Prédica: Lucas 4.14-21
Autor: Harald Malschitzky
Proclamar Libertação – Volume: VI
Proclamar Libertação I – Aspecto Político
I – Considerações exegéticas
Lucas 4 contém, como nem um outro, um programa amplo da ação profética de Jesus. (Zahn p. 239) O lugar da passagem acima, dentro do todo do Evangelho de Lucas e em comparação com os outros dois sinóticos, leva a esta conclusão. Não é por acaso que a passagem acima esteja onde está: esta colocação é intencional; esta passagem indica toda uma tendência do Evangelho de Lucas. Não que Jesus tenha criado um programa próprio (ainda que apenas na intenção de Lucas): Jesus assume algo que já fora prescrito no Antigo Testamento. No hoje a promessa do Antigo Testamento chega ao seu alvo e isso, tanto nas palavras quanto na pessoa de Jesus. Ele é o ungido do Senhor (o que lembra o seu batismo) para o seu papel profético; o poder do próprio Deus o impele nesta direção, o Espírito Santo. Ou seja: as palavras iniciais de Jesus não sio uma prova de arrogância ou orgulho, mas são o sinal de seu envio pelo Pai.
Segundo Lucas o início da atividade de Jesus se dá em Nazaré, sua cidade natal, lugar onde era conhecido desde pequeno. Embora não se deva dar destaque a este detalhe, também aqui pode estar a intencionalidade de Lucas, verificada também nos Atos do Apóstolos: o próprio povo de Deus rejeita a pregação de Jesus e por isso esta é levada aos pagãos.
Também uma característica de Lucas é o fato de que Jesus se dirige à sinagoga. Todos os homens tinham lá o direito e a Uberdade de levantar e ler uma passagem do Antigo Testamento: após a devida tradução para o aramaico, aquele que tinha feito a leitura sentava-se para falar; via de regra suas palavras eram parenéticas e doutrinárias. (Rengstorf, p.69)
Jesus, levantando-se para ler e sentando-se para falar, náo estava fazendo nada fora do comum e do tradicional. Sua interpretação de Is 61 é que acaba causando espécie.
A citação de Isaías é uma combinação de Is 61.1,2b; 58.6; 29 18. (Traub, p.87)
Jesus vem evangelizar: o termo evangelho encontra-se exclusivamete no NT: designa uma realidade ainda não aparecida nos tempos da antiga aliança (Senft). Uma boa notícia, uma boa nova é anunciada, isto é, algo bem concreto e capaz de modificar o estado de coisas, está sendo anunciado como presente: hoje! Evangelizar significa o anúncio de um acontecimento mais ou menos fora do comum — se respeitarmos o uso profano do termo. No NT anuncia-se o cumprimento das promessas veterotestamentárias. E aquilo que é anunciado vai além, transcende todas as expectativas e esperanças. De repente se anuncia que o reino de Deus já está aí e que sinais visíveis estão acontecendo, antes de mais nada, em ligação estreita com a pessoa de Jesus.
Esta boa notícia tem como endereço os pobres, cegos, marginalizados, oprimidos. No NT os pobres são, literalmente, aqueles que dependem de outrem, os mendigos (Mt 19,21; Lc 14,13-21; 16,20-22). (Péry) Os pobres são contemplados com toda uma série de adjetivos tais como: oprimidos, caluniados, desprezados, sem capacidades políticas e sem tino comercial. Eles estão entregues a qualquer tipo de adversário e é esta indigência que estabelece uma relação peculiar com Deus. Não que a pobreza e a miséria sejam boas obras, não: o fato de alguém não ter em quem se escorar, a própria situação miserável é que suscita a compaixão e a condescendência de Deus. Por transferência ou analogia podem ser chamados de pobres também aqueles que – de qualquer outra forma – estejam na dependência total de Deus (doentes, pequeninos), tanto que o termo pobre, às vezes, é usado como sinônimo de manso e humilde.
