Prédica: Marcos 9.17-29
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: 17º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 11/10/1981
Proclamar Libertação – Volume VI
l – Considerações exegéticas
1. Contexto
A nossa perícope se encontra em Mt 17.14-21 e Lc 9.37-43a. Nos três evangelhos antecede-lhe a narrativa da transfiguração. Em seguida, é narrada a descida do monte e a ordem de Jesus aos discípulos Pedro, Tiago e João de não divulgarem as coisas que viram. Fala-se, ainda, brevemente, do retorno de Elias que, conforme as palavras de Jesus, já aconteceu com o caminho de sofrimento de João Batista. Em Lucas faltam as palavras sobre o retorno de Elias. Mas, aqui, é mencionado aquele que foi precursor no sofrimento. Eu, porém, vos digo que Elias já veio, e fizeram com ele tudo o que quiseram, como a seu respeito está escrito.” (Mc 9.13)
2. Questões de forma
Quando se lê o trecho Mc 9.14-29 tem-se a impressão de estar diante de duas narrativas diversas. Bultmann é de opinião que aí foram combinadas duas narrativas de milagre (já antes de Marcos), provavelmente devido à semelhança do caso de doença e de cura. A primeira narrativa tem como ponto alto a contraposição do mestre e dos aprendizes-feiticeiros, cuja incapacidade forma o pano de fundo para o poder do mestre… A segunda narrativa tem mais caráter apoftegmático e descreve o paradoxo da fé descrente… Uma distinção clara não é mais possível. A primeira narrativa parece compreender os vv. 14-20 e a segunda os vv.21-27. (Bultmann, pp. 225 e 226)
Esta hipótese não convence inteiramente. Ela não elimina todas as dificuldades. Não é de se supor, por exemplo, que a segunda narrativa possa ter circulado isoladamente na sua forma atual. J. Schniewind defende a unidade do trecho todo. Conforme ele neste trecho, exatamente em seu conjunto, é dito como em nenhum outro o que significa te. (Schniewind. P. 127)
3. Interpretação
Vv.14-16: Alguns manuscritos sugerem a leitura de ELTHÕN, isto é, o singular em vez de ELTONTHES (quando eles se aproximaram). Neste caso Jesus teria vindo sozinho aos discípulos. Mas não é de se supor que Marcos tenha originalmente usado o singular, pois então não haveria ligação alguma com as narrativas antecedentes. Isso, porém, no mínimo não se coadunaria com o meticuloso trabalho redacional de Marcos.
Temos nos vv.14-16 algo como uma introdução. É mencionada uma discussão. Mas ainda não é indicado o assunto. Em meio à discussão, porém, aparece aquele que seus discípulos não podem substituir. A reação da multidão é de surpresa e saudação reverente. Já pela maneira do relato, Ioda atenção é voltada para Jesus. A multidão correu para ele. E soberanamente ele lança a pergunta: Que é que discutíeis?.
Vv.17 e 18: Agora é indicado o assunto. Um pai havia trazido seu filho doente aos discípulos. Mas estes não o puderam curar. Isto não lança dúvidas somente sobre os discípulos, mas também sobre o seu mestre. Se, porém, o mestre ainda puder ajudar ali onde seus discípulos fracassaram, estará evidente sua incomparável grandeza. Também a gravidade da doença tem a finalidade de canalizar a atenção para Jesus que é o centro. A descrição da doença leva a imaginar uma manifestação de epilepsia. No mais. o caso está dentro da imaginação de um mundo que contava com a ação dos demónios.
Vv.l9-22a: A resposta de Jesus inicia com uma lamentação sobre a geração incrédula. É artisticamente construída e obedece às regras do parallelismus membrorum. A lamentação pressupõe que aquele que a pronuncia não é desta geração. Até quando estarei convosco? Sua presença terrenal é como uma parte de uma vida mais ampla que está radicada no mundo divino, colocada por um escuro espaço de tempo nesta geração, para novamente prosseguir naquele mundo divino (Lohmeyer, p. 187). Quem vem a ser a geração incrédula? Trata-se do povo, do pai, dos discípulos? A resposta só pode ser: todos entre os quais Jesus vive! O fato de Jesus , mesmo assim, ajudar revela-o como portador da salvação divina. Aqui ele é apresentado no caminho da paixão, no caminho para a cruz em favor exatamente dessa geração incrédula!! De qualquer forma, o v. 19 destaca a dignidade e procedência divinas de Jesus.
