Prédica: Lucas 1.26-33 (34-37) 38
Autor: Rolf Dübbers
Data Litúrgica: 4º. Domingo de Advento
Data da Pregação:21/12/1980
Proclamar Libertação – Volume: VI
Tema: Advento
I – Considerações gerais sobre o texto
Servimo-nos do texto de Almeida, edição revista e atualizada no Brasil, 1969, sem deixar de considerar outras traduções. Os w.26a e 36 não foram incluídos.
O que ocorreu durante todo o tempo em que o Senhor Jesus andou entre nós, a começar pelo batismo de João até ao dia em que nos foi arrebatado (At 1.21 s), encontramos relatado nos evangelhos canonizados. Nosso texto se refere a um episódio anterior a essa época. Revela que houve notícias sobre o começo da existência terrena de Jesus. No entanto, como se depreende dos quatro evangelhos, Jesus não aludiu nas suas pregações a fatos invulgares ocorridos por ocasião do seu nascimento, para legitimar a sua missão divina. Mas é óbvio que ele, desde o início do seu ministério público até a morte, demonstrou uma consciência de si mesmo e de sua tarefa que irritaram seus ouvintes, de sorte que diziam: Não é este um filho de José? Não é ele o carpinteiro, filho de Maria, irmão de Tiago, José, Judas e Simão? Não vivem aqui entre nós todas as suas irmãs? E escandalizavam-se nele. (Lc 4.22; Mc 6.3; Mt 13.55s). Consideravam-no um ser perfeitamente humano, isto é, uma pessoa limitada como nós todos, sem maiores segredos. E não existe notícia, nos documentos que possuímos, de que Jesus tivesse refutado a convicção de seus contemporâneos, de ser ele também um homem verdadeiro. Mas, em face do comportamento de Jesus (Lc 7.48; 8.25), permanecia a pergunta – e continua até hoje: Quem é este?.
Lc 1.26ss contribui para a elucidação do mistério do carpinteiro nazareno. Existiam recordações sobre sua origem, embora não usadas por ele, nem por apóstolos seus como Pedro e Paulo. Lucas chegou ao conhecimento dessas tradições. Considerando o prólogo (Lc l.lss), com sua linguagem diferenciada, devemos concluir que Lucas deseja ser levado a sério como investigador cuidadoso. Quanto às fontes de suas informações, guardou silêncio. Mas houve (Bengel, notas referentes a Lc 1.2 e At 1.14), e há ainda hoje (Pontifício Instituto Bíblico, p. 1283) quem admita que Lc 1.26ss se baseia, direta ou indiretamente, em informações da própria Maria. Não vejo razões para duvidarmos. Pois nada nos impede de incluirmos a mãe de Jesus entre as testemunhas oculares dos fatos que entre nós se realizaram (Lc 1.2,1).
Conforme nosso texto houve na vida da mãe, mulher prometida em casamento a José, um diálogo com um anjo por ordem de Deus. A mensagem angélica em si, apesar de não harmonizar com os nossos conhecimentos biológicos, é clara: uma ação sobrenatural divina dará em Maria, noiva, sim, mas ainda mulher virgem, origem a um ser humano. Nela, na mulher e na mãe, e não num pai humano, unir-se-ão o sobrenatural e o natural, para dar existência terrena a um ser integralmente humano — descendente de Davi, seu pai, e integralmente divino – Filho do Altíssimo (v.32). Esta mensagem é teológica, não biológica! Pois o simpático e compreensível ceticismo da virgem não foi vencido por quaisquer novas explicações biológicas, mas por uma antiga convicção teológica de Israel (v.37). E a virgem, sendo lembrada das possibilidades divinas, concorda (v.38). Voltaremos a este assunto mais adiante. Mas já vamos admitindo que nosso texto não deixará de soar como uma poesia piedosa sem fundo histórico, se ignorarmos ou rejeitarmos a teologia das Letras Sagradas (2 Tm 3.15) de Israel, chamadas pela cristandade de Antigo Testamento. Duas vezes aparece no texto o nome de Davi, o segundo rei (ungido, cristo, messias) de Israel. As Letras Sagradas de Israel relatam que Davi, após ter ouvido que Deus ergueria, depois dele, um seu descendente para estabelecer-lhe o reino para sempre, confessou: Grandíssimo és, ó Javé Deus, porque não há semelhante a ti, e não há outro Deus além de ti, segundo tudo o que nós mesmos temos ouvido. Quem há como o teu povo, como Israel, gente única na terra? (2 Sm 7.22s). Somos obrigados a penetrar um pouco mais no Antigo Testamento.
