Prédica: João 2.13-22
Autor: Ulrich Schoenborn
Data Litúrgica: 10º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 23/08/1981
Proclamar Libertação – Volume VI
l – Jesus – reconciliador de todos?
Há textos bíblicos que incomodam e causam inquietude pois provocam um posicionamento, uma opção. Sem dúvida, a narrativa que relata a purificação do templo em Jo 2.13ss (cf. Mc 11.15-17; Mt 21.12-17; Lc 19.45s.), é uma dessas perícopes explosivas. O Jesus deste texto pode dificilmente ser encaixado em padrões atuais.
No mundo burguês, o nome de Jesus automaticamente é ligado ao ser bondoso, alambicado, louro e deslumbrante (Cobo, p.598). É o chamado Cristo tercerista: reconciliador de todos, para quien no hay vencedores ni vencidos, solo hay una gran família fraternal por encima de todos los conflitos sociales (Assmann, p.191). Nada há nele de inquietante ou conflituoso. A mentalidade burguesa utiliza a crença em Cristo como fator de decoração e aperfeiçoamento. Afirma-se que uma fábrica de cosméticos, no Rio de Janeiro, colocou a imagem do Cristo do Corcovado na etiqueta de um produto desodorante para aumentar a venda. É lógico que com este espírito só se pode compreender o texto em pauta de maneira simbólica e descomprometedora.
Mas também os seguidores da não-violência absoluta têm dificuldades de relacionar-se com esta perícope. Jesus não anula sua mensagem de paz, ao fazer um chicote e expulsar os comerciantes do templo com agressividade e violência? Como entender aquelas palavras que abertamente condenam a utilização de armas e violência (p.ex., no Sermão da Montanha)? Se o texto, todavia, entra em cogitação, Jesus parece equipado com competência excepcional. Ele se torna meio divino.
O Jesus de Jo 2.13ss atrai naturalmente todos aqueles que levam a sério o compromisso da fé e querem vivenciar o evangelho. Na comunidade de Solentiname (Nicarágua), nossa perícope foi interpretada como chamado para transformação e luta contra a confusão de religião e dinheiro. Devemos reconhecer que a conjuntura intolerável em muitos países latino-americanos criou uma situação da qual brotou uma nova visão cristológica. Não é mais o Cristo adocicado, e sim um Cristo desagradável, sujo e incómodo que se levanta em protesto e denúncia. Aqui se expressa a convicção de que Jesus foi tão homem que até luta e violência entraram em ação na sua solidariedade para com os homens. Somos confrontados com o Cristo padecente, escandalosamente idêntico aos povos oprimidos e esmagados e que lutam contra o sistema pecaminoso, assim concretizando o discipulado. Una característica fundamental del Cristo invocado desde la izquierda suele ser su caráter pascual, de promesa de vida. . . En este sentido es interesante notar el contenido pascual de metáforas cristológicas aplicadas a luchadores revolucionários que han muerto en la lucha. . . incluso en metáforas directamente sacrificiales. (Assmann, p.192) Seja citado como exemplo desta nova visão cristológica o canto de Daniel Viglietti:
Donde cayó Camilo
nació una cruz,
pero no de madera
sino de luz.
Lo mataron cuando iba
por su fusil.
Camilo Torres muere
para vivir.
Cuentan que iras la balla
se oyó una voz:
Era Dios que gritaba
'Revolucion!'
A revisar las satonas
mi general,
que en la guerrilla cabe
un sacristán!
Lo clavaron con balas
en una cruz,
lo llamaran bandido
como a Jesús.
Y cuando ellos bajaron
porsu fusil,
descubrieron que el pueblo
tiene cien mil.
Cien mil Camilo Torres
prontos a combatir!
Camilo Torres muere
para vivir.
Não há dúvida que o cristianismo acomodado vê nisso escândalo e subversão, pois considera Jesus um património do status quo. Quer reprimir o Jesus desagradável e lhe dar as costas. Mas Jesus prevê estas tentativas e aparece em toda parte perguntando: E vós, quem dizeis que eu sou? (Mt 16.15 par.)
