Prédica: Marcos 14.3-9
Autor: Heinz Ehlert
Data Litúrgica: Domingo de Ramos
Data da Pregação: 12/04/1981
Proclamar Libertação – Volume VI
I – Considerações exegéticas
1. Anotações preliminares
O trecho em pauta se encontra no início do relato sobre a paixão, crucificação, morte e sepultamento de Jesus (caps. 14 e 15) e é parte daquela que talvez seja a peça mais antiga da tradição evangélica (Schniewind, p.180). Representa, no contexto, quase uma interrupção dentro da narração de sua paixão. Imediatamente antes o evangelista Marcos colocou a informação sobre o propósito das autoridades, de matar Jesus. Logo depois segue a narração de uma sucessão de acontecimentos que culminam com a condenação e morte de Jesus. Por isso, diz um comentarista: a unção em Betânia é como um oásis no meio do deserto (Schabert, p.272), embora a interpretação dada a este ato justifique plenamente a inserção no contexto da paixão.
A tradução de Almeida satisfaz perfeitamente, não havendo necessidade de outra versão.
Entre as variantes do aparelho crítico apresentadas ao texto adotado pelo NT grego de Nestle, 16.ed., há uma interessante referência quanto ao v.4. Onde lemos indignaram-se alguns, está em lugar disto: os discípulos dele, porém, se exasperaram e disseram… Com isto o indefinido alguns ficaria definido como sendo os discípulos, o que estaria de acordo com Mt 26.8. Trata-se de um manuscrito do século VI.
Os trechos paralelos encontramos em Mateus e João. Mateus, em termos um pouco diferentes, segue a mesma narrativa. João (l 2.1-8) por sua vez dá um nome (Maria) à mulher que, nos sinóticos, permanece no anonimato. E quem, segundo João, reclama por causa do desperdício é apenas Judas. O evangelista Lucas não transmite o mesmo relato, embora haja certa semelhança com outro episódio por ele relatado no cap. 7 de seu Evangelho.
As mensagens essenciais são congruentes em Mateus e João.
2. Análise do texto
V.3: Betânia, a poucos quilómetros de Jerusalém, era lugar apropria¬do para o pouso de peregrinos. Jesus, particularmente, tinha bons amigos lá, que certamente o recebiam com prazer em sua casa, seja como pouso (os irmãos Maria, Marta e Lázaro), seja para uma ceia, conforme se relata aqui.
Simão, o leproso, devia ser conhecido dos leitores. Talvez fosse um dos curados por Jesus. A estranha unção é aplicada por uma mulher. Estra¬nha é, segundo os costumes da terra, principalmente, a presença de uma mu¬lher na ceia de homens. Deve ter causado a impressão de uma intromissão indevida. Schniewind (p. 18), reportando-se a Billerbeck, afirma que se tem notícia de que às vezes mulheres ungiam a cabeça de rabinos (mestres) afama¬dos, para honrá-los.
O bálsamo usado é caracterizado como preciosíssimo perfume, de nardo puro. Tratava-se, portanto, de produto de importação. Havia o da terra, menos precioso, de qualidade e preço inferior. Se o preço avaliado pelos reclamamentos (V.5) conferia, era bem alto mesmo. Trezentos denários é o equivalente à renda de quase um ano de salário de um trabalhador, pois um denário é a renumeração de um dia de trabalho (cf. Mt 20.2).
V.4: A reação imediata de alguns dos convivas à ação da mulher é negativa. Primeiro, por sua intrusão, mas principalmente pelo desperdício. Mostram-se assim completamente insensíveis ao que move essa mulher ao seu gesto. Arrogam-se o direito de fazer julgamento de um ato de sacrifício de outra pessoa. Nada de compreender, só condenar. Um procedimento, aliás, bem contrário ao ensinamento de Jesus (4.24; cf. Mt 7.1-5 e Lc 6.37, 38). (Quanto aos alguns, veja as anotações preliminares acima.) A limitação alguns também indicaria que nem todos os presentes tiveram a mesma reação.
A ideia do desperdício poderia referir-se tanto à quantidade usada (talvez teriam admitido um pouquinho,) quanto à maneira de usar. Com outras palavras: derramar o bálsamo sobre a cabeça de Jesus é o mesmo como jogá-lo fora. Condenar, como condenaram, a honraria praticada pela mulher, significa então considerar Jesus indigno de tamanha honra. Embora isto esteja implícito — e deve ter desgostado Jesus — a argumentação seguinte (V.5) pode amenizar um pouco a dureza de tal interpretação.
