Prédica: Marcos 12.41-44
Autor: Hans Alfred Trein
Data Litúrgica: Domingo Oculi
Data da Pregação: 22/03/1981
Proclamar Libertação – Volume VI
I – Introdução
Estamos no Domingo Oculi. Quem tem olhos para ver, veja. Cada um se acerca de uma série de chaves de interpretação, de mitos inclusive, de óculos pelos quais enxerga a realidade. É a ótica.
A ótica que cada um tem, é determinada por experiências pessoais, relacionadas à sobrevivência, à segurança, ao bem-estar; por convicção sobre princípios de organização social e económica, convicções sobre transcendência; pela posição de vida em que cada um se encontra.
A ótica que cada um está constantemente formando, serve para justificar sua maneira de vida, e — seja eliminando tensões e conflitos, seja suportando-os dialeticamente — tem por alvo chegar ao deus/Deus que toca a cada um incondicionalmente.
O evangelho propõe um diálogo e muitas vezes um confronto com a nossa ótica. O alvo é renovar nossa ótica, resultar num esperançoso engajamento na causa do reino de Deus. ótica forma fé. Justificação pela fé.
Oculi – ótica!
A seguir transcrevo o diálogo de uma possível reunião de evangelho. Os personagens são estereótipos. Seus nomes são imaginários. As diferentes intervenções seguem uma Unha de coerência em cada personagem. Numa reflexão evangélica ocorrem mudanças de opinião. O evangelho – se não for domesticado — provoca confronto com a própria vida, com a própria ótica. Isso pode resultar em mudança de posição de vida. Você pode estar faltando nessa roda.
No final, algumas sugestões e pistas para a prédica, e a indicação de textos bíblicos que deverão servir para enriquecer a meditação de cada pregador, ajudando-o a não fugir da fidelidade ao evangelho.
II – Reunião de evangelho
(Circula o chimarrão. Lemos o texto. Apesar de conhecida, a cena observada por Jesus cozinha silenciosamente.)
Sr. Reich — Será que isso é uma estória inventada ou aconteceu de fato?
Líria — Bom, eu acho que se está na Bíblia…
Ernesto — Para mim não é importante saber se aconteceu ou não aconteceu; também não acho importante só por estar na Bíblia. Pra mim é interessante, porque fala da vida. Que é que acha Arno?
Arno – Que é que eu vou dizer; eu não estudei pra saber disso (olhando para mim).
(Eu digo que pode ter acontecido realmente, como pode também ter sido uma adaptação. Em Lucas podemos encontrar a mesma cena. É quase igual…
Eu acho importante, como o Ernesto, porque fala da vida.)
Roberto — Eu não vejo nada de interessante em a igreja estar sempre falando em dinheiro. O que mais me irrita é que ficam usando passagens bíblicas para tirar dinheiro do bolso dos membros.
Everaldo – Há pouco tempo saiu esse negócio de pagar o dízimo. Não vejo nada de justo nisso. Por exemplo: Alguém que ganha Cr S 60.000,00 por mês paga seis mil cruzeiros; alguém que ganha Cr$3.000,00, por mês paga trezentos cruzeiros. Só que um continua vivendo com Cr $54.000,00 e o outro com Cr $2.700,00; e tanto um como o outro pagam o mesmo preço pelas coisas, pelas coisas.
Angela — Eu também acho que a gente não devia ficar falando de dinheiro. Tem tanta coisa mais importante na Bíblia. Ademais, eu acho que no céu não vai ter dinheiro.
(Depois de algum tempo de silêncio…)
Líria – Eu acho que a gente deveria continuar com essa história.
Sr. Reich – Pois é, eu fiz aquela pergunta no início, porque eu acho que a viúva fez uma loucura, dando tudo o que tinha. Com o que foi viver no outro dia? Não diz na Bíblia que a gente é pra cuidar da sua vida? Acho que é uma insensatez dar tudo e depois ficar pedindo esmola àqueles que trabalham…
Ernesto – O Sr. acha que faria alguma diferença para a sobrevivência da viúva, se ela ficasse com aqueles trocados miseráveis?
Líria – Ao meu ver Jesus desvaloriza a oferta dos ricos, pois ele viu que eles estavam dando da sobra. Eles não tinham a mesma fé que a viúva. Ela deu tudo o que possuía, devido à fé e total confiança que ela tinha no Senhor.
Lilian – Pra Jesus não importa quanto cada um dá. Importante é que dê de coração.
Sr. Reich – Mas não diz aí que a viúva deu de coração e os ricos não!