II – Considerações exegéticas sobre o fundo veterotestamentário do texto
A perícope não exige do pregador duvidosas afirmações biológicas. Ela nos obriga, antes de tudo, a perguntarmos sinceramente pela nossa própria atitude em relação àquilo que foi confiado a Israel (Km 2.17ss; 3.1-2; 9.4-5). Não devemos fugir a um estudo profundo e constante dos oráculos de Deus que Israel recebeu, pois estes são o contexto indispensável ao nosso texto. Este diálogo de um anjo de Javé com uma mulher de Israel nos confronta com o papel único dos judeus na história das nações (Jo 4,22). A exegese de Lc l .26ss à luz das Letras Sagradas de Israel, amplamente lembradas na própria perícope, nos guarda do perigo de minimizar-lhe a mensagem, pois esta mensagem é um desafio divino transcendental às terríveis lutas da raça humana por conquistar e conservar tronos. No vai-vem histórico deste mundo não houve, não há e não haverá trono que não passe, até que venha aquele que tem o direito legal, e a ele é que terei de dá-lo (Ez 21.27). Este desafio é decisivo, santo e salutar: decisivo, porque o trono será dado para sempre ao descendente de Davi; santo, porque este descendente, como Filho do Altíssimo, levará a sério a realidade de Deus (cf. Lc 22.41ss); salutar, porque este Filho do Altíssimo deve ser chamado Jesus. Jesus é a forma grega do nome hebraico Josué e significa Javé salva. É, pois, edificante, a missão deste governo eterno.
Devemos distinguir entre o que Maria estranhou e o que ela não estranhou graças ao seu conhecimento das Letras Sagradas de Israel. Fazem parte destas Letras Sagradas (oráculos de Deus) (citamos alguns assuntos, com testemunhos escolhidos):
– Diálogos divinos com seres humanos, direta e indiretamente; a entrada de anjos (cf. Hb 1.14) na vida humana: cf Gn 12.1ss; Is 6.lss; Dn 8.16;etc.
– A saudação O Senhor é contigo!, dirigida a seres humanos: cf. Gn 26.3; 28.15; Js 1.9; l Sm 18.14; etc.
– O nome de Altíssimo dado ao Deus Único e Verdadeiro: cf. Sl 21 7; 77.10; 107.11; etc. O termo Altíssimo é específico da linguagem religiosa de Israel, (cf. Bauer, col. 1543), Espírito Santo, Poder e Sombra de Deus: cf. SI 51.11; Is 63.10ss; Mq 5.4; Na l.3; Sl 91.1;Is 49.2; Sl 121.5;Os 14.7; etc.
– A convicção de tudo ser possível a Deus: cf. Gn 18.14; Jr 32.17; Zc 8.6; e outros.
Belas e duras experiências com Deus: promessas e ameaças divinas dadas às casas de Jacó e de Davi; origem, responsabilidade, corrupção, ruína e futuro glorioso do trono de Davi: cf. Gn 28.10ss; 2 Sm 7.1ss – os testemunhos sobre os descendentes de Jacó e de Davi: cf. Gn caps. 37ss; 2 Sm caps. 11ss; Sl 89; Mq 4.1ss; Am 9.11; Is 7.13s; 43.1ss; l Sm 8.lss; 16.lss; 2Sm7.1ss; Is 11.lss; Jr 22.1ss; 29.16ss;etc.
Homens e mulheres que se confessaram por servos e servas de Deus: cf. l Sm 1.11ss;Sl 86.16; 116.16; 143.2;etc.
Numerosas são as referências do nosso texto à riqueza do Antigo Testamento. Não devemos subestimar os conhecimentos dos oráculos de Deus na consciência dos descendentes de Jacó e de Davi, nem em Maria. Seja qual for nossa opinião diante da historicidade minuciosa do texto – tamanho diálogo com uma simples mulher me impressiona. Devemos concluir: se ignorarmos ou até rejeitarmos as experiências religiosas de Israel, testemunhadas nos documentos do Antigo Testamento, como imaginação ou invenção desse povo, será difícil compreendermos e aceitarmos a mensagem do nosso texto como testemunho com fundo histórico!
