando que em Jesus só vale o amor. Ora, a última frase da perícope indubitavelmente se refere ao amor divino: semente santa é seu broto, i.é., aqui se fala — em tom neotestamentário — no novo início em meio à morte. Por conseguinte não é possível desfazer este nosso texto, debitando a radicalidade destruidora da palavra profética na conta ultrapassada do AT. Ela justamente vale – tanto em sua dimensão de destruição (v. 1-1 3) quanto em sua esperança de reinicio em meio à morte (v.13 final) – com novo vigor a partir da morte e ressurreição de Jesus.
Na prédica que elaborei a partir de Is 6 iniciei apresentando os vários acentos da perícope e esclarecendo que estaria me atendo a seu momento mais central, à questão do fim. Num segundo passo tratei de apresentar cenas em que, em nossa vida, vamos percebendo o cheiro do fim. Numa delas discuti uma avenida que havia sido asfaltada aqui na área industrial de São Leopoldo: enquanto aos caminhões e carros era facilitado o progresso, para os operários e pedestres não há nem mesmo uma calçada para fugir deste progresso. No terceiro passo procurei colocar estas cenas e estes exemplos dentro da tradição cristã de falar do fim: livros apocalípticos da Bíblia, parte final do segundo artigo do Credo. O mundo vai para o fim! Mas, ao mesmo tempo, contrapus a esta caminhada para o fim o agir preservador de nosso Deus. O Senhor mantém o mundo! No quarto passo tentei diferenciar entre o fim total que Deus provocará nos últimos tempos e aquele que já agora vai acontecendo. O fim último será abrangente e total. E enquanto Deus ainda preserva o universo, se opõe aos que judiam e oprimem as pessoas. Assim Is 6 provoca a comunidade de Jesus para a esperança pelo fim atual da exploração e orienta para o fim final.
IV
Mas, nossa perícope não se compõe só da tarefa profética (vv. 9-13). Distingo no restante da unidade dois momentos que conduzem a atenção do leitor para aquele acento principal. Refiro-me à visão (vv. 1-5) e ao envio (vv.6-8). Estes dois aspectos poderiam ser aprofundados em grupos de estudo. Pois nestes versículos encontram-se muitas figuras que dificultam a leitura e que necessitariam de explicações detalhadas e, além disso, falam de vocação e envio com que dão muita chance ao compartilhar de experiências.
Na visão dos vv.1-5 ocorre como que uma transformação de templo e culto. Ora, sabemos que a arca da aliança era tida no AT, por vezes, como tro¬no de Deus. Sabemos que seres como serafins pousavam sobre a arca e que tais seres ornamentavam as paredes do templo. Sabemos que o cântico dos serafins (v.3) era também um refrão litúrgico do culto (Sl 99,3,5,9). Sabemos que algumas oferendas eram feitas dentro do templo, de sorte que nele havia fumaça (v.4). Sabemos também que a espevitadeira (v.6) pertencia ao instrumentário sacerdotal. Pode-se, pois, dizer que a visão de Isaías é um tipo de transfiguração; coisas e acontecimentos do templo tornam-se transparentes em uma dimensão bem nova. Contudo, devemos cuidar para não fazer dessas figuras, difíceis de entender, a questão central dos vv.1-5. Pois seu alvo está no v. 5: a visão espetacular fez com que Isaías descobrisse sua situação de pequenez e perdição em meio a sua gente. A visão integra-o conscientemente no pecado de seu povo.
Os vv. 6-8 simbolizam a transformação: aquele profeta de lábios impuro» (v.5) torna-se mensageiro de Deus (v.8). Só a ação purificadora executada por um serafim torna Isaías apto a ser mensageiro. Este ato purificador do vv.6-7 chegou a ser designado de ato sacramental (H.Wildberger). A disposição ao envio é precedida por este ato sacramental. É muito importante que não se desconsidere o valor destes vv.6-7, pois neles é criada a condição pura a existência profética de Isaías. Se isolarmos o v.8 dos vv.6-7, tende¬mos a fazer de Isaías um herói. E, na verdade,sua prontidão em se pôr à disposição nada mais é que a dimensão verbal da ação sacramental dos vv.6-7.
Por fim, tento resumir Is 6: diante da visão do Senhor.e de sua corte celeste (vv. l-4) Isaias descobre sua pequenez (v.5) e em sequência à ação purificadora de Deus (vv.6-7) se dispõe a ser mensageiro (v.8) de um aniquilamento deveras abrangente (vv.9-13).
Bibliografia:
– CRABTREE, A. R. A Profecia de Isaías. Vol. 1. Rio de Janeiro, l967.
– VON LOEWENCLAU, I. Meditação sobre Is 6.1-13. In: Göttinger Predigtmeditationen. Ano 65. Caderno 5. Göttingen, 1976.
– ROBINSON, J, 1. El libro de Isaías. Michigan, 1978.
– SCHWANTES, M. Isaías 6-9. São Leopoldo, 1979 (polígrafo).
– WILDBERGER, H. Jesaja. In: Biblischer Kommentar Altes Testament. Vol. 10/1 Neukirchen-Vluyn. 1969.