II – Desafio através da história
O Evangelho de João é considerado por muitos cristãos o evangelho de amor, fraternidade e reconciliação. Porém, esta caracterização esquece totalmente o teor exclusivo e conflituoso que existe desde o início. Temos, p.ex. as palavras de EGÕ EIMI/ eu sou (6.35; 8.12; 10.11,14; 11.25; 14.6; 15.1,5) que desmascaram os falsos líderes. Lemos sobre a alternativa entre fé e mundo (1.9ss) ou sobre o comportamento celeste e terrestre (3.31ss; 8.42ss), que se excluem mutuamente. De modo algum este evangelho apresenta um quadro agradável e intimista. Pelo contrário.
Da pesquisa crítica sabemos que por trás do evangelho, tal como existe hoje, devemos pressupor uma continuidade muito dedicada e radical nas suas convicções teológicas. A base escrita deste grupo narrava os sinais e os discursos de Jesus de Nazaré como manifestação do seu senhorio. Era destacada a presença da salvação por meio da f é e a relevância exclusiva da palavra. Conseqüentemente, não se pensava em sacramentos ou instituição eclesiástica. Também não havia preocupação com a historicidade de Jesus. Ele era sempre o exaltado, a saber, o de onde ele veio era idêntico com o para onde ele virá, de maneira que o exaltado tinha aparentemente suplantado o crucificado. Na vivência de sua fé, o grupo adotava estruturas e metáforas gnósticas para descrever e explicar o fundamento de sua fé. Achavam menos importante uma justificação de sua fé perante o mundo.
Exatamente aqui surgiram mal-entendidos e brigas teológicas na comunidade. O trágico é que a teologia da base escrita motivou uma compreensão docética e distorcida de Cristo. No entanto, o conflito levou a uma re-leitura do evangelho e a uma apropriação da tradição. A saber, desafios atuais forçaram o rever das questões negligenciadas ou abertas. Este foi o trabalho do evangelista. Ele, de modo algum, quis aproximar a base escrita à ortodoxa, mas sim, iniciou um processo no qual a tradição foi segurada através de uma nova contextualização.
No caso de J o 2.13ss tentaremos evidenciar o tratamento que a tradição recebeu por parte do evangelista.
1. A narrativa é composta de duas partes. Ao itinerário (v.13) segue-w a intervenção de Jesus no templo (v.14s.), da qual nasce uma palavra interpretadora (v. 16), a saber, uma alusão a Zc 14.21. No fim da primeira parte, surge uma reação dos discípulos, até aqui não mencionados (v.17). A segunda parte relata a disputa com os dirigentes judeus, em forma de pergunta e resposta (v. 18 + 20 e 19). Eles, porém, não alcançam o significado da palavra (v.20). Os discípulos, no entanto, depois da Páscoa, se lembram e o entendem (v. 21 s).
2. O texto representa o estado final de um desenvolvimento muito movimentado, como se percebe na comparação com os sinóticos. Eles colocam a purificação do templo no fim da atuação de Jesus. Depois de ter entrado na capital, a colisão com as autoridades torna-se inevitável. O episódio no templo serve, dentro da composição dos sinóticos, como evento motivador para a sentença mortal. João, no entanto, localiza a purificação no início da atuação de Jesus. É um sinal significativo que determina o seguinte: temos aqui a primeira prova da composição intencional do conflito que, aliás, se destaca por seu relato detalhado e ilustrativo.
O v. 13, que indica o itinerário, abre a narração. Jesus está subindo para a Páscoa. Várias vezes o evangelista faz uso de festas para estruturar as viagens de Jesus (cf. 2.13,23; 11.55; 12.1; 6.4). E sempre há discussões agudas com os judeus. Esta expressão é peculiar e implica um distanciamento. As festas são cerimônias deles. Nunca é dito que Jesus ou os discípulos participaram ativamente nelas. Esta distinção dificilmente permite conclusões concretas. Os judeus permanecem como um grupo abstraio e pálido. Representam a massa, inclusive os seus líderes, bem como o mundo intransigente e hostil, que rejeita o Cristo. Encontramos aqui o estilo e a auto-estima da comunidade joanina que sofreu a expulsão por parte da sinagoga, e não perde oportunidade de expressar suas experiências em alusões ou tendências retrospectivas.
