Prédica: João 16.16, 20-23a
Autor: Gerd Uwe Kliewer
Data Litúrgica: Domingo Jubilate
Data da Pregação: 10/05/1981
Proclamar Libertação – Volume VI
l – Dores de parto?
Enquanto escrevo isto — numa ensolarada tarde de abril de 1980 — em Teerã e em Bogotá há reféns na embaixada esperando a liberdade, e uns 10.000 asilados políticos na embaixada do Peru em Havana aguardam uma possibilidade de sair de Cuba. Os conflitos armados em El Salvador continuam fazendo vítimas. O novo regime na Nicarágua enfrenta dificuldades de manter em andamento a economia do país. A greve dos metalúrgicos em São Paulo está morrendo; os grevistas não conseguiram as reivindicações. A taxa de inflação passou de 80% ao ano; imperturbável o superministro Delfim Neto declarou que não haverá recessão e que ele espera concluir o ano com uma taxa inflacionária de 50%. Assim consta no jornal de hoje. Os Estados Unidos cogitam ações militares contra o Irã. À União Soviética emprega bombas de gás contra as guerrilhas no Afeganistão. Dores de parto? Nesta mesma hora, dez mil mulheres estão em dores de parto, igual número de crianças nasce, pelo mundo afora. Em maternidades modernas algumas, em pobreza e miséria as outras. Nesta mesma hora, crianças abandonadas, trancadas, esperam as mães que voltam do trabalho, neste nosso Brasil. São milhares, milhões? Nesta mesma hora, mães choram os seus filhos, suas filhas, envolvidas, perdidas na violência das grandes cidades. Nesta mesma hora, mães grã-finas deixam os seus filhos aos cuidados de empregadas para irem participar de chás na sociedade. Dores de parto? E o quê nascerá delas?
II – Situando o texto
A nossa perícope faz parte dos 5 capítulos do Evangelho de João (13 a 17), que contêm os discursos nos quais Jesus transmite o seu legado, os seus ensinamentos aos discípulos. Na véspera da paixão e morte, Jesus fala ao círculo restrito dos discípulos, admoesta-os, consola-os, ora por eles. Os discípulos estão confusos, angustiados, não entendem.
Nessa situação, após ter anunciado o consolador, Jesus adverte: Um pouco e não mais me vereis; outra vez um pouco, e ver-me-eis.(v. 16) Esta advertência aumenta ainda a perplexidade dos discípulos. Que vem a ser este um pouco e outra vez um pouco? Assim indagam. Por que este seu Senhor, o poderoso, recebido triunfalmente em Jerusalém, o realizador de milagres, senhor sobre a morte, não seria mais visto? Antes de formularem as indagações, Jesus lhes dá a resposta: em breve, sofrereis, chorareis e vos lamentareis, mas o mundo se alegrará. Mas a vossa tristeza se transformará em alegria, uma alegria que permanece, que ninguém pode tirar de vós. E Jesus exemplifica a situação dos discípulos, neste período de tribulação, apontando a mulher em dores de parto: quanta dor, quanta angústia ela sofre. Não parece haver sentido em tanto sofrimento. Mas quando a criança nasceu, quando a mãe a sente no colo e ouve os seus primeiros gritos, ela vê o sentido da dor, e a alegria de ter dado à luz um novo ser humano apaga, supera, cobre a lembrança do sofrimento.