Sob sua ordem o doente é trazido. A estas alturas já estamos a esperar a cura. Mas, ao invés disso, acontece um novo e terrível ataque. A doença é ressaltada como sendo realmente muito grave. Também o v.21, que fala da duração da mesma, vai nesta linha. O v.22 aponta para o perigo de vida que corre o doente. Ninguém melhor do que o próprio pai sabe o que significa essa doença da qual o seu filho é vitima.
Vv.22b-24: A partir dai a súplica do pai: Se tu podes alguma cousa, tem compaixão de nós, e ajuda-nos. Jesus se refere diretamente à pergunta lançada, quando diz: Se podes! Tudo é possível ao que crê. Aqui é tocado o tema central: a questão da fé! Este tema encontramos com frequência nas narrativas de curas. Nunca a fé é consequência da cura, mas sempre o seu pressuposto (cf. Mc 2.1-12; 5.2M3;-6.5-6; 19.46-52). A cura acontece com base na fé dos que a pedem, isto é, quando se manifesta uma profunda confiança. Um pedir confiante não deixa de ser atendido. Mas isso, não graças a um poder inerente ao pedir em si, mas graças à imensurável bondade de Deus que não decepciona a confiança ilimitada. Essa certeza pode ser expressa com as palavras PANTA DYNATA TO PISTEYONTI (tudo é possível ao que crê). Trata-se do amor de Deus que não desaponta a confiança nele depositada. É claro que aqui podem surgir mal-entendidos. Poder-se-ia pensar que uma fé excepcionalmente grande estaria sendo esperada. Neste caso a fé correria o risco de ser transformada em uma obra meritória. Para evitar este mal-entendido a resposta do pai é de suma importância. Eu creio, ajuda-me na minha falta de fé! Não se trata de uma fé excepcionalmente grande; importante é que o homem simplesmente peça em confiança e que em seu pedir confiante não se deixe desviar nem sequer pela constatação da sua pobreza de fé (Barth, p. 188). Visto assim, o v.24 parece ter a finalidade de evitar que a palavra da fé, que tudo pode, seja entendida no sentido legalista. Ninguém é convidado a calcular a sua fé!
Vv.25-27: Finalmente é descrita a cura. O ponto culminante da cena é atingido. Acontece a solene esconjuração do espírito imundo por Jesus. Ela obedece rigidamente às fórmulas previstas para casos de exorcismo (cf. 1.25 e 5.8). O jovem fica deitado como se estivesse morto. Jesus toma o morto pela mão e o ergue. Com este detalhe o trecho assume traços de uma narrativa de ressurreição. E Lohmeyer, por exemplo, aponta para o caráter epifânico dessa cura (p. 188). Apareceu aquele que tem poder sobre a escuridão, sobre todo sofrimento, sobre doença e morte.
Vv.28 e 29: Temos aí um acréscimo à cura descrita acima, uma espécie de instrução aos discípulos. Ë uma cena curiosa e de difícil explicação. O que se quer? Procura-se pelo motivo do fracasso dos discípulos? Também a resposta de Jesus estranha. O que se quer dizer com GENOS? Trata-se de uma casta, de uma espécie especialmente difícil de expulsar? Deve ser dada uma receita adicional para o exorcismo desta casta? Uma resposta afirmativa à última pergunta inevitavelmente afastaria da afirmação central da perícope: Tudo é possível ao que crê. Além disso, a oração ocorre com tal frequência em curas, tanto no AT quanto no NT, que não viria a ser realmente um meio especial, mencionado adicionalmente.