3. Com R. Bultmann (p.85), J. Becker (p. 123), E. Haenchen (p.102) c outros, consideramos 2.14-16 uma tradição antiga e independente dos sinóticos. O quadro cénico, culminando numa palavra de Jesus, é típico do apoftegma biográfico. Detalhadamente é descrita a atuação de Jesus (v.14s). O chicote de cordas só é mencionado em João. Na exposição da cena encontram-se algumas incoerências (resultado da narração popular?): nos vv.14 e 15 diverge a sequência dos animais e pessoas envolvidas (v.14: bois, ovelhas, pombas, cambistas; v.15: ovelhas, bois, cambistas, pombas); depois, Jesus dirige a palavra (v.16) somente aos vendedores das pombas; mas sua crítica alcança todos os comerciantes, sem exceção.
A ideia do templo cria no historiador uma aporia. Ele constata incoerências entre o motivo da ação de Jesus e a execução da mesma, no lugar e nas circunstâncias em que acontece. Afirma-se que Jesus entrou sozinho no átrio dos gentios, o qual cercava o templo propriamente dito. Tratava-se de um pátio de mais ou menos 80.000 m2 no qual se realizava tudo que estava ligado à práxis cultual. Nesta área os romeiros podiam comprar os animais e outros materiais para os holocaustos. A venda era organizada pelas autoridades do templo. A moeda romana era proibida, por razões cultuais. Isto explica a presença dos cambistas que administravam o câmbio, segundo Ex 30.13ss. Esse distrito sagrado era, portanto, um grande matadouro e, ao mesmo tempo, uma espécie de banco central. Interesses económicos do pessoal e da aristocracia do templo desempenhavam, logicamente, um forte papel. A população urbana inteira de Jerusalém usufruía vantagens financeiras do prestígio religioso que o templo gozava no mundo judaico. Seria tempo perdido ficarmos perguntando por que Jesus agiu sozinho contra os negociantes, sem os discípulos (e isto, num pátio daquele tamanho), ou suspeitando de medidas e efeitos, ou especulando sobre a passividade dos romanos que, como se sabe, supervisionavam de perto o movimento no distrito sagrado. Com tais perguntas preocupam-se os curiosos, mas não o evangelista (nem a tradição). As palavras de Jesus – Tirai tudo isto daqui; não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio! — são inequívocas e apontam para a intenção da tradição: ele questiona a ordem religiosa, colocando em xeque a ordem material. Atua como atuaram os profetas (até João Batista), que conclamaram a uma conversão autêntica. Com seu procedimento não pretende, de modo algum, abolir o culto, mas reivindicar sua santificação. O que causa sua revolta é a discrepância entre ortodoxia e ortopraxis, na vida diária. Em última instância, esta tradição pretende a reforma do culto no templo e está ligada à esperança pela renovação do culto, muito difundida no Judaísmo (cf. Ez 40 – 48: Ag 2.9; Zc 14.8;Hen Et 90.28-38;Jub 1.17, 27, 29).
