Prédica: Apocalipse 1.9-18
Autor: Joachim Fischer
Data Litúrgica: Último Domingo após Epifania
Data da Pregação: 31/01/1982
Proclamar Libertação – Volume: VII
NÃO TEMAS!
I — A situação
O Livro do Apocalipse foi escrito provavelmente pelo fim do governo do Imperador Domiciano (81 — 96). Seu tema é o conflito entre a comunidade cristã e o estado da época, o Império Romano, ditatorial e arbitrário. O conflito surgiu em torno do culto ao imperador. Esse culto abrangia toda uma liturgia de glorificação do imperador, como se este fosse um deus todo-poderoso. O próprio estado servia-se dessa religião para seus interesses políticos. Atribuía-lhe a função de unir a população do vasto Império, de etnias diferentes, de garantir a segurança do estado e de assegurar a lealdade dos cidadãos. A comunidade crista, no entanto, confessava Jesus Cristo como seu único Senhor e Salvador. Conseqüentemente, não podia reconhecer o estado e seu representante máximo como valor último. Era inevitável o conflito com as autoridades civis, militares e religiosas, com as ideias sobre a segurança do estado, com a ordem existente, com o conformismo geral, ditado pela falta de discernimento e pelo medo compartilhado aparentemente também peio povo (imagine cenas semelhantes à descrita em At 19.24-32).
O Apocalipse pressupõe essa situação de conflito entre a comunidade cristã e o estado. Já houve perseguições e execuções (6.9-11). Haverão de sobrevir à comunidade sofrimentos e conflitos muito mais sérios ainda, até de vida ou morte (cap. 13): será derramado o sangue das testemunhas de Jesus (6.11; 16.6; 17.6; 18.24).
II — A mensagem
A mensagem profética de João, o autor do Apocalipse (que não é idêntico ao autor do quarto evangelho e das cartas), pode ser resumida nas palavras: Não temas! João mostra com clareza toda a gravidade do conflito que a comunidade está por enfrentar. Com a mesma clareza aponta para as consequências do conflito. Mas não sugere à comunidade resignação nem conformismo nem entreguismo. Coloca tudo na perspectiva escatológico-apocalíptica: em breve Cristo acabará com as falsas exigências do estado quanto à sua ordem social, política, econômica; assim porá um fim ao sofrimento dos cristãos. A expectativa viva desse fim fortalece a comunidade em sua atitude crítica frente a realidade em que vive. de modo que pode continuar resistindo aos políticos totalitários e arcar com as consequências, o sofrimento. A parte central do Apocalipse (caps. 12-14) mostra que a luta com os poderes das trevas (o estado) é necessária. Em meio aos ataques dos poderes anticristãos, a confissão de fé Senhor é Jesus deve ser mantida, mesmo que signifique sofrimento e morte. A comunidade pode ficar confiante: a vitória final pertence a Deus e Cristo. Nesse sentido o profeta pode proclamar: Não temas! Venceremos!
Martim Lutero também destaca esse aspecto em seu prefácio no Apocalipse, do ano de 1530: Podemos aproveitar e usar muito bem este livro. Primeiro, para nosso consolo: nenhuma violência nem mentira, nenhuma sabedoria nem santidade, nenhuma aflição nem sofrimento podem sufocar a cristandade; ela, no fim, vencerá e triunfará. Segundo, este livro serve como advertência contra o grande escândalo, pluriforme e perigoso, na cristandade. Contra ela luta um poder aparentemente muito grande. Ela, porém, aparentemente não é nada, porque nela há tantas aflições, ideias erradas e outras fraquezas. Por isso a razão irrita-se com a Igreja… O diabo pode esconder a igreja cristã sob escândalos e divisões, para que te irrites com ela. Também Deus pode escondê-la sob fraquezas e faltas, de modo que fiques bobo e chegues a conclusões erradas… Resumindo, nossa glória está em Cristo; não está no mundo, diante dos olhos de todos, como qualquer mercadoria. Cor isso não te escandalizes com escândalos, rupturas, heresias e fraquezas. Se a palavra do Evangelho permanecer pura conosco e se a valorizarmos devidamente, não devemos duvidar da presença de Cristo uniu; nós e conosco…, assim como vemos neste livro que Cristo, apesar do tudo, está com os seus e no fim vencerá.
