Prédica: 1 Coríntios 10.16-17
Autor: Rui Bernhard
Data Litúrgica: Quinta-Feira Santa
Data da Pregação: 08/04/1982
Proclamar Libertação – Volume VII
Tema: Quinta- Feira Santa
I – Introdução
Na Quinta-feira Santa geralmente os textos bíblicos indicados para a prédica versam sobre a Santa Ceia, ou, no mínimo, sobre a paixão e morte de Jesus. Por isso, a pregação geralmente se torna temática neste dia, o que muitas vezes causa dificuldades ao pregador, uma vez que isto exige dele uma criatividade muito grande. Em consequência, o mesmo muitas vezes se repete e os cultos se tornam monótonos.
Por outro lado, precisamos considerar também que nestes dias, na semana da Paixão, geralmente temos casa cheia. Isto significa que temos diante de nós frequentadores esporádicos de culto, que estão ai uma vez por ano. E estão aí principalmente para tomar a Santa Ceia, pois para a maioria tomar a Santa Ceia é um acontecimento importante, mas que deve acontecer na semana da Paixão. É como que comemorar; a morte de Jesus. O pregador, nesta oportunidade, se vê na tentação de baixar a lenha sobre os presentes, fazendo-lhes sentir que sua ausência durante os outros domingos do ano não está correta. Penso, no entanto, que devemos valorizar esta oportunidade de falar sobre o Sacramento do Altar, para que cada um possa levar daí uma mensagem que o motive a urna participação mais frequente. Para tanto é necessário que a pregação seja simples e procure interpretar o mais profundamente possível o significado da Santa Ceia para a nossa vida. Que cada um possa entender as consequências que a Santa Ceia tem para nossa vida de todo o ano. Que a partir da comunhão de Cristo, na qual somos colocados pela Santa Ceia, aconteça a comunhão com nossos irmãos de luta e de sofrimento de todos os dias. Que a Santa Ceia nos dê forças justamente nesta luta, quando então a repartir se torna mais fácil.
Creio que, se colocarmos a pregação neste contexto e se lhe dermos este enfoque, estaremos dentro da interpretação do próprio texto previsto para este dia.
II – Considerações sobre o texto
Delimitando o contexto maior, vamos ver que 1 Co 10.16-17 faz parte do pensamento e da preocupação dos caps. 8-10. Nesses três capítulos. Paulo trata da questão, diante da qual se encontram os coríntios os cristãos podem ou não comer da carne que foi sacrificada aos ídolos? A confusão na comunidade de Corinto é grande a este respeito. Por isso, se entende que os dois versículos aqui tratados não são pura e simplesmente um tratado sobre a Santa Ceia. Paulo quer, antes, abordar a Santa Ceia a partir de sua prática e da experiência de fé na comunidade.
Neste sentido quer mostrar aos coríntios como eles devem distinguir muito bem entre a idolatria e a verdadeira Ceia do Senhor. Para o apostolo é impossível participar de duas situações diferentes de comunhão. Por isso adverte os coríntios que procurem distinguir muito bem entre ambas.
Os vv. 16 e 17 relatam, pois, uma prática da Santa Ceia que a comunidade provavelmente já conhecia. O elemento novo levantado pelo apostolo é o fato de que a comunidade deve reconhecer a exclusividade da comunhão, na qual só a Santa Ceia nos pode colocar.
Contradizendo a tradição litúrgica da Santa Ceia (cf. 1 Co 11.23ss), o apóstolo fala aqui primeiro do cálice da bênção para só então falar do pão. Isto, em si, não é de maior relevância. Em todo o caso o termo cálice da bênção é uma expressão da tradição judaica, onde o cálice era oferecido no fim da refeição. (Wendland, p. 81)
Interessante é que Paulo não diz expressamente que o cálice contém o sangue de Jesus. Ele só afirma que o sacrifício de Jesus está acima de qualquer sacrifício de animais. E nenhum sacrifício de animais pode propiciar comunhão mais intima. Paulo ressalta que o sacrifício de Jesus não é um mero sinal externo, não nos quer colocar numa situação externa ou superficial de relacionamento, mas que o seu sacrifício vai muito além: dá-nos participação no seu próprio corpo. Nós nos tornamos um corpo com ele: outros deuses e ídolos não têm e não podem dar tal participação Por isso, se torna de grande importância o termo KOINÔNIA no v. 16. O sangue e o corpo de Cristo na Santa Ceia nos dão participação na sua morte e ressurreição Com isso, somos colocados dentro do corpo de Cristo, fazendo parte dele. Tal participação só pode acontecer, quando o velho homem morre e quando vestimos o novo homem. Pois onde o pecado é perdoado, a morte também foi vencida. Não há dúvida de que o apóstolo fala de uma união real dos membros com o corpo do Senhor. Pois se já o sacrifício feito aos ídolos dá comunhão com o demônio, quanto mais pão e vinho nos dão comunhão com o corpo e o sangue de Jesus, quando realmente são aceitos nesta fé. E todo aquele que procura comunhão com o demônio, não pode ter participação na mesa do Senhor. Por isso, se pode dizer que a palavra comunhão tem o seu mais profundo significado, quando se crê no seguinte: os membros da comunidade de Jesus vivem com o seu Senhor, são crucificados, mortos e sepultados com ele, são ressuscitados, exaltados, e com ele têm poder e vivem para a vida eterna. (Klessmann. p. 173)
Só a partir daí pode-se entender o significado da Igreja: não se trata apenas da soma de muitas pessoas que se unem numa sociedade. Antes, Igreja é o corpo de Cristo, cuja unidade está sempre presente em Cristo. E nesta unidade em e com Cristo nós sempre somos colocados, quando comungamos a Santa Ceia. Cristo vem até onde nós estamos. E o Sacramento do Altar que sempre renova a nossa comunhão com Cristo.