A intervenção de Jesus deve ser localizada no contexto da oposição geral contra o templo, muito comum entre a população rural. (cf. Theissen, p.144ss) O que motivou as camadas rurais à sua crítica acirrada contra as práticas religiosas na capital foi o respeito profundo pela tradição religiosa e pelo templo. Consideravam as atividades religiosas na cidade uma traição e corrupção da fé verdadeira. Na época das festas, grandes multidões enchiam a cidade, aumentavam a atividade dos comerciantes e causavam perturbação da ordem pública. Conforme relatos de Josefo, explodiam nessas ocasiões as tensões latentes e a hostilidade aberta entre os grupos antagônicos da cidade e do campo. Jesus, na sua crítica, identifica-se com esse pessoal rural e com seus motivos. Podemos afirmar, sem margem de erro, que este episódio foi relatado por causa de suas consequências fatais. O que aconteceu naquele átrio dos gentios virou dinamite e passou a ter implicações políticas, além da mera compreensão simbológica dos fatos. A purificação do templo transformou Jesus numa pessoa marcada e conhecida na região. O povo, oposicionista, deve ter aprovado a ação de Jesus, pois expulsou os comerciantes e cambistas, cúmplices dos romanos, e com isso desmascarou as autoridades religiosas como hipócritas e colaboradoras na sua espoliação. Esse ato de Jesus foi a causa histórica de sua popularidade e evocou esperanças messiânicas. Temos razões amplas para localizá-lo (historicamente) no início da ati¬vidade pública de Jesus. Assim, João estaria sendo fiel à história. Também o é, ao aludir à antipatia e à suspeita mortal que a instituição alimentava contra Jesus, desde o início. A colocação do episódio fora do relato da paixão não significa uma despolitização da narrativa. Pelo contrário. São óbvias, no procedimento de Jesus, certas semelhanças com os atos revolucionários dos zelotes. Pois quem ataca o templo, mexe com a política e promove a queda do sistema todo.
Os sinóticos incluem ainda uma reflexão erudita sobre a questão (Is 56.7 e Jr 7.11). Rejeitam radicalmente o culto no templo (a saber, a religião civil) e formulam novos pontos de vista (Mc 11.17: o templo é para todos os povos; Mt 21.16: Deus se manifesta através da boca dos pequeninos) A verdadeira posição do evangelista João frente ao culto aparece em 4.20,24.
O v. 17 dá continuidade ao apotegma. E isto, com certa dificuldade, pois aparecem os discípulos e é retomado o termo casa (aplicado ao templo), dentro de uma citação vetero-testamentária. Trata-se do Sl 69 (LXX), que fala do justo sofredor. No desenvolvimento da cristologia, esse salmo tem sido utilizado para explicar o sentido da paixão (cf. Mc 15.36; Mt 27. 34,48; Lc 23.36; Jo 15.25; 19.29; Rm 15.3). Através do verbo introdutó¬rio recordaram-se, todo o versículo se apresenta como dito pós-pascal. Tudo é escrito em termos de uma retrospectiva que busca vestígios e pistas da paixão. A forma verbal devorará (cf. Sl 69.10 LXX com Sl 69.10 BH) o evidencia. Das Wesen dessen, der sich soeben in verstecktem Messiasanspruch als Sohn bezeichnet hat, wird durch den Eifer Gottes bestimmt, und darum wird dieser Eifer ihn auch in den Tod treiben. (E. Käsemann)
4. Lendo-se o v.17 dessa maneira, fica claro que a narrativa de 2.14-16 lem sua continuação nos vv. 18ss, apesar de que, na tradição sinótica, a per¬gunta pela legitimação de Jesus (cf. Mc 11.27ss par; Mc 8.11; Mt 12.28; Lc 11.16) não esteja vinculada aos eventos posteriores à sua entrada em Jerusalém. Quanto ao género dos vv. 18ss, fala-se de um diálogo polêmico. Os judeus exigem um sinal que legitime a ousadia de Jesus. Trata-se de uma constante questão de controvérsia. A descrença exige uma manifestação para poder crer. Jesus replica, no v. 19, com um imperativo irônico (Bultmann, p.88): Destruí este templo, e em três dias o levantarei. Formalmente, esta resposta cumpre a exigência da pergunta. Mas os adversários não a aceitam. É uma palavra paradoxal e enigmática. Jesus rejeita o sinal e aponta para a crise escatológica que há de vir. O próprio juízo é o sinal. Quando esse juízo chegar, será tarde demais para se decidir. Mais ainda, na sua própria pessoa está presente o juízo, desafiando para uma opção que decide sobre a vida e a morte. É interessante observar que os adversários não entendem a resposta, pois referem-se apenas à segunda parte dela, como mostra o v.20. Conseguem pensar apenas em categorias imanentes. O mal-entendido representa, na base escrita do evangelista, uma figura típica no processo de desenvolvimento do evangelho (cf. 3.3s,10s; 4.10ss,32s; 6.32ss; 7.34ss; 8.21ss; 11.1 Is; 14.4s,7ss,22ss; 16.17s). O mundo, respectivamente, os judeus não podem entender e, conseqüentemente, têm que entender erroneamente a palavra de Jesus, porque não o aceitaram.