V.5: A hipótese aventada, de vender o bálsamo e doar o resultado aos pobres é mera teoria. Para poder vender, seria antes necessário tê-lo à disposição. Consideram a simples referência aos pobres o suficiente para motivar uma pessoa a sacrifício idêntico àquele da mulher.
É muito fácil fazer sugestões teóricas quanto ao sacrifício dos outros. Certo é que poderiam reportar-se ao próprio Jesus e à maneira como ele ensinou e procedeu em relação aos pobres. (Mt 11.5; 19.21: cf. Mc 10.21; I,c4.18 e 6.20)
O termo que Almeida traduz com murmuravam contra ela soa mais forte no original grego, mais no sentido de recriminaram. A expressão ló aparece aqui em Marcos e ainda, com significação um pouco diferente, cm Mc 1.43; Mt 9.30 e Jo 11.33 e 38. De qualquer maneira dá a impressão de que os homens caíram com sua crítica em cima da pobre mulher.
V.6: A pergunta de Jesus bem caracteriza o que estava acontecendo: estavam molestando a mulher. A reação de Jesus é enérgica: Deixai-a! é uma ordem. Com toda a sua autoridade vem em defesa dela. Define a ação praticada como bela, justamente o contrário do que eles estavam dizendo, pois que a consideravam estúpida. Mais adiante, Jesus explica por que considera bela a ação da mulher. Nesta altura ressalta que foi algo muito importante em favor dele próprio.
V.7: Lembrando as prescrições da lei de Deus na antiga aliança (Dt 15. 7-11), Jesus sublinha a afirmação ali contida de que sempre terão oportunidade de fazer o bem aos pobres. Os pobres … são produto do velho mundo (Zimmermann, p. 148). A presença de Jesus é o novo mundo. A este os pobres não pertencem. (ibidem) Esta afirmação em nada revoga tudo que Jesus disse e mostrou em relação aos pobres. Se os discípulos realmente se importam com os pobres não lhes faltará oportunidade de fazer o bem a eles, e não só de falar como se poderia fazer o bem. Só dependerá da vontade deles. No momento está para acontecer isto: Jesus será arrebatado do meio deles, vai morrer como já o prenunciara antes. Diante disso, tudo o que se deve aos pobres passa a um segundo plano. Pois com isso vem ajuda a todos os pobres e sofredores de todos os tempos e, … se isto não acontecesse e não se pudesse anunciar aos pobres, nem com todos os milhões do mundo não se lhes poderia prestar ajuda, e os pobres de todos os tempos teriam que permanecer na fome … (Schabert, p.273).
V.8: Jesus não menciona, em momento algum, que o gesto da mulher tenha sido feito por amor, tenha sido um sacrifício. Mas fez o que pôde. Fez o que esteve ao seu alcance. Na verdade isto representa muito mais que todos os hóspedes daquela ceia estavam fazendo. E não resta dúvida de que a maior expressão de amor de uma pessoa, dentro da limitação humana, é fazer o que pode em favor de outra. Assim se pode dizer que o amor honra o amor. É o amor sem limites e sem medida. (Schabert, p.273) Ela está querendo corresponder ao amor ilimitado que recebeu.
Jesus é que interpreta a unção como sendo para a sua sepultura. Não saberemos se era exatamente isto que a mulher intencionava, se tinha plena consciência do alcance da ação. Mas o seu gesto espontâneo de dedicação, Jesus assim o interpreta.
Aproveita, pois, esta ação corajosa da mulher para mais uma vez lembrar que está à beira da sepultura; para chamar à memória que o Filho do Homem será entregue… (9.31 ;10.33-34).
V.9: E isto faz parte do evangelho universal. Este versículo se refere expressamente ao evangelho. Tudo o que até aqui, ao longo dos capítulos anteriores, foi escrito a respeito, permite resumir que o evangelho é a boa nova que tem como conteúdo a mensagem do reino de Deus, anunciado através da palavra, dos atos, enfim, da vida, sofrimento, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré. O presente episódio, tão significativo, servirá como parte ilustrativa do evangelho, onde for pregado em todo o mundo. Indiretamente, pois, já se caracteriza aqui o evangelho em sua universalidade, destinado a toda a criatura (16.15).
II – Meditação
1. Reflexão meditativa sobre o texto
Vários são os lances dramáticos da narração deste episódio, no início do relato sobre a paixão de Cristo. Qual deles proporciona a impressão mais forte? Creio que vai depender da pessoa que lê. Talvez na atual situação do povo brasileiro e da América Latina, a declaração a respeito dos pobres cha¬me mais atenção. Quem sabe, desafiará para uma segunda leitura do trecho no conjunto, mais cuidadosa e detida.