Parece que se, no texto em questão, são citados tantos tipos de pobres, isso é uma maneira de sublinhar que todos eles são oprimidos e neces¬sitados e que, a todos eles, é anunciado o Evangelho.
O significado da presença de Jesus, de seu papel, é destacado e sublinhado também pela ideia do ano aceitável do Senhor (v. 19). Trata-se de uma instituição do povo de Israel, o Ano do Jubileu. Segundo Lv 25.8s, todo o 50º. ano era um ano especial, pois neste ano havia chances de um recomeço para todos. Naturalmente, dentro de uma sociedade essencialmente agrária, o Ano do Jubileu teria seus reflexos, antes de mais nada, nas questões de terra. Aquele que tinha perdido sua terra, a recebia de volta e aquele que tinha acumulado terras, era obrigado a devolvê-las. Todavia, o Ano do Jubileu extravasava e ultrapassava as questões agrárias. O novo início valia para todos, acontecia uma restituição de terra e de direitos pessoais (Kutsch). Todo o povo era abrangido pelas consequências desse ano. O ponto de partida para esse ano de perdão e anistia ampla, era o artigo de fé de que Deus, como criador, era Senhor tanto da terra quanto dos homens.
Proclamando a vinda de Jesus como o Ano de Jubileu, sem dúvidas se estará querendo dizer agora — com Jesus — não se trata apenas de reviver uma velha tradição (que, aliás, ao que se sabe jamais chegou a funcionar) mas, sim, de iniciar algo totalmente novo. Poder-se-ia dizer que Jesus inaugura não apenas um ano, mas um tempo novo, o início do Reino de Deus (v.21).
II – Meditação
Não é difícil de constatar, a partir das considerações exegéticas, que aquilo que Jesus proclama tem alcance político e social. Sua proclamação en¬volve o homem todo e não seria correto espiritualizá-la.
É muito interessante constatar que a maioria dos comentários e meditações sobre o nosso texto, embora não neguem o aspecto político, não lhe dão o devido destaque. Um dos autores, ao menos no final de sua exposição (Traub), procura animar nesta direção. Em termos gerais, porém, parece que todos estão fortemente arraigados na tradição luterana que costuma abstrair ou reduzir este aspecto da proclamação — realidade esta apontada por Marie Veit e, a nível de nossas comunidades, por Gerd Uwe Kliewer. Naturalmente o nosso texto não se restringe a essa dimensão; o seu sentido e o seu alcance ultrapassam a realidade social, o que, porém, não nos autoriza a ignorar o aspecto político.
Por outro lado, é preciso mencionar que esta mesma tradição luterana jamais se descurou totalmente do aspecto social e político do evangelho, fato este que sempre se tornou concreto nas mais diversas formas de assistência sócia. Asilos, orfanatos, creches, escolas para deficientes, aldeias SOS, hospitais, colégios, tudo isso também faz parte da tradição luterana e nesse sentido tem havido um grande empenho. A dimensão deste trabalho pode ser avaliada numa pequena observação: quando, há alguns anos, o parlamento alemão discutia um projeto para reduzir drasticamente ou até eliminar o imposto eclesiástico, bastou à igreja lembrar que daria de presente ao estado todas as suas instituições de assistência social, para que a questão morresse na casca. Seria, pois, cegueira ignorar esta realidade. Mas, certo .é também que, desta maneira, muitas vezes se pensa curar efeitos sem procurar pelas verdadeiras causas. É aquela célebre história de uma curva altamente perigosa em uma rodovia de grande movimento. Esta curva, por sua má construção, causa um sem número de vítimas quase que diariamente. Um grupo de cristãos se reúne e resolve construir um hospital bem pertinho da curva para atender os acidentados imediatamente. Se é certo que as vítimas precisam de ajuda imediata, certo é também que as causas da ocorrência de todas estas vítimas precisam ser denunciadas e eliminadas.