(Só se escuta o barulho característico do sorver o resto do chimarrão. Depois de entregar a cuia…)
Ernesto — Pra mim é interessante saber que Jesus faz essa observação. Jesus é pobre. Só um pobre poderia entender o sentido mais profundo do gesto da viúva.
Rosa — Também vejo assim; os ricos dão muito, mas do que sobra, depois de terem vivido confortavelmente. E assim continuarão. Não muda nada: confortados, com a sensação do compromisso cumprido, deram a sua contribuição, olhando de cima para baixo. Dificilmente perceberiam essa cena da viúva acontecendo ao lado deles, uma vez que como ricos vêem os pobres de uma maneira preconceituosa — são uns vagabundos! -, sem saber sequer valorizar uma atitude dessas.
Ernesto — Se a viúva tivesse retido a quantia que ofertou, a sua garantia de sobrevivência não teria se alterado substancialmente; sua sobrevivência não estaria mais garantida; por isso é compreensível que ela consiga se despojar até daquilo de que precisaria para viver. Enquanto o rico, mesmo dando muito, só dá daqui¬lo que sobra, pois naquilo que retém, aposta a garantia da sua sobrevivência com todos os requintes de conforto, detalhes e compromissos sociais que ela implica. Se ele desse tudo o que tem, provocaria a sua insegurança e desespero. Seria um louco varrido aos seus próprios olhos, pois deposita sua segu¬rança e esperança no seu dinheiro.
Arno – Ê, o ponto de vista me parece dividir opiniões: aos olhos dos pobres a viúva não foi louca; aos olhos dos ricos foi louca e blasfemou contra Deus, pois atentou contra a continuidade da própria vida. Participando… diga Ernesto…
Ernesto — Desculpe interromper, mas eu só queria completar: aos olhos dos pobres os ricos dão as sobras do muito que, de diversas formas, furtaram com sua exploração e dominação. Estes, dando as sobras, nem chegam perto do sacrifício. Aos olhos dos ricos, os ricos é que mantêm o serviço a Deus com suas dádivas. Se não fosse sua caridade, o mundo se afundaria sem religião. Por isso sentem-se também com autoridade de definir e determinar os caminhos do que chamam de fé e salvação, sempre para a conservação do status quo, é claro. Termina Arno…
Arno — Pois é, eu ia dizer que participando só de círculos de gente de bem e grupos com as mesmas vivências, mesmos objetivos, como a classe média, por exemplo, é difícil perceber outros valores, outros objetivos, outra realidade. Em outros termos: no momento em que minha escola, meu trabalho, minha diversão, meu convívio se dá só em ambientes devidamente abastecidos, não conseguirei mais perceber realmente outra situação, a não ser na superfície: passando ocasionalmente por vilas pobres, andando ocasionalmente nos coletivos, vendo notícias de jornal — página criminal. Dificilmente seremos atingidos por outras realidades nem um pouco confortáveis.
Sr. Reich — Graças a Deus, tudo que tenho consegui com meu próprio esforço e trabalho. Se vocês me dão licença…
Roberto — Pera aí! Essa não entendi, Sr. Reich. Aquilo que o Sr. possui, ou é graças a Deus ou é pelo seu próprio esforço, mas não as duas coisas ao mesmo tempo.
Sr. Reich – Vocês me dão licença, eu preciso ir para casa. Minha patroa já deve estar me esperando. Boa noite prá todos.
(Eu acompanho o Sr. Reich. Vamos até a rua, silenciosos. Seu carro está logo em frente. Longa pausa.)
Lilian – Ao meu ver, Jesus valorizou tanto a oferta da viúva, por ela não ser aceita, nem ser egoísta; por ela não se preocupar somente consigo mesma.
Líria – Na minha opinião nem sempre para Deus o mais importante é o dinheiro, mas sim dar-se a si mesma e prontificar-se para Deus, e para o próximo. Isto também pode ser: ter tempo para desesperados, ouvir, aconselhar. A viúva se deu completamente, não só o seu dinheiro.
Rosa – O rico manda fazer com dinheiro; o pobre não pode, faz mesmo. Por isso o rico está bem mais longe de se dar. O rico se cerca de compromissos não essenciais, de detalhes. A viúva, o pobre, convive mais com o que é essencial, está mais perto de dar-se.
(Eu digo que talvez essa seja a diferença entre justificação por obras – por parte dos ricos – e justificação pela fé — por parte dos pobres.)
Arno — Os ricos são capazes de ser justos de acordo com a lei; mas não conseguem ser despojados.
