Prédica: Gálatas 2.16-21
Autor: Kjell Nordstokke
Data Litúrgica: 11º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 22/08/1982
Proclamar Libertação – Volume: VII
I — Considerações iniciais
O texto é fundamental para a doutrina da justificação peia fé, e especialmente o v. 16 é um trecho ao qual Lutero sempre voltou. Com Rm 1.16-17 e Rm 3. ele forma as pedras angulares do ensinamento da justificação pela fé. Nota-se, por exemplo, que, somente no v. 16, é dito três vezes que o homem não é justificado por obras da lei.
De outro lado temos, nos vv. 19-20, uma expressão muito profunda da comunhão com Cristo na sua morte e ressurreição. Bengel chama estes versículos summa ac medulla christianismi.
Com um texto como este, o pregador tem a excelente possibilidade de expor a doutrina da justificação pela fé à sua comunidade. Uma prédica temática poderia ser recomendada nos casos em que a comunidade é, seguidas vezes, exortada a viver a fé, mas raramente é convidada a refletir sobre o fundamento da fé e da relação entre lei e Evangelho.
De outro lado, o próprio contexto (veja III) convida a uma reflexão sobre a critica que esta doutrina da justificação pela fé provoca ,seja por parte de uma espiritualidade que coloca o peso no comportamento religioso do crente, seja por parte de um ativismo que exige coerência com a vida social.
Seria também necessário analisar o que significam em nosso contexto, hoje, expressões como justificado, obras da lei, morrer para a lei'', viver para Deus.
II — O texto
O texto não apresenta sérios problemas.
No v.16 há uma dúvida sobre se deve ser lido Cristo Jesus ou Jesus Cristo, as duas vezes. No v.20 há uma tentativa de tornar a leitura mais compreensível (THEOU KAI CHRISTOU): provavelmente traía-se de uma variante secundária. Ficamos, portanto com o texto de Nestle.
III — Contexto e escopo
A questão mais crucial é a da ligação da nossa pericope com os vv. 11-14 e com a controvérsia entre Paulo e Pedro em Antioquia. Uns veem o v.15 como o inicio de um novo parágrafo com uma nova preocupação. Outros acham que os vv.15-21 são a fundamentação teológica do posicionamento crítico que Paulo assumiu em Antioquia, Seria ir longe demais entender os vv.15-21 como um tipo de ata do discurso que Paulo proferiu face a face (v.t 1). Contudo, considero bastante provável que Paulo, no conflito com os judaistas na Galácia, ache oportuno referir-se ao acontecimento de Antioquia, primeiro para mostrar que este conflito não é desconhecido, mesmo para os apóstolos, e, segundo, para indicar as consequências impossíveis de tal posição judaista.
Da perícope indicada está excluído o v.15. No preparo da prédica, este versículo é importante, pois indica toda a problemática do texto, assim como se tornou visível em Antioquia: há um outro caminho para os judeus — que não são considerados pecadores como os gentios — alcançarem a justificação? Será que a tradição judaica em si tem valores que não devem ser anulados e, sim, pregados junto com o Evangelho? Esta seria a posição dos judaistas. Não importa se são realmente judeus ou helenistas influenciados pela cultura judaica. Eles condenam a pregação de Paulo, dizendo que é um transgressor a destruir sua própria cultura, inspirada pela revelação divina.
O texto é, acima de tudo, uma defesa contra este ataque, ao frisar que a justificação pela fé é fundamental tanto para o judeu quanto para o gentio (v.16), e que a consequência desta pregação não é um desinteresse pelo pecado e pela vida com Deus (vv.17-20). A consequência da posição dos judaistas seria atribuir valor apenas parcial ao sacrifício de Cristo: ou, com as palavras de Paulo: Cristo morreu em vão (v.21).
IV — Considerações exegéticas
V.16: A palavra DIKAIOUTAI é ressaltada por sua posição no inicio da frase.