A quê Jesus se refere? Entendo que o primeiro um pouco, o primeiro espaço de tempo aponta para a paixão e morte de Jesus. Os discípulos ficarão desconcertados, sofrerão ao ver como o seu glorioso Senhor é julgado, açoitado, pregado na cruz; e com a morte ele desaparecerá, deixando-os desolados. O mundo, porém — e neste caso os fariseus são os representantes, por excelência, deste mundo — se alegrará por ter eliminado o perigo que Jesus representa. Mas em vão, pois Jesus, depois de outra vez um pouco, isto é, no terceiro dia depois da crucificação, ressuscita dos mortos. Os discípulos o vêem outra vez e a alegria volta para eles. Jesus lhes dá o Espírito Santo que os leva para toda a verdade. O que Jesus pretende é consolar, fortificar os seus discípulos, dar-lhes ânimo para aguentar os dias difíceis que vêm aí, adverti-los que a sua morte não é o fim da sua glória, mas que esta reaparecerá com maior esplendor. Aqui devemos dar uma olhada à imagem de Jesus que o evangelista João pinta. É o Jesus filho de Deus, glorioso, miraculoso, que inicia a sua atividade pública com a purificação do templo. O Jesus que é o caminho, a verdade, a vida, identificado com o Deus Pai, a luz do mundo, o salvador. Está presente em corpo humano nesta terra entre os discípulos, mas na verdade pouco tem de humano. É Deus, revelação de Deus, poderoso e onisciente. Os discípulos nem precisam formular a sua pergunta, ele já responde. Parece que o evangelista – em comparação com os sinóticos – eliminou muito os traços humanos de Jesus no relato da paixão. (Compare, p. ex., a descrição dos acontecimentos em Getsêmani nos sinóticos e em João.) Condenação, crucificação e morte não mais se apresentam como sofrimento humano extremo, mas com o desenrolar do plano divino de salvação. Está consumado, concluído, exclama Jesus no fim. A tarefa que exigia a presença corporal e carnal do Filho de Deus nesta terra está feita: ele tomou-se o salvador do mundo.
Pergunto-me o que essa visão de Jesus e de sua paixão e ressurreição pode ter significado às comunidades que ouviam esta mensagem. Eram comunidades da Ásia Menor do fim do primeiro século d. C., onde, segundo a pesquisa histórica, surgiu o Evangelho de João. Essas comunidades viviam acossadas pêlos judeus, sofriam a perseguição do Império Romano. Eram considerados heréticos e perigosos pela sociedade ambiente, pois negavam-se a aceitar a ideologia oficial. Eram gente humilde, sofrida. Mas neste sofrimento, alimentam uma fé impressionante: este mundo hostil, este estado que os persegue, esta igreja (os judeus) que os acossa, não são a realidade que realmente conta. Pois sabem de uma outra realidade: a do Senhor glorioso que disse: No mundo passais por aflições; mas tende bom ânimo, eu venci o mundo. (Jo 16.33) E em outra ocasião: Meu reino não é deste mundo. (Jo 18.36) Eles sabem que a realidade que, em última instância, vale é aquela representada pelo Filho de Deus, Jesus Cristo, que mostrou o seu poder nesta terra e de cuja presença entre aqueles que nele crêem, testemunham os que experimentaram o seu poder salvífico após a ressurreição. E é esta realidade representada por Jesus Cristo, presente na comunidade dos crentes através de seu Espírito, que realmente conta. O mundo presente com seus poderosos, perseguidores, com o seu escárnio e a sua soberbia, ainda se considera forte, acha que tem futuro. Mas já é do passado, já está ultrapassado, a sua realidade já* foi superada na morte e ressurreição do filho de Deus. A transformação da realidade já aconteceu. Só que o mundo ainda não o percebeu. Os crentes, a comunidades dos seguidores, sabem desse fato, vivem nessa nova realidade. E a partir dessa nova realidade o sofrimento, as dores — as que os discípulos de Jesus sentiram durante a paixão e as que os crentes agora sofrem – aparecem sob uma nova luz. Receberam um sentido: são prenúncio da alegria que ninguém pode tirar (v.22). Quando a parturiente segura a criancinha nos braços, todo o sofrimento do parto de repente tem sentido, a ponto de perder sua realidade, de ser esquecido (v.21). Assim também a realidade do Senhor ressuscitado dá sentido à tribulação, ao medo, à insegurança que os discípulos passaram. De repente está tudo claro, tudo lógico: não há mais dúvidas, nem perguntas: Naquele dia nada me perguntareis, (v. 23)
III – Já ou ainda não?