Ill — Observações exegéticas
Em 1.9-18 João relata a visão em que foi chamado por Cristo para sua missão. De maneira semelhante profetas do Antigo Testamento relataram seu chamamento (Is 6; Jr 1; Ez 1-3). Num domingo João experimenta um êxtase (v. 10a). Tomado pelo Espírito de Deus, pode ver mistérios inescrutáveis aos outros. Tem uma audição (vv.10b-11) e uma visão (vv.12-16). Segue mais uma audição (vv.17-20). Vê o Cristo exaltado (um semelhante a filho de homem, cf. Dn 7.13) que governa o uni¬verso juntamente com Deus. A língua humana é incapaz de expressar toda a realidade desse Cristo vitorioso. Por isso João usa comparações. Aproveita imagens e expressões que, em grande parte, tira do Antigo Testamento. Com todas elas aponta para o poder, a majestade e a superioridade de Cristo. Este está vestido com vestes talares, como o sumo sacerdote, e cingido com uma cinta de ouro, como o rei (v.13). Os pés firmes e a voz forte (v.15) lembram Dn 10.6 e Ez 43.2. A espada de dois gumes (v.16) significa que Cristo é o juiz. Nada lhe fica escondido. Todos devem prestar-lhe contas. As sete estrelas (v.16) talvez sejam a constelação da Ursa Menor, tida como símbolo de poder e dominação em geral ou como símbolo da dominação universal dos governantes do Império Romano. João diz, através da imagem, que Cristo é o Senhor do universo; não, os poderes deste mundo. No v.20, que não pertence mais à perícope, o próprio João interpreta as sete estrelas como os anjos das sete comunidades mencionadas no v.11. Quem são os anjos? Não há certeza. Alguns acham que são os bispos das comunidades. Outros pensam em algo como anjos da guarda que representam e protegem suas respectivas comunidades. Os sete candeeiros no meio dos quais Cristo se encontra (vv.12-13), significavam, originalmente, talvez sete estrelas. Mas João interpreta-os como as sete comunidades (v.20). Afirma que Cristo está presente no meio de suas comunidades, apesar de todas as falhas que apresentam e que são criticadas nas mensagens dos caps.2-3.
A visão tem um efeito praticamente mortal sobre o profeta (v.17a~, cf. Dn 10.9-11). Já no Antigo Testamento o homem sente-se como um nada diante da santidade de Deus (Gn 32.31; Êx 33.20; Is 6.5). Na verdade, porém, o encontro com Cristo significa a verdadeira vida, não a morte. As palavras de Cristo nos vv.!7b-18 são a mensagem central da perícope. Cristo, identificando-se com Deus, proclama-se vencedor sobre os poderes das trevas, da morte e do inferno, isto é, sobre os poderes mais malignos e mais destrutivos que podemos imaginar. Por isso os cristãos não precisam temer mais nem a morte. Não temas ! é uma mensagem frequente no Antigo Testamento, embora muitas vezes num contexto diferente (cf. Kirst).
O que o profeta João vê, é essencialmente uma mensagem para as comunidades. Ele é expressamente autorizado como mensageiro. Duas vezes lhe é dada a ordem explícita de transmitir sua mensagem (vv. 11 e 19). As sete cidades (v. 11) eram comarcas e sedes de autoridades governamentais, consequentemente também centros do culto ao imperador. Por isso haveria nesses lugares inevitavelmente graves conditos das comunidades com o estado.