É a palavra chave: como pode o homem chegar a ser declarado justo? Nega-se a possibilidade de uma justiça EX ERGÕN NOMOU, mas afirma-se DIA PISTEÕS CHRISTOU IESOU, pela fé em Cristo Jesus (gen. obj.). A justiça da qual se trata é aquela que vale perante Deus (coram Deo), e que é inacessível aos homens, mesmo com a presença da lei e a observância da mesma. A justiça é sempre uma justiça alheia, recebida gratuitamente. A fé é o risco de referir-se exclusivamente a Cristo. Ela, no entanto, não representa mais uma obra ou mérito do homem, pois não é a fé como produção humana que justifica, mas a dialética entre negação própria e confiança em Cristo: em Cristo que, no Evangelho, me dá fé nele próprio, cf. Rm 1.17 (de fé em fé).
PASA SARX, toda carne, é um hebraísmo e inclui todos, judeus o gentios (cf. Rm 3.20). Há aqui, também, uma referência à afirmação do salmista no Si 143.2.
V.17: EURETHÊMEN, fomos achados, pode ser entendido de duas maneiras: como uma referência ao momento em que aceitaram a lê em Cristo, ou à situação quando ignoraram as determinações referentes ao rito de purificação em Antioquia. A primeira alternativa me parece mais provável, mesmo se acreditarmos numa vinculação do nosso trecho com o conflito de Antioquia, uma vez que a situação básica do crente está em jogo. Partindo daí, Paulo investe contra uma falsa conclusão que se costuma tirar: é certo que nós somos achados como pecadores, mas isto não quer dizer, de modo algum, que Cristo é ministro do pecado!
V 18 Este versículo deve ser entendido como uma ilustração desta mesma realidade. A possibilidade de ser justificado pela lei é uma construção teológica que a fé elimina e destrói. Seria absurdo voltar a esta construção agora, depois de ter aceito a fé. Aliás, não seria somente absurdo, como também significaria abandonar e transgredir o fundamento da fé.
V. 19-20: Para mostrar que a doutrina da justificação pela fé não leva a uma compreensão de Cristo como ministro do pecado, Paulo aborda a vida do cristão como uma comunhão vivencial com o seu Mestre. O morrer pela lei não é somente o afastar-se de méritos e boas obras assim como a lei exige. É, muito mais, a libertação da condenação e também da visão umbilical à qual a lei leva (incurvatus in se). Em vez disto, a justificação pela fé proporciona uma vida para Deus, marcada por Cristo, por sua morte e ressurreição. Esta identificação total com Cristo não deve ser compreendida em termos místicos, mas antes como uma referência ao Batismo. Pois o Batismo não significa simplesmente a justificação passiva do crente, mas é também o ponto de partida para o discipulado, a saber, a vida com Cristo.
V.21: A introdução de obras da lei junto com a pregação de Cristo e coisa muito grave: é nada menos que anular a graça de Deus e invalidar a morte de Cristo com elementos de uma justiça própria.
V — A caminho da prédica
A problemática da justificação pela fé tem atualidade ainda hoje? Na documentação preparatória para a Assembleia Geral da Federação Luterana Mundial, em Helsinki (1963), foi colocada a pergunta: Será que o homem do século XX também é atormentado pela procura de um Deus misericordioso? E, se não for, a justificação pela fé deixou de representar uma resposta existencial à angústia do homem moderno?
Devemos fazer a mesma pergunta em nossas comunidades. Parece-me que também hoje sentimos uma necessidade de justificar as nossas vidas, o nosso estilo de vida, a nossa posição social, a nossa falta de engajamento em favor do próximo, etc. Esta nossa tendência de querer justificar-nos não é feita só perante a sociedade (coram hominibus), mas também perante Deus (coram Deo).
Parece uma ironia que, exatamente quando procuramos a justi¬ficação, eliminamos muitas vezes a própria justiça! Devemos como pregadores, cuidar para não cair na mesma armadilha. Mas, ao mesmo tempo, é também necessário sublinhar que, na linguagem bíblica, a palavra justiça só é compreensível quando ligada a Deus e ao seu Reino. E o próprio Deus que dá conteúdo à justiça, e o termo justificação pela fé expressa a maneira em que ele vem ao nosso encontro com o seu Reino e a sua justiça, e nos incorpora nesta realidade.
Quando nós falamos de justiça, referimo-nos normalmente aos nossos anseios por uma sociedade mais justa. A justiça que Deus nos da em Cristo vai além das nossas expectativas humanas. Isto. porque eia é dada na fé e não conquistada, e também porque seus frutos têm outra qualidade do que a nossa imaginação pode criar. Acima de tudo. a justiça de Deus nos presenteia com as relações certas — com Deus e com o próximo; assim, surgem relações paternais, filiais e fraternais, onde antes havia rebelião, escravidão e exploração.