Não precisamos decidir aqui se os vv. 18ss representam um comentário da base escrita a uma tradição oral (2.14-16) ou se já se encontravam na tradição, quando a base escrita foi compilada. De qualquer forma, segue-se a interpretação da palavra enigmática por parte do evangelista (w.21s). A chave hermenêutica é a experiência da Páscoa (v.22a), que explica a tradição. Primeiro é dito (cristologicamente) que a palavra se refere ao próprio corpo de Jesus (v.21). Ele mesmo é o templo. Sua intenção não fora falar do santuário nacional nem da reforma do culto. Em vez disso, ultrapassou o quadro tradicional. Deus não se manifesta mais no templo, mas quer ser, a partir de agora, encontrado unicamente na pessoa de Jesus. Temos aí nada menos que a abolição do culto judaico. Percebe-se nesta retrospectiva um forte acento cristológico e eclesiológico. Acontece que a palavra (v.19) aponta para a cruz. João nunca abandona o horizonte da paixão. Nos relatos sinóticos esta palavra serve como causa da acusação (cf. Mc 14.58 par; Mt 26.61; Mc 15.29 par; Mt 27.40 e até At 6.14). João, por sua vez, salienta que a cruz já começa no início da história de Jesus e marca, a partir de lá, o seu caminho. Por isso, intercala o v.17 nu antiga tradição e prepara, desta maneira, teologicamente, o v.22.
Na concepção do evangelista, os discípulos que seguiram o Jesus histórico são idênticos ao grupo pós-pascal que chegou à fé verdadeira. Só eles estão em condições de atingir a compreensão do Jesus histórico. O evento escatológico se evidencia agora mesmo, no relacionamento com este Jesus. Antes da Páscoa os discípulos se lembraram; depois da Páscoa eles se recordaram de novo. Esta montagem mostra que o evangelista não identifica a-historicamente situações diferentes. Acontece que ele pressu¬põe, como mediador, o Paráclito que proporciona a memória verdadeira (cf. 12.16; 14.26; 15.26; 16.7ss). A composição fica ainda mais clara se compararmos os trechos que apresentam os discípulos como fiéis verdadeiros (cf. 2.11; 6.69; 11.15; 13.1ss; 15.lss; 17.6-10), com o mal-entendido que até eles sofrem, frente à atuação de Jesus (cf. 4.32ss; 14.5,8; 16.17s,30). Devido à atuação do Paráclito, podem crer na Escritura e na palavra de Jesus.
5. O lugar vivência! desta memória foi a comunidade ou escola que preservou, divulgou e atualizou a tradição acerca de Jesus. Foi aí que o evangelista chegou a conhecer a narrativa sobre a purificação do templo. E foi aí que ele também vivenciou as disputas teológicas e sofreu os mal-entendidos por parte dos gnósticos. Então, reescreveu o evangelho. No nosso caso, criou a moldura dos vv.13 + 23ss e levou a narrativa de 2.14-16,18-20 a uma nova compreensão. Em momento algum correu o perigo de amenizar ou simbolizar. Pelo contrário. A cena da discussão concretiza o conflito profundo entre Jesus e o mundo/os judeus. Por isso, a perícope foi colocada no início da vida de Jesus.
Esta é a intenção do evangelista: caracterizar a situação do enviado de Deus, expondo-o à ignorância, ao confronto, à rejeição por parte do mundo. Neste sentido, 2.13ss é formulado em contraste com 2.1-11. Em Cana, Jesus opera um sinal e encontra fé em alguns (2.11; cf. 1.11-13). No templo não pode surgir fé, e Jesus nem chega a fazer um sinal. Fé e descrença se defrontam; esta em Jerusalém, aquela na Galiléia. Nossa perícope tem a mesma função que desempenham em Mc as narrativas a respeito da lei e do sábado (Mc 2.1-3.6; J. Roloff). Elas fundamentam a rejeição absoluta de Jesus e sua sentença de morte.