Quando João teve sua visão-audição, encontrava-se na ilha de Palmos numa espécie de prisão preventiva ou cautelar. A prisão fora motivada por sua pregação (v.9b). As autoridades temiam, como pareço, que a pregação do Evangelho pudesse levar a motins entre a população. A visão não transformou João num solitário, como muitas vezes aconteceu com profetas do Antigo Testamento. Ele é solidário com os irmãos, suportando com eles o que os atinge de fora (tribulação), tornando uma atitude firme frente a tais golpes (perseverança), esperando pelo que há de vir (Reino). O caminho para o Reino de Deus passa por tribulações que exigem firmeza e resistência (v.9a).
IV — A prédica
Na prédica, a mensagem Não temas! pode ser desenvolvida um quatro passos, como segue.
1. Chamamento: João, profeta e autor do Apocalipse, faz uma experiência singular. Tem um encontro com o Cristo ressurreto, o Senhor sobre todos os poderes. É chamado por Cristo como seu mensageiro junto ao povo. O acontecimento é decisivo para toda a sua vida. Atinge-o profundamente. Da história conhecemos outros cristãos que também tiveram seu encontro pessoal com Cristo, cada um à sua maneira, como Agostinho, Martim Lutero, o pietista August Herrmann Francke, o metodista John Wesley. O encontro sempre foi sentido como libertador, determinando os rumos de suas vidas. Também entre nós, hoje, pode haver cristãos que sentem intensamente a presença do Custo vivo num determinado momento de sua vida. Talvez nem possam dizer com muita clareza o que experimentaram. Para outros, suas experiências podem parecer bastante estranhas. Por quê? Cristo, o Deus presente no mundo, não se deixa prender dentro dos padrões do nosso dia a dia. O que fica claro é que ninguém recebe tais revelações para si mesmo, como indivíduo, isolado dos outros. Quem for chamado por Cristo, o é como irmão e companheiro, como membro da comunidade, em prol de todos. Em última análise, o encontro pessoal com Custo nem é o privilégio de apenas alguns escolhidos. Cada cristão é chamado, cada um de nós — primeiramente no Batismo, depois incessantemente no encontro com a palavra e com o corpo e sangue de Cristo. Cada cristão, meditando sobre sua vida, certamente poderia falar de determinados momentos em que sentiu de maneira especial a presença, a força, o poder, o conforto de Cristo. Assim nós somos chamados, aceitos, marcados.
2. Medo: Para o profeta João o encontro com Cristo é mortal. O medo o faz cair como morto. Hoje, geralmente não sentimos mais desta maneira a proximidade de Cristo. Contudo, estamos acostuma-dos a ver que pessoas ficam fora de si e caem por terra, quando o deus desce. Acontece nos terreiros de Umbanda, por exemplo. E em toda a nossa sociedade o medo é uma realidade. Muitas coisas causam medo: doença, solidão, desemprego, assaltos na rua, falta de recursos para levar uma vida digna, desrespeito aos direitos humanos mais elementares, violência, injustiça, domínio da lei do mais forte. Temos motivos de alimentarmos medo de nós mesmos, do nosso Eu incalculável, cujo egoísmo causa medo aos outros, O medo destrói. Onde reina o medo, há briga, agressão, violência, morte. Não pode haver mais confiança, paz, amor. Dizem que os brasileiros são cordiais, dispostos a ajudar, atenciosos. Mas a sociedade como um todo parece trilhar um caminho em que esses valores e atitudes são progressivamente destruídos.
3. Encorajamento: Num mundo cheio de exercício brutal do poder, cheio de medo e de morte, Cristo revela-se como o poder da vida. A fé nele dá coragem e força para nadar contra a correnteza, para enfrentar os poderes destrutivos, para resistir ao mal em todas as suas formas, sejam elas pessoais, institucionais ou sociais. Não temas! Não resignes! Não te acomodes! São imperativos da fé cristã. Não visam apenas o consolo. Cristo, tirando nosso medo, possibilita uma vida de fé ativa. Encoraja expressamente para tal vida. Não somos poderosos em termos políticos. Mas o poder político ou econômico não é um valor último e único. Há o poder da fé que age, que supera o medo pelo amor — amor a Deus, a Cristo, à vida, ao próximo. Transparece suficientemente em nossas comunidades o poder do Cristo ressurreto, sua vitória sobre a morte, nossa coragem de fé?