Numa sociedade onde as relações dependem de produção e utilidade, a pregação de justificação pela fé é uma linda expressão da graça e misericórdia de Deus. E, num mundo religioso no qual se propaga um desenvolvimento ascendente, ao longo de uma escalada progressiva através de exercícios e práticas, é mister lembrar que perante o justo permanecemos todos iguais: como devedores dependendo da sua graça.
2. Se na comunidade dos gálatas havia pessoas que corriam o risco de anular a graça de Deus, devemos nos perguntar se hoje também existe este perigo. Estaria acontecendo que alguma lei ou a observância de tal lei vem sendo colocada acima ou ao lado do sacrifício de Cristo, como fundamento da salvação. Lei não precisaria necessariamente significar a observância das leis cerimoniais do AT, mas outras condições às quais ligamos a nossa autenticidade cristã.
Pode, por exemplo, ser um ativismo que exige uma certa espiritualidade, e que critica a doutrina da justificação pela fé, argumentando que ela leva a um falso sacramentalismo, a uma fé ex opere operato que não deixa nada para a decisão do homem. Neste contexto, termos como conversão e santificação podem facilmente se tornar novos mandamentos de uma lei tão violenta quanto a dos judaistas.
Há mais um outro ativismo que pode, com a mesma veemência, criticar a doutrina da justificação pela fé. Este exige um engajamento ativo do cristão na realidade política e social em que vive, e condena o quietismo que passifica o cristão e o faz esquecer sua tarefa de lutar por um mundo justo. Aqui a lei toma um rumo totalmente diferente, mas no fundo a consequência é a mesma. A existência cristã deixa de se fundamentar exclusivamente na morte de Cristo e na graça de Deus.
A prédica deveria mostrar como a comunidade tende a construir novos sistemas de leis que tentam anular a graça de Deus.
3. No meio da proclamação da justificação pela fé há a proclamação da identificação vivencial do cristão com Cristo na sua morte e ressurreição. E neste ponto que reside o argumento contra um quietismo u responsável, e também contra a acusação de que Cristo é o ministro do pecado. A identificação portanto, não é sentimental, nem imitatória, mas parte da pregação e dos sacramentos, onde Deus na sua graça nos incorpora ao seu Reino e, por meio do seu Espírito, nos equipa para sermos discípulos e testemunhas da sua justiça.
Gl 5.22-23 menciona as virtudes do cristão, e não é por acaso que são chamados fruto do Espírito. Da mesma forma, temos, por exemplo, em Cl 3, a lista da vestimenta do novo homem que nasce no Batismo a imagem de Cristo.
Onde a justificação pela fé é proclamada, cabe também esta pregação da ligação existência! entre o descansar na fé e o viver para Deus que se dá na vida comprometida com Cristo.
VI — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Santo e misericordioso Deus. Tu queres saber sobre a justiça, não somente a justiça em gerai, mas também a nossa justiça, a minha justiça. Confessamos que a nossa justiça é imperfeita E, em vez de admitirmos isto, tentamos tantas vezes fugir da nossa realidade, justificando-a. Mas tu és justo. Pedimos que tu venhas ao nosso encontro com a tua justiça para nos justificar e nos livrar dos nossos pecados e da nossa culpa. É o que suplicamos por meio de Jesus Cristo, o nosso justo Salvador. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Acabamos de ouvir o anúncio da tua graça e que tu justificas aquele que crê em Jesus Cristo. Queremos te agradecer que tu nos deste esta fé no Batismo e que nos conservaste nesta fé até hoje. E pedimos: fortifica-nos na fé para somente confiarmos em ti e em tua justiça. Amém.
3. Leitura: Lc 18.9-14.
4. Assuntos para intercessão na oração final: por todos que têm dificuldades de fé: dá-lhes a convicção de que a fé é dádiva e graça; por todos que têm uma falsa segurança na fé: lembra-lhes que Cristo não é ministro do pecado, mas Senhor da vida comprometida com ele; por todos que confiam em suas obras e em tudo aquilo que eles são e têm: ilumina-lhes os corações com o teu Espírito para que depositem toda a sua confiança somente em ti e em tua justiça.