Portanto, a respeito do corpo fala-se de duas maneiras: primeiro, do corpo de Jesus que foi sacrificado por nós; segundo, do corpo que é formado por todos aqueles que participam da Santa Ceia, que aceitam o pão, e desta maneira formam o corpo da Igreja. Em todo o caso, esta comunhão não pode ser vista apenas numa esfera superficial da fé. Não podemos entender a Santa Ceia como uma participação mística neste corpo de Cristo. Trata-se, antes, de uma participação concreta na salvação. Para o que cré, isso sempre se concretiza, quando em fé partimos o pão e repartimos o vinho na Santa Ceia. É através dela que Cristo permanece vivo na comunidade. Por isso, comemorá-la é comemorar a presença viva de Cristo na comunidade.
Resumindo, podemos dizer: A participação, em fé, na Santa Ceia nos coloca numa comunhão intima com Jesus e ao mesmo tempo nos dá comunhão com o nosso irmão. A participação na Santa Ceia, nos salva, e ao mesmo tempo nos desafia para uma vivência em amor com o nosso semelhante.
III – Pensamentos para a prédica
Conforme vimos nas considerações acima, a prédica pode ressaltar dois aspectos relevantes do texto:
1. O aspecto da comunhão dos comungantes com Cristo. Jesus quer, através da Santa Ceia, chamar pecadores para o Reino de Deus, sem impor condições. Então, cada comungante deveria sentir que não está ai participando por tradição apenas, mas que este aio quer lembrar-nos do grande gesto de amor de Deus para conosco. Deveria sentir também que, no momento em que nos reunimos em torno do cálice e do pão, e quando em fé aceitamos a dádiva de Deus. nós nos tornamos verdadeiros comungantes, isto é, participantes do corpo de Jesus. E esta participação nos leva a reconhecer o segundo passo importante a ser considerado na prédica.
2. A comunhão com Cristo, na qual somos colocados, nos desafia agora para a comunhão vivida, a comunhão com o próximo. Somos desafiados a vivermos comunidade. Neste sentido deveríamos perguntar: Como fazer para que a Santa Ceia não seja apenas algo entre mim e Jesus e entre Jesus e mim? O que fazer para que esta comunhão se expresse na vida diária com o meu semelhante? Podemos partir diretamente do que nos diz o v. 17, somos todos unicamente um pão, e podemos lembrar-nos também de 1 Co 12.25s onde os membros; do corpo são exortados a cuidar uns dos outros. Assim se realiza comunhão com os irmãos, no entender do apóstolo Paulo. Em nossa Igreja estamos acostumados a tomar a Santa Ceia para tranquilizar nossa consciência. Admitimos o arrependimento de pecados pessoais, mas esquecemo-nos dos pecados coletivos. Somos uma Igreja formada de indivíduos que se escandalizam, quando pastores e obreiros se engajam numa preocupação sócio-política. É também aqui que a Santa Ceia nos quer libertar para sermos mais coerentes em nossa vivência de fé. Pois ela não nos quer colocar numa situação de harmonia e de tranqüilidade. Cristo não sofreu para que nós fôssemos poupados de tudo. Mas ele veio justamente trazer a espada (cf. Mt 10 34ss).
Contudo isso não significa divisão. A prédica deveria acentuar que, enquanto tantos irmãos passam fome ao nosso lado, enquanto irmãos, vivem explorados e oprimidos pelos mais fortes, enquanto irmãos nossos passam por dificuldades e sofrem injustiças que nós mesmos não gostaríamos de sofrer, enquanto tudo isso e muito mais ainda acontece ao nosso lado, a comunhão da Santa Ceia está incompleta. Enquanto não existir em nós a preocupação mais decisiva por justiça, e mais concretamente a vontade de entrar nesta luta, o processo de salvação iniciado na Santa Ceia fica fragmentado, interrompido.
Na Santa Ceia recebo sempre o sinal do amor de Deus. Mas, inversamente, isto me desafia a carregar em amor a carga dos demais. É como diz Lutero: Aí teu coração tem que se entregar ao amor e aprender como este sacramento é um sacramento de amor, e assim como tu experimentaste amor e apoio, também tens que mostrar amor e apoio a Cristo e seus pobres. Pois aí tens que sofrer com tudo quanto desonra a Cristo e sua santa palavra, toda a miséria da cristandade, todo sofrer de injustiça por inocentes. Disto há por demais em todos os lugares do mundo. Aí tens que combater, fazer, interceder e, se nada mais puderes fazer, sofrer junto. (apud Altmann, p. 134) Sabemos que nossas atitudes em favor do mais fraco terão consequências. Levarão à oposição e perseguição do mundo, dos mais fortes. Por isto mesmo, conforme Lutero, precisamos sempre de novo da comunhão na Santa Ceia como fortalecimento e conforto.
A pregação neste dia é uma boa oportunidade para o pregador que entende a mensagem do texto de 1 Co 10.16-17 como foi colocada acima, abordar problemas internos na própria comunidade, bem como olhar para o que está acontecendo em seu contexto social. É uma oportunidade para denunciar a falta de comunhão entre irmãos, e anunciar a oferta que recebemos através da Santa Ceia de Jesus Cristo.
IV – Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor Deus, Criador do mundo e doador da vida, tu nos deste a tarefa de construir o teu mundo e aproveitar as suas riquezas Ao invés disso, destruímos e comprometemos o que tu colocaste a nossa disposição para a vida. Destruímos a natureza e fomentamos a desunião entre as pessoas. Por isso reconhecemos: Senhor, precisamos do teu perdão. — Senhor, procuramos e ansiamos por liberdade e alegria. Ao invés disso, nos tornamos cada vez mais escravos de sistemas e estruturas cansadas e corruptas. Por isso reconhecemos: Senhor, precisamos do teu perdão. — Senhor, doador da paz e do amor: Reconhecemos a necessidade de reconciliação entre as pessoas, mas não somos fortes ao ponto de nos tornarmos exemplos do teu perdão. Por isso te pedimos: Senhor, perdoa a nossa fraqueza; perdoa a nossa falta de fé. Tem piedade de nós. Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor, tua palavra nos reúne mais uma vez nesta comunhão. Somos muitos aqui presentes. Talvez nem todos se conheçam. Mas todos queremos reunir-nos em torno de tua mesa farta que nos quer saciar. Dá que possamos sair daqui hoje fortalecidos em nossas lutas da vida. Que tua palavra nos dê orientação e sabedoria, para sermos capazes de mudar o que outros não são capazes de fazer, porque estão comprometidos demais com a estrutura injusta em que vivemos. Por isso, ilumina os nossos corações com a tua palavra neste culto para que a tua vontade se faça sentir em nossa vida. Por Jesus Cristo, amém.
3. Assuntos para a intercessão final: Há falta de comunhão entre nós na comunidade — pedimos que o nosso orgulho e a nossa auto-segurança percam o seu lugar de destaque, na fé vivida em comunidade. Há preocupação demasiada entre nós, evangélicos, em querer uma Igreja onde tudo é harmonia, onde não haja incômodo e tensão — pedimos-te, Senhor, que possamos aprender a viver também com a tensão que nos quer tirar do nosso comodismo e inércia. Há preocupação por caridade entre nós, mas só até o ponto onde não fomos desafiados a nos desfazer do supérfluo e do desnecessário, preocupamo-nos em acumular sempre mais e não vemos que isto só é possível as custas daquele que tem cada vez menos — perdoa-nos. Senhor, e ajuda-nos a reconhecer as estruturas injustas que criamos ou ajudamos a manter e perpetuar. (Aqui podem ser incluídas intercessões por pessoas e por situações de injustiça do momento). Estamos aqui para interceder diante de ti pelo mundo. Pensamos nas pessoas que hoje não se encontram entre nos, que precisam trabalhar, por aqueles que não te conhecem, por aqueles que não podem orar (pelas crianças, doentes e moribundos) e por aqueles com os quais nós não vivemos em paz. Oramos por aqueles que determinam muitas coisas em nossa vida: por professores que se encarregam pela educação de nossos filhos: pelos médicos que cuidam de nossa saúde; pelos comerciantes e industrialistas que compram e fabricam para suprir nossas necessidades; pelos jornalistas, pelos engraxates, pelos políticos. Oramos também por aqueles que não têm nada a nos dizer: pelos pobres e velhos, pelos presos, pelos perseguidos por causa de suas convicções políticas que não são as mesmas daquelas pessoas que governam e determinam o rumo de nossas vidas. Oramos por nós mesmos que tão facilmente nos negamos a amar o nosso semelhante necessitado.
V – Bibliografia
– ALTMANN. W. Sacramentos — túmulo ou berço da comunida¬de In: Estudos Teológicos. Ano 20. Caderno 3. São Leopoldo, 1980
– BALZ. H R. Christus in Korinth. Kassel. 1970.
– KLESSMANN, gemeinschaft, gemeinsam, gemein. In: Biblisch Theologisches Handwörterbuch. Göttingen. 1954.
– WENDLAND, H.D. Die Briefe an die Korinther.In. Das Neue Testament Deutsch. Vol.7. 13. ed. Göttingen, 1972.