Ficou estabelecida uma tensão palpável entre uma ação, sem dúvida estranha, e as reações e interpretações dadas. Padrões de comportamento (costume), mas principalmente normas ou princípios de ação e relacionamento com o próximo estão em jogo.
Vejamos a mulher que entra em cena, seu gesto, seus motivos prováveis, seu objetivo.
A cena reflete tranquilidade: uma coisa entre amigos. Jesus é o hóspede de honra. O anfitrião, alguém que lhe deve gratidão, Simão, curado da lepra. Nas circunstâncias descritas pelo evangelista torna-se uma demonstração de simpatia, amizade e solidariedade. Se há quem hostilize e ameace o hóspede de honra, aqui todos lhe querem bem. Aqui pode sentir-se em casa. Segundo o costume oriental devia tratar-se de uma ceia, de uma jantar exclusivamente de homens, mesmo que uma mulher trouxesse comidas. Deveria haver uma conversa. Nada aprendemos sobre o assunto.
Para surpresa e estranheza geral, esta cena de tranquilidade, de conversa amistosa e agradável é interrompida bruscamente. Uma mulher entra em cena e centraliza as atenções pelo que faz: quebra um vaso de alabastro e derrama seu conteúdo sobre a cabeça de Jesus. O odor do perfume é inconfundível, para quem conhece — e os convivas parece que conheciam muito bem. Logo sabiam que se tratava de um bálsamo preciosíssimo, nardo puro. Artigo de importação. Só gente rica pode comprar e usar tal óleo. Se alguém que não vive em situação financeira avantajada, adquire um produto desse tipo, gastando uma pequena fortuna, perguntam-se forçosamente: que motivo tem, que objetivo persegue? Ninguém que tenha a cabeça no lugar, gasta tanto dinheiro a toa. Mas que significa a toa? Quando é que dinheiro é bem empregado? Nem hoje pessoas que estejam na mesma situação econômico-financeira, na mesma classe social, dariam uma resposta unânime a este respeito.
Para a mulher, aparentemente o motivo de seu gesto, da aquisição deste perfume (bálsamo) tão caro era um só: Jesus. Foi ele, com tudo o que falou e fez, que a impulsionou a levantar os recursos (não sabemos sequer, se dispunha deles, ou se contraiu um empréstimo), a procurar um negociante de artigos cosméticos importados, a submeter-se à barganha própria dos orientais, e finalmente a levar consigo o vaso de alabastro com o precioso perfume para guardá-lo até uma ocasião oportuna para — sim, para quê?
Certamente queria expressar algo que sentia, demonstrar o quanto apreciava e honrava o mestre querido. Os reis de Israel eram os ungidos. O corpo de um falecido era embalsamado. Donde teria vindo à mulher a ideia de tal gesto? Uma coisa parece certa: foi o coração que falou aqui. É uma atitude de doação incondicional que não mede, que não faz contas, que não espera recompensa. É muito antes a gratidão e desejo de corresponder à grande misericórdia e amor que recebeu.
Será que isso é suficiente e poderá ser padrão de conduta? Quando o amor manda, a pessoa pratica o que é bom? Será que ali onde tanta emoção, tanto sentimento entram em movimento, não faz bem exigir a sabedoria, a sobriedade, as normas de justiça, uma distribuição inteligente dos recursos?
Os alguns participam, assumem um papel nesta cena. Fazem o papel de juizes. Aliás, um papel que mui frequentemente assumimos nos acontecimentos que se destacam e causam maior impacto. Fazemos nossos julgamentos e pronunciamentos, rápido, o nosso veredito, quanto ao que os outros fazem – principalmente quando não corresponde ao normal, àquilo que se aceita como norma, àquilo que a gente deveria fazer — mas talvez não faz. Mas aqui não se trata apenas de padrões gerais de moral e ética. Aqui se trata do ensinamento do próprio mestre. Dentro dos novos padrões estabelecidos por ele não se justifica qualquer desperdício.
Mas pode ser qualificado de desperdício o que é oferecido a ele? Os alguns não refletem sobre como melhor servir a Jesus? Como melhor cumprir, em cada situação específica, a sua vontade, sempre no intuito de submeter-se inteiramente à sua direção? Não, eles julgam, se indignam, recriminam sentados, parados, a movimentação, a ação, o sacrifício de uma outra pessoa, cujo motivo e objetivo era Jesus. Sua argumentação de aplicar recursos em benefício dos pobres, que em outro contexto estaria corretíssima, aqui se torna falsa e hipócrita. Não fala o coração ardente de amor, como no caso da mulher anónima (Marcos não transmite o seu nome, mas seu ato).
