Prédica: Apocalipse 2.8-11
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: Penúltimo Domingo do Ano Eclesiástico
Data da Pregação: 14/11/1982
Proclamar Libertação – Volume: VII
I — Preliminares
O Apocalipse de João é, para muitos, um livro bastante estranho. Com frequência é deixado de lado como se não servisse para o nosso tempo. Encontra-se dificuldade com as visões e com os símbolos. De fato, do começo até o fim, há uma profusão de símbolos, números e visões. Será que tudo isso não está alienado da realidade na qual vivemos? Quem sabe, a saída é mesmo deixar este livro para as seitas?
Penso que precisamos, urgentemente, recuperar a mensagem preciosa que este livro encerra. Exatamente hoje ela pode ser de inestimável valor. O Apocalipse de João não quer motivar especulações, mas trazer uma mensagem de esperança para uma época de perseguição. Ele quer manter no povo oprimido a mística realista da fé e a resistência contra as forças opressoras (Mesters, p.32). De modo geral, apocalipses surgem quando a fé de uma comunidade è posta em dúvida pela violência dos fatos que ocorrem e parecem tudo determinar. É neste contexto que deve ser entendida a linguagem simbólica que é uma característica dos apocalipses, também do último livro da Bíblia.
A linguagem simbólica é mais popular do que intelectual. Mesters diz que é mais evocativa do que teórica. São evocados os grandes temas que marcaram a caminhada do povo no passado. É evocado o que animou o povo nesta sua caminhada. Além disso, o símbolo tem a propriedade de revelar e de esconder, ao mesmo tempo. Apocalipse quer exatamente dizer revelar. Mas a revelação se dá para quem tem olhos para ver. Para os demais ela esconde. Em épocas de perseguição, a linguagem simbólica surge espontaneamente. Hoje também. Por exemplo: Fazenda Modelo de Chico Buarque de Holanda. É que a linguagem demasiadamente clara é perigosa e pode dar prisão. Os cristãos eram bons, mas não eram bobos. A linguagem simbólica é uma forma de se defender contra a opressão e de manter viva a resistência. (Mesters, p.32)
As referências que fizemos já indicam como o último livro da Bíblia quer ser entendido. Quer ser consolo na perseguição. Tem o propósito de trazer mensagem de esperança. Esta queremos ouvir.
E. Lohse no seu comentário ao Apocalipse de João traz diversos exemplos de como este livro foi interpretado ao longo da história. Não podemos, aqui, analisar essas diversas maneiras de interpreta¬ção. No espirito de PROCLAMAR LIBERTAÇÃO uma tentativa de leitura a partir dos oprimidos parece ser a mais promissora.
II — Contexto
O nosso trecho é uma das sete cartas dirigidas a comunidades da Ásia Menor. Em Ap 1.4 lemos: João, às sete igrejas que se encontram na Ásia. Aí vemos que o livro todo é entendido como carta dirigida às sete igrejas (= comunidades). Mas em Ap 2.1 – 3.20 trata-se de cartas especificas para cada uma das igrejas mencionadas. São. porém, concebidas e redigidas como partes do escrito maior. Elas obedecem a uma estrutura bem determinada. Após o endereço, dá-se uma apresentação daquele que fala. Os predicados atribuídos ao Senhor exaltado podem reaparecer no decorrer de cada carta. No centro delas se encontram o louvor (este falta em relação a Sardes e Laodicéia) e a repreensão, tenho, porém, contra ti… (esta falta no caso de Esmirna e Filadélfia). Segue um convite para o arrependimento e o anúncio do juizo. A exortação para o ouvir e a promissão para os que permanecem fiéis finalizam as cartas. Quanto às comunidades, Mesters as caracteriza assim: São do tipo das que hoje vivem numa situação muito semelhante: perseguidas, contestadas, sofridas, fracas, cheias de problemas e tensões internas, com gente pobre e oprimida, sem gabarito … São sete pequenas comunidades, perdidas no mar da vida e no mundo da história, que procuram aguentar firmes, apesar do vento contrário e apesar das próprias fraquezas. (Mesters, p.33)
III — Observações exegéticas
Logo de salda se coloca uma questão que já deu muita dor de cabeça aos teólogos. Nos endereços de todas as sete cartas encontra-se a expressão: Ao anjo da igreja em … escreve. Seriam estes anjos os lideres das comunidades, os bispos? Esta è a opinião de Barth (p.602). Em situações especificas homens são os mensageiros de Deus. Em vista dessa autoridade a eles conferida, tem que se dizer que é um anjo que fala e age através de uma tal pessoa. Conforme E. Lohse, porém, a designação anjo para dirigentes e bispos é incomum. O que se tem em mente são anjos mesmo. Havia uma tradição muito antiga, segundo a qual cada comunidade tinha o seu anjo que a representava. Mas, quando a palavra é dirigida ao anjo, então é dirigida também à comunidade toda. (Lohse, p.22) E isso, afinal, é o que importa.