Mas permanece ainda a outra pergunta: O que foi que Maria estranhou? A entrada do anjo não a perturbou! O que ela achou extraordinário foi o anjo dirigir-lhe tamanha saudação, a ela, mulher simples. Também não achou estranho que um descendente de Davi ocupasse definitivamente o trono vazio da antiga dinastia. Pois esta era a esperança de Israel, baseada em promessas divinas — e continua sendo ainda em nossos dias. O que Maria não entendeu foi que ela — mulher virgem – seria a mãe do descendente. O texto apresenta Maria como mulher modesta e bem natural, sem presunções e também sem uma fé extraordinária — ao ouvir a mensagem do anjo, não se pôs logo a dizer: Pois não! Aqui está, às suas ordens, a serva do Senhor, ao qual tudo é possível! A pergunta de Maria (v.34) é de uma sóbria e natural franqueza. Mas a resposta dada a ela não diz: José coabitará contigo, e o Senhor te concederá que concebas e tenhas um filho! (cf. Rt 4.13). Tal resposta não seria contrária ao costume de toda a terra (cf Gn 19.31). E nada no texto nos obriga à ideia esquisita de um voto de virgindade por parte de uma — noiva! Por outro lado também não é dito a ela: Serás conhecida por Deus! — conhecer no sentido semítico, cf. Gn 4.1, etc. A ideia das núpcias de um deus com uma filha humana, muito difundida no mundo de então (cf. já Gn 6.2), não tem base na linguagem discreta do texto. Lc 1.35 proclama a concepção no corpo ainda não tocado da noiva Maria, como ação exclusiva da presença divina. O pregador repare bem que a pergunta da noiva não foi rejeitada e nem compreendida (cf. Lc 1.20), mas respondida! E como foi respondida! O poder divino não é limitado por nada e por ninguém. Aquele que concede o milagre natural da paternidade e da maternidade (cf. Gn 4. l c), pode fecundar o seio virgíneo de uma mulher, independente do vigor masculino (cf. Gn 49.3), o qual é, aliás, também dádiva de Deus (cf. l Co 7.7).
Pode-se até sentir gratidão para com Lucas, por nos ter transmitido esta perícope. Discretamente ela desvenda um pouco o profundo mistério de Jesus a quem chamavam de filho do carpinteiro e de Maria. No centro do texto não estão nem o anjo, nem Maria, nem o nascimento virginal, mas Jesus como o ente santo que há de nascer (v.35). A perícope fala somente das casas de Jacó e de Davi. Mas o contexto veterotestamentário não deixa dúvida: a intenção divina é universal. Abrange também as nações famintas de uma autoridade competente para mudar a desolada convivência humana universal (cf. Is 2.1ss; 11.10; também Rm 15.12).
III – Considerações exegéticas à luz de contextos neotestamentários
O texto proclama o messiado do filho que será dado à luz por Maria. Outra não foi a convicção do próprio Jesus adulto. Na sua pessoa, a esperança de Israel não é somente futuro. Já é presença ( Lc 14.15ss; 17.20s). Ele não concordou com os seus adversários, quando pediram que repreendesse os seus discípulos que o proclamavam o Rei que vem em nome do Senhor (Lc 20.37ss). Mesmo quando estava prestes a morrer (Lc 22.29), e até moribundo na cruz (Lc 23.42s), a convicção de Jesus não ficou abalada. Outra não é também a mensagem pentecostal, At 2.36. Segundo o testemunho de Lucas, Jesus compreendeu, de acordo com as Letras Sagradas de Israel, a sua paixão e a sua ressurreição como obras messiânicas, necessárias para que, em seu nome, todas as nações pudessem ser chamadas à mudança de procedimento (arrependimento). Seu reinado inclui um novo conceito de governar: Qual é o maior: quem está à mesa, ou quem serve? Porventura não é quem está à mesa? Pois, no meio de vós, eu sou como quem serve (Lc 22.24ss). A constituição do reinado eterno de Jesus é a chamada a um fato consolador. Pois o Messias Jesus é imparcial, isento de qualquer malícia, e, embora sem pecado, é humilde e aceita os pecadores arrependidos. Não terroriza ninguém nem mata para conservar o seu trono. Não explora ninguém para gozar. Não humilha para se engrandecer. Serve para convencer. Não persegue para salvar o seu trono. Não teme por si. Chora e teme pela paz dos homens.
Mas este nobre Rei eterno sobre o trono de Davi é algo mais do que apenas um fato consolador. É também um fato inquietante. Pois ele quer um povo que nele confie e lhe obedeça. Unânimes são os testemunhos do Novo Testamento em afirmar que o aparecimento de Jesus na terra é a manifestação da vontade divina, preocupada com a educação salutar de todos os homens. A epístola de Judas (v.4) vê na negação prática do nosso único Soberano e Senhor Jesus Cristo pela transformação da graça de nosso Deus em libertinagem o grande perigo para a cristandade. Martinho Lutero, compreendendo muito bem que a cristandade não terá futuro feliz nem será uma bênção para o mundo, sem uma confiança obediente no Rei dos reis, suplicou: … que não nos venham ensinar a um outro mestre procurar, senão a Cristo, o Salvador, confiando nele só com todo o ardor (Hinário da IECLB, Hino 83).