A base da fé, apresentada pelo evangelista, é, desde o início, um escândalo. Com isso, ele exige uma opção. Quem quer invocar o Jesus exaltado deve aceitar o crucificado. A memória não cultiva qualquer sentimentalismo ou lembrança agradável, mas implica necessariamente conflito. É uma memória perigosa (J.B. Metz). Sob esta premissa, a cruz está presente desde o início e — com suas peculiaridades — também João escreveu um relato da paixão com introdução detalhada, tal qual Marcos o fez (observação feita já no séc. XIX por F. Overbeck). O que está em jogo é a pessoa de Cristo que, aparentemente derrotado, se torna vencedor, transformando com isso as imagens que são montadas pelos teólogos.
(Por razões de espaço não podem ser apresentadas pesquisas sobre a imagem de Cristo na América Latina, que serão publicadas em outro lugar.)
III – De Tabor ao Gólgota
O Evangelho de João nos provoca e desafia de uma maneira especial. Ele mostra como a fé se localiza entre a história e a experiência. Não vive exclusivamente no passado, reproduzindo apenas a tradição cristã, nem se impressiona de modo absoluto pelo espírito da época, mas apropria a mensagem no seu contexto. Neste processo, a memória da história de Jesus se defronta com as distorções da realidade e convoca para o trabalho. Assim como a atuação de Jesus criou conflitos com aqueles que preferiram o status quo à liberdade, assim também nós devemos estar conscientes de que a boa nova custa caro e não é consolo barato. Neste sentido perguntamos: o que o texto exige de nós? Em termos metafóricos responderíamos: caminhar de Tabor, ou seja, da glória e do entusiasmo, para o Gólgota, ou seja, para a cruz. Que queremos expressar com isto?
Antes de responder esta questão, no entanto, é necessário reconhecermos que o texto nos comunica e proporciona uma dádiva gratuita que possibilita tudo o que segue. Lutero sempre afirmou: antes de fazer de Cristo um exemplo, como aliás todos os santos o são, é necessário aceitá-lo como sacramento! Quem chama, através de Jesus, é o próprio Deus. Nossa meta, não é buscá-lo onde não está, mas prestar atenção às suas manifestações, mesmo contra nossa própria vontade ou visão teológica. Acontece que a manifestação de Deus ocorre sub specie contraria. Assim, somos chamados à conversão do Cristo adocicado, agradável ou intimista, ao Cristo francamente desagradável, sujo, incômodo (Cobo, p. 599). No seguimento a Jesus, aprendemos a contemplar os grandes acontecimentos da história universal (se. também da história particular) a partir de baixo, da perspectiva dos marginalizados, dos suspeitos, dos pobres e oprimidos, dos ultrajados e escarnecidos: em uma palavra, da perspectiva dos que sofrem (D. Bonhoeffer). Somos chamados a ficar ao pé da cruz, sem fazer análises científicas ou iniciar ações, mas simplesmente para sermos solidários. Lá se descobre que Cristo não é o misterioso, nem o pacificador, nem o filantropo ou o Cristo tercerista. Antes de mais nada, percebe-se como é sabotado o evangelho, quando a cruz é diminuída e amenizada por aqueles que já sabem tudo.
Esta conversão implica o reconhecimento de que no Cristo sofredor quem clama e protesta é o povo sofredor. Cristo se toma irmão dos esmagados para gritar onde há silêncio, para lutar onde há cansaço conformado. Ele exige resposta, te persegue, te inquieta sempre, não te deixa emburguesa mais, agarra-te, arrebata-te (Cobo, p.599). Jo 2.13ss quer abrir os olhos daqueles que fazem negócios com a religião e mantêm, através dela, um sistema desumano. Onde a religião é misturada com negócios, Deus se retira, e as palavras bonitas sobre amor, fraternidade e paz se tomam ocas e hipócritas. João denuncia a violação do evangelho, da vontade de Deus, e dirige a atenção para o lugar da verdadeira adoração.