Vejamos a situação da comunidade de Esmirna. Encontra-se em pobreza. Isto contrasta com a riqueza da cidade de Esmirna, que alcançou prosperidade e poder devido a atividades comerciais muito expressivas. Além da pobreza da comunidade, é mencionada a tribulação. THLIPSIS pode ser traduzido por perseguição. Os cristãos de Esmirna são escarnecidos e odiados por judeus. Estes, porém, com a sua condenável conduta, jogam fora seu honroso nome de judeu' Com o seu procedimento mostraram que não são povo de Deus, mas sinagoga de Satanás.
O que chama atenção é que todas essas coisas — perseguição, pobreza, blasfêmia — desaparecem diante do imponente OIDA. Conheço a tua situação. O nosso olhar é dirigido para o inicio que importa; é dirigido para aquele que é o primeiro e o último, que esteve morto e tornou a viver (v.8). Ele é o sujeito! Ele conhece a tribulação da sua comunidade. Nele se pode confiar, a ele os cristãos sempre se podem confiar. Quase se tem a impressão de que este seria o momento para finalizar. A mensagem está transmitida. Tudo está resolvido.
Mas, não nos precipitemos.,O texto continua. Ele aponta para uma sensível piora da situação. Virá sofrimento ainda maior. O diabo está para lançar em prisão alguns dentre vós. Aqui, mais uma vez, se evidencia a estreita relação que existe entre discipulado e sofrimento, discipulado e cruz. Somos seguidores do Cristo sofredor, daquele que esteve morto, que foi crucificado. Em todos os tempos, aceitar isso causou dificuldade. Não é assim que facilmente nos escandalizamos com o Cristo sofredor? E, com isso, indiretamente, queremos fugir do sofrimento que o próprio Senhor espera de nós. Num capitulo muito rico e profundo, Bonhoeffer trata desse aspecto em seu livro Discipulado. O imperativo do sofrimento é extensivo aos discípulos, é extensivo a nós, hoje. Assim como o Cristo somente é Cristo quando sofredor e rejeitado, assim também o discípulo somente é discípulo quando sofredor e rejeitado, crucificado com Cristo. O discipulado como união com a pessoa de Jesus Cristo coloca o discípulo sob a lei de Cristo, ou seja. sob a cruz. (Bonhoeffer, p.43) É o que se lê em Mc 8.34: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz, e siga-me. A cruz é um sofrimento necessário. Pelo fato de pertencermos a Cristo, ela faz parte da nossa vida. Não é preciso procurá-la. Isto, no meu entender, seria uma maneira de falsificar o tome a sua cruz. Esta já está preparada para cada cristão. Para que ninguém pense que tem que sair à procura de uma cruz qualquer, seja onde for, ou que tem que procurar voluntariamente o sofrimento, Jesus diz que existe uma cruz já preparada para cada um de nós, uma cruz a nós destinada e atribuída por Deus. (Bonhoeffer, p.44) Aceitar o sofrimento é vencer o sofrimento. É uma maneira de esquecer-se a si mesmo. Esquecer-se a si mesmo é entregar-se, é quebrar o circulo gerador de toda a violência.