Fala talvez o coração ardente de inveja, ou o coração duro de egoísmo e amor próprio. Não consideram nem a Jesus (com tudo o que fez é fará), mas fazem do evangelho uma outra lei. A opção pelos pobres como objetivo em si, sem dar todo o valor ao ato redentor de Cristo, seria um absurdo, seria falsificar o evangelho.
Não pode tal argumentação parecer uma maneira muito cómoda e por isso hipócrita de se livrar do incómodo que é um contingente de pobres na América Latina? Será que a situação não mudou totalmente, em relação ao passado, quando os pobres já não são uma minoria, mas a grande maioria? Mesmo assim não é possível achar uma solução ditada por um humanismo idealista ou por motivação egoísta (temos que livrar-nos da massa dos pobres antes que nos atropelem). Jesus aparentemente conta com a imaginação dos discípulos, na busca de solução para os pobres. Quando quiserdes podeis fazer-lhes o bem. Então é preciso ter vontade, de fato, de fazer bem aos pobres. Não basta reclamar justiça e liberdade para eles (contra governo e exploradores). Será necessário, também, uma transformação da mente (da própria e da dos pobres), um negar-se a si mesmo para querer o bem para os outros e reconhecer com eles qual é o bem real para eles. Isto só será possível quando houver uma identificação decidida com Jesus. Discipulado verdadeiro é aprendizagem permanente, levando em con-sideração cada nova situação.
Jesus dedicou-se aos pobres, chamou a atenção para eles, identificou-se com os pequeninos irmãos, mas também veio chamar os pecadores ao arrependimento, e veio buscar e salvar o que se havia perdido. O que empreende ao iniciar a via dolorosa, o caminho ao calvário (que passa pelo Getsêmani, pelo palácio do sumo sacerdote, pelo julgamento de Pilatos, pela gritaria da multidão fanatizada), Jesus faz para redimir, para libertar. Libertar para o reino novo que não se confunde com nenhum reino deste mundo, com nenhum sistema político, com nenhuma forma social idealizada por homens. Tudo isto fica expresso na intervenção de Jesus. Ele entra em cena para defender uma pobre, a mulher que fez o que pôde na sua doação antêntica, por amor a Jesus. Aquela que é encarada com preconceito (seja de que tipo for), que é tratada com superioridade, que é recriminada sem compreensão e sem compaixão, Jesus precisa proteger. Ela é melhor discípula porque, com sua dedicação ao mestre, torna-se mensageira autêntica de Cristo (ungido) que é dado à morte para redimir o perdido, para reintegrar no reino do Pai a criatura que se perdeu.
Torna-se exemplo e estímulo para todos que tropeçam em novas leis e prescrições que eles mesmos criam, e com as quais atrapalham a si mesmos e oprimem outros.
2. Escopo homilético
A estranha unção em Betânia nos ensina que uma dedicação incondicional a Jesus (que se entrega à morte por nós) dá a medida certa à ação do discípulo em relação a ele e ao próximo necessitado, sem preconceitos e tem nova lei.
III – Indicações para a prédica
Tanto a exegese quanto a meditação fornecem, a meu ver, elementos para estruturar e formular uma prédica a partir do texto.
Poderíamos começar com a constatação: uma sucessão de acontecimentos inesperados e reações desconcertantes se apresentam. Por quê?
A seguir se pode desenvolver a pregação, aproveitando as três cenas apontadas na Meditação acima. Senão vejamos:
1. A ceia tranquila de solidariedade é interrompida bruscamente por uma mulher que pratica estranha unção. Por que e para quê?
2. Alguns dos convivas reagem com crítica dura e advogam ação em favor dos pobres, baseando-se em ensinamento e procedimento de Jesus.
3. Jesus, defende e interpreta o procedimento da mulher como verdadeiro discipulado, apontando para o desfecho de sua obra redentora.
A terceira parte deve ser elaborada com bastante cuidado, porque será a resposta às perguntas que as duas primeiras levantam. É, pois, a mais importante. Deve ficar claro que o trecho não permite bagatelizar a questão dos pobres. Não dá espaço a soluções cómodas. O sacrifício (doação) da mulher, centrado em Jesus, dá a pista para o evangelho que mostra a redenção total para todos.
IV – Bibliografia
– SCHABERT. A. Das Markus-Evangelium. München,1964.
– SCHLATTER, A.Die Evangelien nach Markus und Lukas. Stuttgart,1954.
– SCHNIEWIND, J. Das Evangelium nach Markus. München, 1968.
– SCHWEITZER, E. Das Evangelium nach Markus. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol.l. l l.ed. Göttingen, 1967.
– ZIMMERMANN, W. D. Markus über Jesus,. Gütersloh, 1970.