Hoje, os pobres e oprimidos são gerados cada vez mais por todo um sistema de valores, por toda uma conjuntura, por um jogo de interesses. E, muitas vezes, o melhor serviço que se pode prestar aos arquitetos do sistema e aos detentores do poder é zelar para que proliferem entidades de assistência social. Parece-me que também os famosos centros sociais urbanos vão nesta direção. Tenho a impressão de que aqui está uma dimensão verdadeiramente diabólica da assistência social, por mais necessário e por mais recomendada que ela seja pelo Novo Testamento, aliás, uma herança do Antigo Testamento.
A pergunta hoje muito discutida também fora dos muros da igreja é se, a partir da Bíblia, nós temos alguma coisa a ver também com esta sociedade que é geradora de pobreza e de opressão. Segundo Lc 4.14ss, é certo que sim — e não só segundo esta passagem. Um dos aspectos do evangelho é o político, pois é política a organização de uma sociedade. Toma-se necessário para a igreja conhecer sempre melhor os mecanismos que se constroem para a organização da sociedade: cabe a nós descobrir as curvas perigosas e denunciá-las, promovendo a sua retificação. Verdade é que o Reino de Deus definitivo é uma esperança, mas não se deve esquecer que, com Jesus de Nazaré, ele já começou e seus sinais precisam ser levantados pêlos cristãos, também a nível sócio-político.
Se a tradição luterana nem sempre viu este aspecto do evangelho, isso não pode ser debitado a Lutero. Lembro apenas os seus posicionamentos em relação ao governo, ao ensino e ao comércio; lembro o Catecismo Maior e a Confissão de Augsburgo.
III – Aspectos da realidade opressora
As forças e os poderes que geram pobreza, miséria e opressão costumam ser muito bem camuflados. Ainda assim, não é impossível identificá-los, ainda que toda estrutura seja tacitamente aceita como uma realidade – o que se espelha muito bem nas palavras de um dos ministros de nosso país ao declarar, sem rodeios, que o desenvolvimento social e a conjuntura nacional não são instituições de assistência social.
Alinho, a seguir, alguns exemplos para ajudar na procura de outras realidades opressoras:
a) A divisão do globo em dois grupos de países: os ricos e os pobres.
b) A criação de conglomerados, grupos e empresas cada vez mais poderosas, cujo poder e influência não mais se restringem a limites geográficos. Estão aí as faladas multinacionais que atuam principalmente nos países pobres sob o argumento de ajudarem no desenvolvimento destes, escondendo, porém, o fato de que os lucros nos países pobres costumam ser muito maiores. Tomemos um exemplo: enquanto no Brasil o salário mínimo gira em torno de Cr$4.000,00, na Alemanha ele está em Cr$50.000,00. A pergunta é automática: onde fica mais barato fabricar o Fusca?
c) O ingresso do capitalismo na agricultura, acompanhado de uma política de exportação e de monocultura, apoiado por gordas somas governamentais, o que acaba por expulsar da terra o pequeno agricultor que, ainda assim, no Brasil, está produzindo 70% dos alimentos de consumo interno!
d) A política desenvolvimentista, que coloca em primeiro lugar o capital e em último o homem.
e) As construções de barragens que servem, antes de mais nada, a outros interesses, pois em seu planejamento o homem, sobretudo o que será desapropriado, só entra em último lugar. Construções menores, que deixariam o homem na sua terra, não são cogitadas. Isso vale também para as barragens projetadas para a bacia do Uruguai. Não se trata apenas de megalomania, mas sim de um plano claro de assumir a hegemonia na América do Sul. Acordos entre o Brasil e a Argentina, Brasil e Paraguai nos dão conta disso. Todo o Sul do Brasil deverá ser transformado em novas áreas industriais, indústrias estas que deverão fornecer produtos aos demais países de Cone Sul, fundamentando, desta forma, a hegemonia brasileira. As consequências para os mo-radores destas áreas são imprevisíveis.
f) A política indigenista, que de tanto tentar resolver problemas burocráticos se esquece do índio como um ser humano.