Líria – Mas mesmo aquilo que é impossível para os homens, é possível para Deus. É uma questão de arrepender-se.
Ernesto – Jesus quer a partilha de todos os bens. Se todos entregassem tudo o que têm, isso seria uma verdadeira revolução. Tudo podia ser distribuído de acordo com as necessidades de cada um. A humanidade seria uma grande família. A vida seria digna para todos. Os homens estariam vivendo sua imagem e semelhança a Deus. Não haveria mais ricos vivendo na luxúria e no abuso, nem pobres morrendo de fome, de doença, na míngua. Todo rico é um opressor. Também o que coloca sua riqueza a serviço não deixa de ser opressor. Sua caridade posterior não lhe tira a culpa de, dentro de um sistema que favorece a exploração capitalista, ter enriquecido explorando. Os ricos não admitem justiça, não querem dividir. Querem mais e mais, querem tudo pra si. Ali está o problema. Parece uma ansiedade insaciável por segurança e poder. Os ricos têm que ser esclarecidos sobre o seu pecado. É claro, eles não gostam disso. Mas eles precisam ser libertados da sua obsessão e adoração ao que é perecível para eles, mas necessário para os pobres.
Rosa – Em várias passagens bíblicas, em que Jesus orienta seus seguidores, é conclusivo que, enquanto se é rico, não se está no espírito do evangelho. Porque no momento em que amo o próximo, vou querer que ele viva no mínimo tão bem como eu. Enquanto se é rico, muitos são pobres. Nada disso estará acontecendo.
Líria – Jesus observa aqui que somente aquelas pessoas que na sua vida diária experimentaram a absoluta falta de recursos, o desamparo, a insegurança, sentem-se vivencialmente dependentes da bondade de Deus. Sua vida desamparada lhes demonstra diariamente que Deus é bom, é Pai. Em resposta dão até o pouco de que precisariam para comer; entregam-se a Deus.
III – Pistas para prédica
A meu ver, a prédica deve apresentar dois acentos em seu corpo principal: 1. ótica; 2. dar, despojar-se, entregar-se. O diálogo da parte anterior poderá fornecer estímulos para exemplos que deverão ser localmente aperfeiçoados,
1. Ótica
– Importante é que a cena diante do prato de ofertas é observada por Jesus, um pobre, despojado.
– A realidade vista através dos olhos de um latifundiário ou industrial bem abastecidos é justa, inspira liberdade e realização. A realidade vista por entre as grades de uma cadeia ou a partir da areia movediça da pobreza, pelos olhos de peões-bóias-frias e operários, pelos olhos do faminto, é de escravidão e desespero.
– Aos olhos abastecidos, o mundo se divide em países desenvolvidos, potências emergentes e países em desenvolvimento. Aos olhos subnutridos o mundo se divide em países obesos e países raquíticos.
Alerta: Como pastores, pregadores, também temos uma posição de vida. A continuidade da instituição é a nossa segurança. Temos, pois, que tomar cuidado, para não desvirtuar o evangelho, usando o texto e a prédica para prover a nossa segurança. Talvez foi este um dos grandes erros da classe sacerdotal do tempo de Jesus.
2. Dar, despojar-se, entregar-se
– Importante é a posição de vida. Dar das sobras ou despojar-se. Fazer negócio com Deus ou entregar-se. Mercantilismo ou sacrifício. Ser atendido ou engajar-se.
– Quem colocar a sua vida em jogo por minha causa ganhá-la-á.
– O poder do evangelho, por mais tolo que isso possa parecer, reside na fraqueza.
– Pode-se reconhecer Jesus naquilo que a viúva fez. Um exemplo para sua paixão.
Alerta: Acho perigoso usar o texto para campanha do dízimo. Seria uma maneira de justificar mística e religiosamente o desnível gritante e sacramentar o status quo
IV – Textos Bíblicos que podem ajudar na reflexão
– Lc 6.24-26: Ai de vós, os ricos…,
– Mc 10.17-22:0 jovem rico,
– Mc 10.23-31:0 perigo das riquezas,
– Lc 7.36-50: A pecadora que ungiu os pés de Jesus.
– Lc 16.19-31:0 rico e Lázaro,
– Lc 12.13-21: Jesus reprova a avareza,
– Mt 6.25-34: A ansiosa solicitude pela vida,
– At 2.4247: Como viviam os convertidos,
– At 4.32-35: A comunidade cristã,
– At 5.1-11: Ananias e Safira,
– Tg 5.1-6: Deus condena as riquezas mal adquiridas e mal empregadas.