Graças a Deus por existir um Trono Eterno (Tribunal) e por não ter este Poder Soberano da humanidade sido entregue a um ente cruel, indiferente e imprevisível, nem a uma lei fria, nem a um acaso ou uma necessidade quaisquer, mas a um Ente Santo, Servidor e Sacerdotal, perfeitamente a par, por experiência própria, da situação humana sobre a terra. O procedimento do Filho do Altíssimo, dado à luz pela virgem Maria, demonstra que a grande mensagem de Lc 1.26ss é uma notícia edificante e santificante, pois Aquele que está sobre o Trono Eterno jamais pronunciará uma sentença injusta, nem usará de protecionismo ou malícia alguma. O seu nome Jesus corresponde ao seu caráter e à sua conduta sem pecado.
IV — Considerações para a prédica
Não sei o que seria mais lamentável em face desta perícope: um ceticismo que rejeita as possibilidades e deliberações divinas, qualificando-as de sonhos humanos (cf. Lc 2.34s), ou um dogmatismo que aceita a perícope como narração histórica — e se esquece de levar a sério, no viver cotidiano, a autoridade edificante e santificante do Rei Jesus, a quem pertencem a glória e o domínio pelos séculos dos séculos .(cf. l Pé 4.11). Tal fé morta cf, Tg 2.26) já foi lamentada pelo Filho do Altíssimo, sendo ele ainda cidadão desta terra entre outros cidadãos (Lc 6.46ss).
Creio que a perícope nos convida também a prestar atenção à mãe de Jesus. Não pensamos em veneração da mãe, contrária à grande mensagem do texto. O essencial é aceitar o chamado à confiança obediente no Rei, a quem pertence o futuro da humanidade. Mas Maria tornou-se, e continua sendo, uma das grandes testemunhas do Altíssimo, uma testemunha humilde e confiante: Aqui está a serva do Senhor! (v.38) De quem ou de que somos nós servos ou servas? As famílias, a sociedade em geral necessitam de homens e de mulheres que gostam de viver a boa e santa servidão prestada ao Deus e Pai de Jesus. E atenção especial merece, sem dúvida, a bela e madura confissão da noiva e futura mão Maria: Não conheço varão! (v.34) Ou soa quadrada tamanha confissão, em meio à permissividade sexual da nossa época? A nosso ver, Maria foi uma mulher espiritual e fisicamente sadia.
Certo é que a perícope não nos chama a desprezar, ridicularizar ou até combater com ferro e fogo os passageiros e problemáticos tronos deste mundo. A atitude e a conduta de Jesus, consciente de sua autoridade superior para com as autoridades estabelecidas da sua época, merece um estudo profundo. Ele suportou o orgulho, a corrupção e as fraquezas das autoridades religiosas e civis, como irrepreensível cidadão exemplar. Eis a tarefa dos adeptos do Rei dos reis! Fácil não é. Mas é uma tarefa nobre e promissora, pois ao trono de Jesus pertence o futuro – o grande assunto do último livro do Novo Testamento: Ao vencedor, dar-lhe-ei sentar-se comigo no meu trono, assim como também eu venci, e me sentei com meu Pai no seu trono. (Ap 3.21)
A pregação sobre nosso texto, repleto de assuntos de valor, poderia desenvolver-se nos seguintes moldes:
Ponto de partida: a passagem no segundo artigo do Credo Apostólico, que se apóia também sobre o nosso texto. Nossa perícope oferece muitos assuntos que merecem atenção. Haverá também perguntas da parte dos ouvintes! Mas devemos fazer uma seleção. Trataremos do seguinte:
1. O que Maria esperou e o que estranhou.
2. O que o Altíssimo oferece à humanidade (a Israel e às nações) através do nascimento de Jesus.
3. O procedimento de Jesus corresponde plenamente à justeza do seu nome. Sendo assim, a mensagem do nosso texto é
a) profundamente consoladora.
b) profundamente inquietante.
V – Bibliografia
– BAUER, W. Griechisch-Deutsches Wörterbuch. 4.ed. Berlin, 1952.
– BENGEL,J. Gnomon. Berlin, 1959.
– KAMPHAUS, F. Von der Exegese zur Predigt. 2.ed. Mainz, 1968.
– PONTIFÍCIO INSTITUTO BÍBLICO. Bíblia Sagrada (Tradução dos textos originais, com notas). São Paulo, 1976.
– SCHLATTER, A. Das Evangelium des Lukas. 2.ed. Stuttgart, 1960.
Proclamar Libertação 6
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia