Prédica: Amós 5.21-24
Autor: Nelson Kilpp
Data Litúrgica: Domingo Estomihi
Data da Pregação: 21/02/1982
Proclamar Libertação – Volume: VII
I — O texto
V.21: Eu odeio, eu desprezo as vossas festas, eu não vou cheirar as vossas reuniões festivas.
V.22: (A não ser que me trazeis holocaustos —) As vossas ofertas eu não aceitarei, e o sacrifício dos vossos animais cevados nem vou contemplar.
V.23: Afasta de mim o ruído dos teus cantos, o som das tuas harpas não vou ouvir.
V.24: Em vez disso jorre como água o direito, e a justiça como um rio que não seca.
Por motivos de forma e conteúdo a primeira oração do v.22, colocada entre parênteses, deve ser considerada inclusão posterior de alguém interessado em excluir os holocaustos da condenação radical do profeta.
A delimitação do texto está clara. A temática dos versículos anteriores é outra. Os dois versículos que seguem retomam o tema sacrifícios, já encerrado com o v.24, vinculando-o à crítica (deuteronomística?) à idolatria, um tema estranho ao profeta. Talvez a palavra de repreensão vv.21-24 tenha culminado com o anúncio de desgraça do v 27. Por motivos teológicos, no entanto, não há necessidade de incluí-lo no texto de pregação.
II – A situação
Por volta de 760 a.C. o Reino do Norte, sob Jeroboão II (2Rs H ?3-29), atravessa um período de relativa paz internacional e de razoável progresso econômico interno. O comércio funciona a todo vapor (Am 85), a construção civil floresce (3.15), a busca pelo lucro fácil (8.5) e a exigência por mais luxo (3.15; 5.11; 6.4; 6.8) caracterizam a classe abastada, a viticultura se esmera e a criação de gado se especializa para atender à demanda dos ricos (4.1; 5.11; 6.4; 6.6), músicas novas surgem para animar as suas festas (6.5). Um subproduto deste progresso è a imoralidade (2.7).
A vida religiosa parece ser um espelho da vida econômica. Também as formas e instituições de culto atravessam um período florescente: as ofertas são mais gordas (4.4s; 5.21 s), as festas mais animadas pelos cantos e pela música instrumental (5.23). Tem-se a impressão de uma comunidade viva e participante.
Tudo isto, no entanto, é apenas um lado da moeda. O progresso econômico de uma classe está assentado no empobrecimento de larga camada da população israelita. Pequenos proprietários são desapropriados, endividados vendem-se como escravos para saldar sua dívida (2.6; 8.6), o direito é desrespeitado, testemunhas ameaçadas, juízes subornados (2.7; 5.10; 5.12). O bem-estar e o luxo têm um preço: a injustiça.
III — A crítica ao culto
O criador de gado e plantador de sicômoros (7.14) da localidade de Tecoa, no Sul, parece ser um israelita que sabe das coisas. Ele conhece a situação política dos povos vizinhos (1.13; 2.1; 6.2) e a situação social do Norte. Além disto, Amós traz, de seu ambiente natal, a influência da sabedoria do clã, que conserva as mais antigas tradições da fé israelita: a culpa de Israel reside no fato de que não sabe fazer o que é certo (3.10), os julgamentos nos portões estão corrompidos (5.10,12) e não mais garantem a igualdade dos membros da sociedade. No confronto desta antiga tradição de uma sociedade igualitária com a alarmante injustiça social atual o profeta è chamado por Deus.
Mui provavelmente os vv.21-24 foram proferidos no templo nacional de Betel (7.10-17), durante uma de suas concorridas festas cultuais. O profeta vale-se de palavras fortes para criticar o culto e a religião oficial: Eu odeio, eu desprezo as vossas festas. (v.21) Os encontros festivos e as celebrações religiosas eram vitais para a fé israelita: eles expressavam a unidade do povo sob um só Deus, lembravam os participantes dos grandes feitos deste seu Deus no passado, reforçavam a certeza de que eram o povo escolhido. Mas todas estas solenidades não conseguem agradar a Javé (cf. o termo cheirar com Gn 8.20s).
As ofertas de vinho, azeite, cereais (e gado?) trazidas ao templo — bem mais graúdas que as ofertas do culto de Ação de Graças — eram um sinal de agradecimento pela terra recebida de Javé (cf. Dt 14.22ss) e também um sinal de busca sincera por comunhão com Deus. Fazendo uso da liturgia da solenidade sacrifical, Amós interrompe o liturgo que deve declarar, através de um oráculo, se a oferta foi ou não aceita por Javé (cf. Ez 20.41; Ml 1.10). Invertendo as palavras na boca do liturgo, o profeta afirma, em nome de Deus: as vossas ofertas não aceitarei. Amós se parece com o pastor que, na liturgia da Santa Ceia, depois da confissão dos pecados, anuncia a condenação em vez da absolvição.
A solenidade do sacrifício de animais (cevados) encerrava com um ágape comunitário (nos holocaustos, pelo contrário, todo o animal era queimado no altar). Depois de a melhor parte (a gordura) ter sido consumida (queimada) pela divindade, os comensais iniciavam o banquete (1 Sm 2.13ss). Era indubitavelmente uma ocasião de comunhão entre irmãos na fé. Mas Deus nem se digna a dirigir um olhar em direção desta comunhão.
A mudança de tratamento (vós para tu) no v.23 é apenas formal. Os cantos e a música instrumental, principalmente da harpa, eram elemento indispensável para o louvor a Deus (ainda o são hoje). Amós não quer dar a entender que Deus não pode suportar os cânticos e as músicas por serem desafinados e ruins. Não há nada de errado na harmonia, como não há nada de errado com a maneira de trazer os sacrifícios e festejar as festas. Amós não pretende uma reforma litúrgica. A sua crítica ao culto é radical: a sua própria existência é questionada.
Em vez disso tudo, deve correr livre e ininterruptamente o direito e a justiça. A antiga tradição israelita, da qual provém o profeta, sabe de uma fé intrinsecamente amarrada a uma ordem social que garante direitos iguais a todos os membros da comunidade. Esta ordem era exercida na jurisprudência junto aos portões das localidades. Viver de acordo com as normas básicas desta ordem igualitária (direito) e justiça. Mas toda esta ordem social justa está sendo pervertida e pisoteada (5.7; 6.12); o que se empenha pelo reto exercício deste “direito é desrespeitado e a testemunha que diz a verdade nos julgamentos é calada (5.10); juízes são subornados a interpretar a igualdade em favor dos poderosos (5.12). As consequências estão na cara: o luxo de alguns às custas do empobrecimento de muitos.
Qual é o sentido do culto numa situação destas? Serve ele para sancionar a injustiça social? Ou para aliviar as consciências? Ou para dar a impressão de que com Deus tudo está bem? O profeta não pode divorciar o culto da vida, a fé da ordem social. A sua crítica ao culto é parte de sua crítica social, jurídica e política. A sabedoria do clã israelita (assim como do povo humilde de hoje) não tolera a dissociação entre culto e vida.
IV — Meditação
O texto é perigosamente atual. Como pregá-lo? Podemos dar uma de Amós e pregar do púlpito, em nome de Deus: eu odeio os vossos cultos e os vossos domingos, detesto a vossa liturgia luterana e o vosso aconchegante lugar de reuniões, abomino o vosso hinário novo, o som do órgão e os cantos dos vossos corais, tenho raiva dos vossos encontros, retiros e seminários, desprezo as vossas reuniões de estudo bíblico e os vossos programas de reavivamento da comunidade, as vossas festas e celebrações me irritam, as vossas dádivas, ofertas e contribuições generosas são inaceitáveis, os vossos ofícios religiosos e as vossas Santas Ceias me dão náuseas? Podemos pregar isto depois de nos termos esforçado para trazer os membros ao culto e à participação ativa na comunidade? Não significaria isto colocar em cheque todo o nosso trabalho pastoral de décadas e a própria existência de nossos cultos? É hora de refletir isto com a comunidade? Talvez seja. Uma coisa é vital nesta reflexão: nós, os pregadores, devemos estar conscientes de que principalmente nós estamos incluídos nas duras palavras do profeta (cf. 7.10-17). Isto impede de falar de boca cheia e dedo em riste: Deus odeia tudo o que vocês fazem.
O mais importante, a meu ver, é deixar claro por que Amós critica toda a atividade cultural e religiosa. A verdade é que também os nossos cultos, celebrações, solenidades, reuniões de estudo podem tornar-se uma alienação. Os nossos belos cantos, as novas liturgias que buscam uma participação mais ativa da comunidade, a nossa comunhão de irmãos podem ser uma busca por segurança para nós mesmos e, sem dúvida, uma tentativa de receber a aprovação divina pelo que somos e fazemos em nossas vidas, sancionando um status quo de opressão e injustiça. Os generais do Pentágono são bons membros de suas comunidades. Eles fazem questão de participarem ativamente nos programas comunitários. Aí o culto é fuga e farsa. Aí não adianta mais nenhuma reforma do culto ou de sua liturgia. As bases da fé é que estão carcomidas.
Mas isto não precisa ser assim. O próprio Amós nos mostra que pode ser diferente. O profeta recebeu influência decisiva de tradições religiosas — transmitidas evidentemente em alguma forma de culto — que, no entanto, não concordavam com o culto e a religião oficial. Mas foi em sua fé que Amós encontrou os elementos para criticar a sociedade, a jurisprudência, a política e o culto de sua época. Também a nossa fé — alimentada por cultos — fornece elementos de libertação e transformação (C. Mesters falaria em memória subversiva). Jesus sempre tomou o partido dos fracos e marginalizados. O sábado foi santificado pela cura de uma pessoa com a mão ressequida (Mc 3.1-6).