Suportar o sofrimento é carregar. Não penso em carregar como se tratando de uma desventura ou de um peso. O sofrimento que advém da união com Cristo é um sofrimento solidário. Sim, suportando os sofrimentos, cada cristão, cada comunidade cristã, também a comunidade de Esmirna, expressa sua solidariedade com os homens. Bem-aventurados os que choram — Lutero traduz: os que suportam sofrimento — porque serão consolados. (Mt 5.4)
Em meio a toda a tribulação, olhar firmemente para ele, o primeiro e o último, que esteve morto e tornou a viver, não é fugir da realidade. A mensagem de consolo do eu conheço a tua tribulação, a tua pobreza … remete a uma vivência solidária. Não temas leva a resistir na luta e a não abandoná-la. Claro, em tudo que dissemos ficou pa¬tente que não se pode tratar de qualquer atitude de heroísmo. Trata-se, muito antes, de uma atitude de fé que brota do eu conheço — não temas! Além do mais, a tribulação é passageira. Chegará o dia em que ela deixará de existir. Fala-se, no nosso texto, em uma duração de dez dias. A duração dos tempos difíceis será determinada por Cristo mesmo. O ódio humano poderá provocar o sofrimento que o Senhor permitir. Isto é alentador. ËMERÕN DEKA, em todo o caso, designa um curto período.
Expressamos a mesma convicção quando cantamos:
Todo o tormento e sofrimento, toda a desgraça da terra passa.
Tereis tribulação de dez dias. Ódio e perseguição não terão a última palavra! Por isso tudo, sê fiel até à morte. Esta fidelidade tem o seu fundamento na fidelidade daquele que diz conheço a tua tribulação e que promete dar a coroa da vida. Com toda a certeza, ele a dará! DOSO. Conforme Lohse, coroa da vida não é a coroa conferida em competições esportivas ou para honrar homens que se fizeram merecedores por um ou outro motivo. Aqui se manifesta uma concepção judaica, segundo a qual os fiéis serão ornados com uma coroa luminosa, reluzente (cf. 3.11; 4.4,10; 12.1; 14.14). Os fiéis recebem a dádiva da vida plena. O vencedor de nenhum modo sofrerá dano da segunda morte. (v.11) Pela morte como final da vida terrena todos precisam passar, mas os vencedores têm parte na vida eterna.
Essas últimas afirmações nos são um tanto estranhas. Dissemos que o Apocalipse de João quer ser mensagem de esperança para o aqui e agora. Mas não se aponta, no final do nosso trecho, para a eternidade no além? Aí surge uma grande dificuldade de interpretação. Parece-me que somente sairemos dela se observarmos que eternidade não é um conceito da física, mas é um conceito religioso. Eternidade não é tempo ilimitado, mas a dimensão divina que envolve o que conhecemos por tempo. Eternidade também não é um espaço, mas a dimensão da plenitude divina. Dessa forma, podemos relacionar o Eterno com nossa vivência diária, com o nosso compromisso histórico. Quem espera na convicção de não passar pela segunda morte, ou seja, quem espera não ser excluído da eternidade é remetido para a vida. O lema dos que contam com a eternidade de Deus, não é fuga do mundo, mas serviço ao próximo, solidariedade, sofrer solidário. Isto tudo acontece na convicção de que há um alvo colocado por Deus para os homens, para a história da humanidade. Virá o dia em que Deus será tudo em todos (1Co 15.28).
IV — Comunidades perseguidas hoje
O Apocalipse de João foi dirigido às sete igrejas que estão na Ásia (1.4). Mas hoje comunidades vivem situações muito semelhantes ás descritas no último livro da Bíblia. Contesta-se amplamente a visão com que a fé cristã encara a realidade. Há perseguição. Há opressão de gente que se solidariza com os fracos. Acontece um constante ata¬que ao comportamento nascido do ser cristão. Cristãos são blasfemados. Tudo isso ocorre no nosso meio, nos nossos dias. Com muita propriedade, Mesters observa que hoje seria: Escreve o que vês num livro e envia-o às sete comunidades: a Cacimba Nova, Serrote Branco, Pitombeira, Uruama, Tacaimbó. Monsuaba, Ariró. (Mesters, p.33) Recentemente esteve entre nós, a convite da Faculdade, o bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, dom Pedro Maria Casaldáliga. Ele falou como Jesus optou por seus irmãos. Optou pelos pobres, vitimas da opressão e da miséria; pelos ricos, vitimas do lucro e do conformismo. Os que seguem a Cristo assumem a mesma atitude. Tomam a mesma opção. Com isto tornam-se vulneráveis. O ódio dos privilegiados certamente os atingirá. As comunidades do Araguaia são perseguidas. Dom Pedro é perseguido. Mas cristãos tomam a sua cruz e confiam na promissão de Deus, contam com a vida que não acaba.