Alguns textos falam de oração e jejum. Mas KAI NÉSTEIA com toda possibilidade foi adicionado posteriormente. Os manuscritos mais antigos, o Vaticanus e o Snaiticus, em todo caso, falam somente da oração. Como interpretar esses versículos finais? A explicação mais plausível é a que Barth oferece. Fé, nas narrativas de cura, é o pedir confiante. Neste sentido fé e oração se interpenetram mutuamente. A atitude de fé te realiza na oração que pede confiantemente. O evangelista, portanto, retoma, com a instrução aos discípulos (v.29), mais uma vez ao tema dos versículos 23 e 24, ou seja, ao tema da fé. (Barth, p.190)
Com isso mais uma vez se estaria externando a mesma concepção de fé que o pai do jovem expressa com as palavras: Creio, ajuda-me na minha falta de fé! (v.24)
II — A caminho da prédica
… e eles não puderam. Esta é a nossa situação! … e eles não puderam, essas palavras mexeram comigo. Imagino o seguinte: Aí vem gente. Procuram os discípulos de Jesus. Procuram a Igreja. Sim, Jesus Cristo é invisível, mas a Igreja, seus obreiros, seus membros são algo palpável. Aí se sabe onde bater. Há gente, portanto, que se dirige a nós. Eles têm uma grande confiança, pois do contrário não se dariam ao trabalho de procurar a Igreja. Eles esperam alguma cousa de nós. Esperam muito da Igreja. Esperam muito dos discípulos de hoje que somos nós. O que poderiam estar procurando? Quem sabe alguém deseja encontrar um lugar onde haja paz. Outro deseja ardentemente ser aceito, ser amado. Posso imaginar alguém que não aguenta mais as dificuldades que a cada passo se colocam em sua vida. Procuram, enfim, auxílio de múltiplas maneiras. E o que acontece? Qual é a situação da Igreja? Procuram paz e encontram desunião, intrigas até entre nós pastores. Procuram amor e encontram desconfiança. Procuram alento e encontram palavras. Procuram auxílio bem concreto e encontram concepções e opiniões formadas. Procuram uma práxis e encontram teoria. Queira Deus que estas não sejam as únicas cousas que se descobre na Igreja. Mas, se olharmos para nós o resultado sempre será: … e não puderam.
Investimos muita energia e tempo. Não medimos esforços. Organizamos uma infinidade de atividades. Acostumamo-nos, inclusive, a pensar em horizontes mais amplos. Questões económicas e políticas já fazem parte do nosso debate diário. Tudo isso é muito importante, mas mesmo nas nossas melhores obras há sempre algo do nosso orgulho. Quando nos damos conta estamos girando em torno de nós mesmos, organizando e construindo com as forças que o mundo oferece, dentro do esquema da concorrência e do sucesso. Aí Jesus sofre por nossa causa, ó geração incrédula! Até quando vos sofrerei? A nossa situação é de impotência. A situação da Igreja toda é de fraqueza.
Mas está aí aquele que apesar de todos os nossos fracassos permite que sejamos chamados de seus discípulos. Se a Igreja tem alguma dignidade então é sempre apesar de tudo. E porque ele, o Senhor da Igreja lha confere. Penso não estar afirmando demais, se concluo da nossa narrativa que devemos ter a coragem para incentivar outros a não esperar nada da Igreja, a não esperar nada de nós, mas tudo, tudo mesmo daquele que supera a nossa fraqueza.
Os discípulos não o puderam fazer. A Igreja não o pode fazer. Importa que todos aqueles que nos procuram não desistam de procurar por ele, pelo Senhor. Que eles não se desviem por causa da nossa escandalosa impotência. Que eles façam como o pai do jovem epiléptico o fez. Ele bem poderia ter dito: Ora, eles não me puderam ajudar. Então certamente também não vai adiantar nada procurar o mestre. Ele igualmente não poderá fazer nada! É tudo boato! Mas ele não desiste. Não resigna. Apesar da experiência tida com os discípulos, faz nova tentativa.
Vejamos como continua a narrativa: O pai do menino conta toda história da doença. Ë ressaltado que o menino vem sofrendo desde a infância. Quer dizer: o problema é realmente grave. Não se trata de algo passageiro. As convulsões do doente são apresentadas como extremamente violentas. Com tudo isso se sublinha o poder daquele que aqui será vitorioso, o poder de Jesus. O pai do menino confessa a sua impotência diante do caso. Revela todo o seu desespero. Então pronuncia as palavras decisivas. Claro, há um resto de dúvida misturado nelas. Mas ele diz: 'Tem compaixão e ajuda-nos. Ao dizer se tu podes alguma cousa, expressa esperança!