O cristão reconhecerá, sem discussão, que Cristo deu a sua vida em favor de nós. Mas é preciso que amplie este reconhecimento. Se no Cristo sofredor também clama o povo sofrido, podemos concluir: o povo, os pobres. . . estão dando sua vida por nós: graças ao seu trabalho explorado, chega mesmo a nos sobrar tempo para refletirmos sobre a espiritualidade (Cobo, p.600) ou outros assuntos como novo estilo de vida. Reconhecer e aceitar esta dependência exige alguma coisa da alma burguesa.
Outra exigência é a do espírito in-submisso. Está em tempo de desaprendermos costumes que foram implantados de cima para baixo. Está em tempo, por exemplo, de questionarmos leis, estruturas e instituições em vez de obedecermos cegamente; de esclarecermos os interesses que estão por trás de certos acontecimentos, em vez de pressupormos a intenção cristã do empresário. O espírito in-submisso se norteia pela verdade que é a promoção da vida e conspira contra a morte.
Num mundo que se orienta exclusivamente pelos resultados e efeitos é muito doloroso ter de contar com um fator imponderável, um fator que não pode ser programado. O evangelho mostra, no entanto, que Jesus não pode ser classificado ou etiquetado, e não cabe em fichário algum. Ê verdade que existem clichés na base da nossa religiosidade particular. Mas deformações e distorções podem ser identificadas facilmente. Já em 1932 escrevia John A. Mackay, em seu livro El otro Cristo español, que Cristo, sendo totalmente diferente, saiu da Europa para se encarnar na América Latina: . . . otro tomo su nombre y se embarco con los cruzados españoles hacia el Nuevo Mundo, un Cristo que no nació en Belén sino en Noráfrica. Este Cristo se naturalizo en las colónias Ibéricas de América, mientras el Hijo y Señor de Maria fue poco más que un estraño en essas tierras desde los tiempos de Cólon hasta el presente. E forasteiro e peregrino permaneceu até hoje. Isso não muda, ainda que o chamemos Jesus Cristo libertador, pois como libertador ele sempre nos precede e inicia uma revolução contínua, que siempre apunta hacia adelante porque se encuentra en las fronteras del futuro (H. Assmann, p. 198). Cristo continua sendo um escândalo, na medida em que as contradições não encontram uma solução justa na América Latina. Por enquanto, não há soluções claras ou definitivas. Mas impõe-se que suportemos o ser diferente de Jesus e de seu caminho. Talvez este ser diferente comece a se tornar transparente, porque o caminho de Jesus foi um processo histórico que se abre para o nosso presente como um projeto historizante, visto que suas palavras e ações ainda não se realizaram no todo da história (L. Ossa).
IV – Bibliografia
– ASSMANN, H. La atuación histórica del poder de Cristo. In: Jesus — Ni vencido ni monarca celestial. Buenos Aires, 1977.
– BECKER, J. Das Evangelium des Johannes. In: Ökumenischer Taschenbuchkommentar zum NT. Vol.4/1. Gütersloh, 1979.
– BULTMANN, R. Das Evangelium drs Johannes. In: Kritisch exegetischer Kommentar zum NT. 18. ed. Göttingen, 1964.
– COBO, S. Páscoa de uma espiritualidade a partir da experiência popular. In: Revista Eclesiástica Brasileira. Caderno 139. Petrópolis.
– GUTIERREZ, G. Os limites da teologia moderna: Um texto de Bonhoeffer. In: Concilium. Caderno 145. Petrópolis 1979.
– HAENCHEN, E. Johanneische Probleme. In: Gott und Mensch – Gesammelte Aufsätze. Tübingen, 1965.
– KÄSEMANN. E. Meditação sobre João 2.13ss. In: Göttinger Predigtmeditationen. Ano 44. Caderno 8. Göttingen, 1955.
– THEISSEN, G. Die Tempelweissagung Jesu. Prophetie im Spannungsfeld zwischen Stadt und Land. In: Theologische Zeitschrift. Caderno 3. Basel, 1976.