O erro de Israel foi que os seus cultos e celebrações nada mais tinham a ver com a realidade (ou tinham?). Culto e vida transformaram-se em duas esferas autônomas e distintas. A comunidade cristã, no entanto, não é fim em si mesma. Ela é sempre, ao mesmo tempo, EKKLËSIA e DIASPORA: chamada para fora do mundo e enviada, espalhada no meio dele. Não há maneira de a comunidade cristã escapar da responsabilidade de batalhar por direito e justiça no mundo, sem correr o risco de vender a sua própria consciência.
As pregações protestantes sobre Am 5.21-24 têm acentuado a interiorização da fé em contraposição aos cultos, solenidades e sacrifícios meramente externos (cf. o titulo da tradução de Lutero: O mero culto exterior em nada ajuda). Daí os insistentes apelos a uma fé verdadeira. Parece-me, no entanto, que não é esta a intenção da crítica profética ao culto. Amós não combate, por exemplo, a religiosidade popular que adorava Javé de maneira não reconhecida pelo templo central de Jerusalém, quando teria motivos suficientes para tal (cf. a opinião do Deuteronomista sobre a introdução do bezerro no templo de Betel em 1Rs 12.28ss). Não são as formas exteriores do culto nem a falta de fé subjetiva do povo que são condenadas, mas o desastre do povo escolhido em viver de acordo com a opção de Deus pelos fracos (2 9s) na sociedade, na economia, no comércio, na jurisprudência e na vida particular.
Parece que o profeta não mais vê nenhuma chance de arrependimento do povo. A decisão de Deus está tomada, a destruição virá, não há mais retorno. (Ou trata-se apenas de anúncio de juízo e destruição para os poderosos, como 4.11 s,14s; 5.4,14; 6.1-7; 7.11,17; 9.8 parecem indicar?) De qualquer maneira, depois de Jesus Cristo não mais podemos falar de juízo irreversível para todos, negando toda e qualquer chance de arrependimento. É legitimo, portanto, deixar fora o v.27 (como foi legítimo, no passado, incluir, além dos vv. 21-27, também os vv. 4-6 e 14s).
Uma sugestão de figura para a pregação: Um navio está indo a pique, mas os seus passageiros não o sabem. O programa de bordo desdobra-se sem incidentes, em festiva, mas perigosa rotina. O mar agitado, o rombo no casco não conseguem interromper as festividades. Mas isto não muda a triste realidade: o navio, de fato, está indo a pique Que se diria de alguém que interferisse nesta gostosa rotina e gritasse todos vão afundar?
V — Subsídios litúrgicos
A liturgia deverá ser sóbria. Creio que não caberiam inovações e mudanças neste culto. Cabe uma confissão de culpa sincera da comunidade: por haver-se preocupado somente com seus cultos, ofícios e solenidades, esquecendo-se dos que por ela esperam; por não ter sempre tomado o partido do fraco; por ter fugido tantas vezes da responsabilidade de testemunhar a liberdade concedida por seu Senhor no mundo; por ter-se preocupado com sua própria felicidade, segurança e bem-estar; por ter esquecido que sua tarefa é congregar, mas também enviar: pela sua arrogância diante dos que dela não participam; pelas desculpas que sempre encontra para não comprometer-se. Há a possibilidade de pregar o texto por ocasião de uma festa da comunidade (comunhão fraterna, mas descomprometida?) ou no culto de Ação de Graças (agradecimento pela sociedade afluente?)
Os cantos deveriam espelhar uma sincera confissão de culpa. O texto se dá muito bem ao trabalho em grupos. O povo é capaz de entender muito bem a temática e, sem dúvida, vai trazer contribuições de grande valor para a vida da comunidade.
Na oração de coleta creio que devemos lembrar a caminhada de Jesus em direção à cruz e principalmente o fato de que a comunidade nunca conseguiu (e conseguimos hoje?) entender bem esta opção de Deus pelo caminho que passa pelo sofrimento.
Para a intercessão lembramos os que não são aceitos na comunidade os que a própria comunidade marginaliza: as comunidades cristãs em todo mundo que procuram a justiça; os que buscam um modo de vida coerente com o Evangelho.
VI — Bibliografia
– KIRST. N. Amós — textos selecionados. In: Exegese. Vol.1. São Leopoldo. 1981.
– WOLFF, H.W. Dodekapropheton —- Joel und Amos. In: Biblischer Kommentar Altes Testament. Vol. 14/2. Neukirchen/ Vluyn. 1969.