A comunidade de João já vivia ( ou acreditava que vivia) nesta nova realidade? Analisando a mensagem de João me parece que sim. O eu venci o mundo, no original grego, está no perfeito, indica coisa concluída. Com razão os cristãos começaram a contar o seu tempo a partir de Cristo. Com ele a nova realidade estava instituída; aqui, neste mundo, o seu poder salvífico se manifesta (Jo 3.16s). Agora, quem crê no Filho de Deus está dentro dessa realidade salvífica; quem não crê, já está julgado, está fora (Jo 3.18). Depois de Cristo, só há pós-história; completa-se o reino inaugurado com a vitória de Jesus na cruz. O grão de trigo morreu na terra, para agora crescer e dar fruto (Jo 12.24). A resposta do homem ao seu sofrimento existencial não é mais de rebelar-se contra o destino, de lutar contra os opressores, de perguntar e duvidar, de procurar pela justiça de Deus. Não, a sua resposta é o sim àquela realidade presente no Senhor poderoso que paradoxalmente morreu na cruz para instituir o seu reino. É viver essa realidade, às vezes, contra todas as aparências. Atitude de louco, de esquizofrênico? Fuga à realidade? Fuga à verdade? Mas que é a verdade? (Jo 18.38). O poder do Império Romano, da sociedade escravocrata, o realismo e o cálculo político representado por Pilatos são a verdade? Ou aquele mísero judeu, sujeito a açoites e torturas, que diz ser rei, é a verdade?
Para as comunidades de João não havia dúvida. O rei, o senhor não era o imperador em Roma, que perseguia, matava, explorava. Era aquele fanático da Galiléia, que, torturado até à morte, construiu seu reino. Nele eles lançavam a sua fé, e esta fé lhes dava força. Força de aguentar o sofrimento, força de suportar a perseguição e exploração. Força de aceitar a morte, também já vencida pela nova realidade (Jo 11.25s). Dava-lhes persistência na tribulação, paciência nas contrariedades, na miséria. Tornava-os dóceis, amáveis, indefesos muitas vezes… Mas, com estas hostes indefesas o galileu subverteu o Império Romano.
IV – Pregar o quê?
Confesso que, ao pensar sobre o texto, sinto-me num dilema. Reconheço que a mensagem do texto pode ser uma grande ajuda e força nos múltiplos sofrimentos da existência humana. Saber que a tristeza pode ser substituída por alegria, que o sofrimento não é a última realidade, pode ser um consolo válido em caso de morte na família, em desgraças e infelicidades onde toda força humana é vã. A fé forte de que a realidade deste mundo é secundária, inferior .àquela que vive dentro de mim, pode dar-me a serenidade necessária para persistir nas peripécias desta vida. Pode tornar-se imune contra as tentações que a sociedade de consumo desenvolveu e resistente contra as imposições que a sociedade repressiva engendrou.
Mas posso pregar aos operários mal pagos, às mães cujos filhos morrem de inanição, aos negros mortos pela polícia na África do Sul, aos colonos que lutam por terra na Fazenda Sarandi ou em outro lugar, que o seu sofrimento são dores de parto, mas que a criança já está aí e virá à luz após mais algumas contrações, isto é, após mais algumas gerações sacrificadas ao capitalismo e à iniquidade? Ou, pior ainda, posso pregar que essa realidade de miséria que a maioria dos brasileiros vive não é a realidade verdadeira, não é a realidade última, mas que Cristo preparou para eles uma realidade nova, uma alegria que os fará esquecer o sofrimento? Que a panela vazia, que a mulher doente, que o filho raquítico não pesam tanto quando a gente tem Cristo no coração? Sei que há muitos que pregam isso, e eles têm muito êxito. Mas não estão oferecendo um consolo barato? Para aquele que tem a barriga cheia é muito fácil dizer que essa barriga não é a realidade última, mas quem tem a barriga vazia? Quem tem os filhos famintos? Não deveria ele dar a primeira prioridade a encher essa barriga?
Em outras palavras, tenho medo de que essa nova realidade surgida da fé seja usada como ópio do povo para acalmar os explorados, abafar os protestos, adaptar as pessoas às estruturas injustas. Parece-me mais adequado pregar que o mundo ainda está em processo, crer num reino que ainda está para vir, ter uma esperança futura. Tenho perguntas, quero questionar, quero influir no destino da humanidade, quero ajudar a salvar este mundo, quero promover o processo histórico. Mas, se entendo bem o nosso texto, no tempo em que vivemos, o essencial já aconteceu. Cristo já desapareceu, ao ser crucificado e morto, e voltou, na ressurreição. Tenho o testemunho dos que o viram após a volta. A salvação está presente em Jesus. Devo agarrá-lo na fé, como Tomé, exclamando: Senhor meu e Deus meu!
O leitor decida: ou prega uma esperança futura, o reino de Deus que está para vir, ou a salvação presente. Ou ambas.