4. Anúncio: O profeta João recebeu a missão de transmitir aos outros a mensagem de Cristo. Essa cabe hoje à comunidade como um todo. Ela vive para os outros. Diante dos indivíduos, da sociedade e do mundo ela denuncia os poderes que amedrontam as pessoas. Ela anuncia a palavra de Cristo que é a palavra da vida e do amor; anuncia a vinda do Reino de Deus; anuncia a libertação dos poderes do medo. Em nossa sociedade os números valem muito (por exemplo, os números referentes ao crescimento da indústria e da produção). Mas muitas vezes o preço que deve ser pago por este tipo de crescimento é muito alto. Pessoas são pisoteadas por um progresso unilateral. Justamente por causa disso têm medo. Em meio a essa realidade, a comunidade cristã é porta-voz de outra realidade: a realidade do Reino de Deus, do Cristo ressurreto e vitorioso, de uma vida digna, humana, de respeito mutuo e de amor. Não temas! é a mensagem que ela recebe de seu Senhor. Não temas! é também a mensagem que ela transmite e procura viver.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Nosso Deus, Senhor sobre a vida e a morte. l tu luas mãos entregamos todos os nossos pecados. Temos medo, onde devemos mostrar coragem. Somos passivos, onde devemos agir. Conformamo-nos i om injustiça, violência e destruição, onde devemos resistir ao mal. Pensamos om nós mesmos, onde devemos cuidar do nosso irmão. Mas confiamos na palavra do teu Filho Pedimos liberta-nos do medo, da passividade, do conformismo do egoismo. Perdoa todos os nossos pecados. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Ó Deus, nosso Pai celestial, que deste vida e poder a teu Filho. Pedimos que nos dês olhos, ouvidos e corações abertos, para que percebamos em meio à realidade do medo e da morte a realidade da coragem e da vida, iniciada na cruz e ressurreição de Cristo. Permite-nos ouvir nesta hora tua palavra poderosa. Em nome de Jesus Cristo, nosso Senhor, que venceu o modo, a morte e todos os poderes do mal. Amém.
3. Assuntos para intercessão na oração final: Pedir que a Igreja seja um sinal do Reino de Deus, que não seja covarde frente às pressões dos poderosos, mas apoie tudo que fomenta a vida; pedir que no mundo os que governam tenham em mente o bem-estar de todos, que os poderosos não abusem do poder que lhes foi dado, que os fortes não se esqueçam que estão debaixo do Senhor dos céus e da terra: pedir que entre nós sejam fortalecidos os perseguidos por causa de sua fé e de seu testemunho, que encontrem proteção os assustados o desesperados, que perseverem os que resistem às tentações do poder.
VI — Bibliografia
– GOLLWITZER, H. Meditação e prédica sobre Apocalipse 1.9-18. In: Göttinger Predigtmeditationen. Ano 58. Göttingen, 1969/70.
– KIRST. N. Nas pegadas de um gênero — Não temas! na tradição da Guerra Santa. In: Estudos Teológicos. Ano 10. São Leopoldo, Caderno 2.1970.
– LILJE, H. Das letzte Buch der Bibel. In: Die urckristliche Botschaft, Vol. 23. 4.ed. Hamburg, 1955.
– LOHSE, E. Die Offenbarung des Johannes. In.Das Neue Testament Deutsch. Vol.11. 10.ed. Göttingen, 1971
– TRAUB, H. Meditação sobre Apocalipse 1.9-18. In: Hören und Fragen. Vol. 41 Neukirchen, 1975.