E aí Jesus dá a seguinte resposta: Se podes? Tudo é possível ao que crê. Qual é exatamente o sentido dessa resposta? Jesus quer indicar para a fonte de onde jorra em plenitude a força da vida. Deus quer reinar na vida dos homens, quer tomar conta de tudo até a raiz do ser humano. Em Jesus aparece o que se dá quando Deus toma conta e começa a reinar. O trecho não diz outra coisa senão: quem se entrega a Deus incondicionalmente, a esse tudo é possível. A esse é possível destruir as forças da morte que não somente se manifestam na agonia de uma doença, mas em tudo o que causa sofrimento humano.
Tudo é possível ao que crê. Em geral pensamos que para uma fé especialmente grande tudo é possível. Mas aqui apenas se fala em fé. Trata-se simplesmente da entrega total. Mas aí exatamente está o problema. Nós dizemos que assim não conseguimos crer. Nós cremos em tanta coisa. Cremos em nós mesmos, cremos em outra pessoa, cremos no progresso, cremos na vitória do bem que está escondido em algum lugar dentro do homem. Cremos em tudo. Somente em Deus achamos que não podemos crer. O caso é que percebemos que a fé em Deus não admite fé em nenhuma coisa deste mundo. E nós encontramos desculpas. Um diz: Eu sou um homem inteligente e este negócio de crer não combina bem com a minha inteligência! Afinal sou um homem esclarecido! Não, não posso crer! Outro talvez diga: Eu gostaria de crer, mas lamentavelmente não tenho vocação religiosa. Um conhecido pregador e teólogo, Dietrich Bonhoeffer, diz sobre isso que não se trata de não poder crer, e sim, unicamente de não querer crer. Crer significa confiar em Deus incondicionalmente. E nós sempre de novo queremos impor condições. Fé é confiar inteiramente em Deus.
A estas alturas poderia parecer que a fé é uma obra nossa. Por isso é tão maravilhosa a resposta do pai do menino epiléptico! Eu creio, ajuda-me na minha falta de fé. Não se trata de uma obra deste homem. Ele não olha para si e nem entra em reflexão sobre si próprio para então concluir: eu creio. Ele confia. Espera tudo de Jesus. Entrega-se-lhe inteiramente. Também lhe entrega a questão da fé! No tocante à fé, a única coisa certa que podemos fazer é orar: ajuda-me na minha falta de fé. Será que o final da narrativa conforme Marcos não quer também dizer exatamente isso? A fé que tudo pode não é obra nossa, mas é dádiva.
Quando (Jesus) entrou em casa, seus discípulos lhe perguntaram em particular: Por que não pudemos nós expulsá-lo? Respondeu-lhes: Esta casta não pode sair senão por meio da oração. (vv. 28 e 29) Teria Jesus aí dado uma receita especial para um determinado tipo de demônio? Creio que não! Mas ele diz que fé é igual ao pedir confiante. Aqui oração é o que antes foi chamado de fé. Fé e oração se interpretam mutuamente.
Que promessa magnífica! Tudo é possível ao que crê. Na fé podemos participar na vitória daquele que é o Senhor da vida. Na fé todas as forças da morte que diariamente nos atacam não prevalecerão contra nós. Na fé somos vencedores. Paulo chega a dizer que somos mais que vencedores por meio daquele que nos amou (Rm 8.37). E quanto à questão da nossa fraqueza não tentemos vencê-la através de ainda mais atividades e novos empreendimentos, mas confiando inteiramente naquele que nos aceita apesar dos nossos constantes fracassos. Oremos sem cessar e com toda humildade: Creio Senhor, ajuda-me na minha falta de fé!
III – Bibliografia
– BARTH, G. Meditação sobre Marcos 9.17-29. In: Hoeren und Fragen. Vol.5. Neukirchen-Vluyn, 1967.
– BONHOEFFER, D. Prédica.sobre Marcos 9.23-24. In: Gesammelte Schriften. Vol.4. Muenchen, 1961.
– BULTMANN, R. Die Geschichte der Synoptischen Tradition. 7.ed. Goettingen, 1967.
– GOLLWITZER, H. Prédica sobre Marcos 9.17-29. In: Und lobten Gott. Berlin, 1962.
– LOHMEYER, E. Das Markusevangelium. In: Meyers Kommentar. ll.ed. Goettingen, 1967.
– SCHNIEWIND, J. Das Evangelium nach Markus. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol.l. S.ed. Göttingen, 1949.