Poderíamos citar o exemplo de cristãos luteranos no Chile que não defenderam interesses privados, mas se comprometeram com os interesses daqueles que não são de interesse para ninguém. Houve grupos cristãos que, após o golpe militar contra Salvador Allende, ensaiaram uma pastoral de solidariedade com os oprimidos. Não tardou o confronto com os opressores. Não tardou a perseguição. O próprio bispo Helmut Frenz foi um exemplo disso. Vieram dias de tribulação. Para ficarmos mais próximos do que acontece nas nossas cercanias: solidarizar-se com os colonos de Ronda Alta pode ser perigoso. Enfim, onde uma comunidade é fiel ao Cristo sofredor, ela deve contar com dura perseguição!
V — Tarefa da prédica
A mensagem de consolo que perpassa toda a pericope Ap 2.8-11 deve ser levada de maneira insofismável aos membros das nossas comunidades. Tudo, porém, o que for dito tem um centro: Jesus Cristo. Nele está a fidelidade que possibilita sermos fiéis até o fim. É a partir dele que nada precisamos temer. É nele que está ancorado o não temas as cousas que tens de sofrer (v.10). No mais, não se pode fomentar, direta ou indiretamente, uma fuga para um além distante.
É no compromisso com o irmão, no sofrimento solidário, que se tem parte na eternidade, que não se sofrerá dano da segunda morte. E, por fim, é preciso ter cuidado especial com a interpretação do tão conhecido e tão abusado versículo sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida.
VI — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, tu não buscaste o poder, tu não procuraste a riqueza, tu não visaste aplauso. Tu te tornaste homem. Senhor, constantemente esquecemos isso. Buscamos honra e glória. Nem notamos que te traímos, ao abandonarmos o irmão à sua própria sorte. Perdoa-nos, Senhor. Fugimos do compromisso com tua causa. Temos medo. Medo de sermos perseguidos. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Deus, nosso Pai, tu queres falar conosco. Nós queremos te ouvir. Fortalece a nossa fé. Renova em nós a certeza que teus pensamentos são de paz e que tu amas toda a tua criação. Amém.
3. Oração final: Vivemos em um mundo sedento de justiça e paz. Dá-nos torças para lutarmos contra injustiças, contra circunstâncias adversas, contra lágrimas e desespero. Ensina-nos a confiarmos em ti somente. Dá-nos a certeza de que nos males e tormentos tu nos queres assistir em todos os momentos. Às nossas autoridades concede que vejam sua missão de proteger os que não são de interesse para ninguém. Fortalece a tua Igreja que sempre de novo traqueja e tem dificuldade de se renegar a si mesma.
VII — Bibliografia
– BARTH, K. KirchlicheDogmatik. Vol.lll/3. Zürich, 1961.
– BONHOEFFER, D. Discipulado. São Leopoldo, 1981.
– LOHSE, E. Die Offenbarung des Johannes. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol.11. Göttingen, 1971.
– MESTERS, C. A coragem da fé. In: Tempo e Presença. N°153. Rio de Janeiro, 1979.
– OBENDIECK, H. Meditação sobre Apocalipse 2.8-11. In: Herr, tue meine Lippen auf. Vol.4. 5.ed. Wuppertal-Barmen, 1965.
– SCHLATTER, A. Die Offenbarung des Johannes, In: Erlauterung sum Neuen Testament. Vol.3. Stuttgart, 1921.