Estas são algumas das realidades sulistas que oprimem hoje os mais fracos e criam verdadeiras legiões de pobres no mais amplo sentido. Será que a boa nova, o novo tempo, tem como endereço também estes pobres modernos?
Igrejas e, sobretudo, grupos de cristãos têm respondido afirmativamente, motivados pelo evangelho. Alinho a seguir algumas formas de evangelizar os pobres.
IV — Formas de evangelização
a) O trabalho da Pastoral da Terra junto aos que são despojados de suas terras e junto aos que são vítimas de exploração de preços ou de falcatruas de grupos inescrupulosos (p.ex., o caso das Notas Promissórias Rurais no Oeste do Paraná). A Pastoral da Terra procura animar essas pessoas a se organizarem e lutarem por seus direitos.
b) A Pastoral Operária que age de forma idêntica junto ao operariado.
c) O trabalho junto aos índios, que deixou de ser uma evangelização que visa converter o índio para o cristianismo.
d) Manifestos, declarações, cartas abertas etc. que tomam públicos os problemas e os sofrimentos dos oprimidos.
Sem dúvida, não são fórmulas mágicas e também elas, essas formas de evangelizar, precisam ser revistas constantemente a partir do evangelho. Contudo, também a Bíblia não é um livro de receitas para toda e qualquer situação. Muito pelo contrário, ela nos desafia e anima no sentido de acharmos novas formas e caminhos de evangelizar hoje os pobres, cegos, presos e oprimidos.
V – A pregação
Apenas uma prédica sobre este aspecto do evangelho sempre terá insuficiente. É preciso que aconteça uma conscientização muito maior de nossas comunidades, mormente tradicionais no pior sentido. Ainda assim, uma prédica pode ser um pequeno passo nesta caminhada. Sugiro a seguinte estrutura:
1. Informação sobre o aspecto político do texto.
2. Informação sobre uma realidade próxima que gera miséria e opressão.
3. Colocação de um ou outro modelo de evangelizar os pobres.
4. Desafio a que a comunidade continue pensando e refletindo sobre este aspecto. Se possível convidar para um grupo de trabalho e es¬tudo sobre o assunto.
VI – Bibliografia
– BUECKMANN, O. Meditação sobre Lucas 4.14-21. In: Herr tue meine Lippen suf, Vol.3.2.ed. Wuppertal-Barmen, 1957.
– KLIEWER, G. U. Uma comunidade evangélica frente aos problemas sociais e à atuação sócio-política da Igreja. In: BURGER, G., ed. Quem assume esta tarefa? São Leopoldo, 1977.
– PERY, A. Pobre. In: ALLMEN, J. J. von, ed. Vocabulário Bíblico. São Paulo, 1963.
– RENGSTORF, K. H. Das Evangelium nach Lukas. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol.3. 4.ed. Gottingen, 1969.
– SENFT, C. Evangelho. In: ALLMEN, J. J. von, ed. Vocabulário Bíblico. São Paulo 1963.
– SICK, H. Meditação sobre Lucas 4.14-21. In: Neue Calwer Predigthilfen. Vol. 1A. Stuttgart, 1978.
– TRAUB, H. Meditação sobre Lucas 4.14-21. In: Hoeren und Fragen. Vol.5. Neukirchen, 1967.
– VEIT, M. A pergunta por Deus em uma era pós-teísta. In: Estudos Teológicos. Ano 20. Caderno 1. São Leopoldo, 1980.
– VOIGT, G. Meditação sobre Lucas 4.14-21. In: -. Der schmale Weg. Göttingen, 1978.
– ZAHN, T. Das Evangelium des Lukas. In: Kommentar zum Neuen Testament. Vol.3. Leipzig, 1913.