PrĂ©dica: IsaĂas 61.1-3,10,11
Autor: Hans Alfred Trein
Data LitĂşrgica: 2Âş. Domingo apĂłs Natal
Data da Pregação: 03/01/1982
Proclamar Libertação – Volume: VII
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I — Considerações exegéticas
TritoisaĂas Ă© somente a denominação de uma coleção de acrĂ©scimos ao Livro de Isaias, proveniente de diferentes mĂŁos e de Ă©pocas diferentes, provavelmente anunciada e escrita no Ăşltimo terço do sexto sĂ©culo antes de Cristo. O anĂşncio de salvação nos caps. 60 – 62 Ă© o cerne da coleção de TritoisaĂas.
O povo está de volta na Palestina. As profecias nĂŁo falam mais de ansiedade por libertação e regresso. Elas se voltam para circunstâncias precárias na vida comunitária: pesados inconvenientes, circunstâncias catastrĂłficas de injustiça social (57.1ss) e um governo falho (56.9ss). (von Rad, p.290) TritoisaĂas se debate com um povo de pequena fĂ© (59.1ss) que continuamente estraga seu relacionamento com seu Deus por meio de injustiça e culto vazio (58.1ss), que desacredita, cheio de razĂŁo, a benevolĂŞncia de Deus.
O EspĂrito do Senhor JavĂ© (está) sobre mim Ă© uma analogia ao primeiro cântico do Servo Sofredor (42.1 ss), com paralelo de proclamação de juĂzo em Mq 3.8. Unção Ă© consagração para um ministĂ©rio constante, empregada, sobretudo para o rei. Unção, na nossa passagem, Ă© procuração, autorização, uma expressĂŁo cerimonial para envio. Tanto quanto sabemos, trata-se da Ăşltima vez na histĂłria de Israel que um profeta anuncia de modo tĂŁo livre e seguro a convicção de ter sido o por Deus com uma mensagem ao povo.
O profeta nĂŁo Ă© apenas enviado ao povo em geral, mas especificamente aos oprimidos, aos que sofrem necessidade material e malogro espiritual; nĂŁo Ă© pressuposto tratar-se dos humildes, fiĂ©is a JavĂ©. (Schwantes, p. 183) Os pobres, miseráveis, oprimidos, estĂŁo na lista das tarefas profĂ©ticas. O resumo da tarefa do profeta, levar a boa nova aos oprimidos, precede tudo como um tĂtulo geral. Is 61.1ss fala dos pobres do presente, ao contrário de DeuteroisaĂas. A convicção de ter sido enviado por Deus se torna tanto mais peculiar, considerando-se que Tritoisaias se entende como enviado especificamente aos oprimidos dentro do povo. Esse anĂşncio de salvação, conciso e claramente estruturado, pressupõe a queixa coletiva desses oprimidos.
O profeta se tornou evangelista que efetiva a boa nova da mudança na situação dos oprimidos, atravĂ©s do seu anĂşncio (como um mĂ©dico anuncia o domĂnio sobre uma epidemia; como o carcereiro avisa aos presos sua soltura). Sua tarefa consta exclusivamente de um falar. Nesse anunciar, porĂ©m, e atravĂ©s dele, deverá fazer surgir uma nova maneira de conduzir-se, naqueles a quem Ă© enviado. Anunciar salvação Ă©, portanto, quase tanto como publicar, realizar salvação. A festa já pode começar.
A tradução de Almeida para o termo ANAVIM — quebrantados — é insuficiente e tendenciosa; induz a subentender pessoas que necessitam de consolo e aconselhamento individual. ANAVIM é uma caracterização social e por isso se traduz melhor com o termo oprimidos.
O ano aceitável do Senhor nĂŁo se refere ao regresso do exìlio. Refere-se originalmente Ă prática da reestruturação social, de sete em sete anos, e, em especial, no 50° ano (Lv 25): perdĂŁo de dĂvidas, anistia, reforma agrária… É provável que o sentido, nesse contexto, esteja mais prĂłximo do que entendemos por Reino de Deus. Todo o capĂtulo nĂŁo tem em vista a revolução escatolĂłgica, senĂŁo o já encontrar-se dentro da salvação. Os oprimidos estĂŁo dentro da salvação.
O dia da vingança do nosso Deus pode estar relacionado com aqueles de pequena fé que praticam a injustiça e o culto vazio, que rejeitam o braço estendido de Javé, sobre os quais virá horrendo juizo. São os mesmos que excluem outros do acesso a Deus(Mt 23.13), ao mesmo tempo em que sentem a ausência da resposta de Javé (58.3).
II — Pregar
O EspĂrito do Senhor está sobre mim nos constrange a buscar a legitimidade da nossa pregação.
Por um lado, a Igreja se baseia na formação curricular de teologia. NĂŁo sĂł a direção da Igreja se apoia nos exames resultantes de perĂodos regulamentados de estudo, para começar a falar em ordenação e envio, como tambĂ©m as comunidades querem saber sobre a capacitação regulamentada de seus pastores. A tendĂŞncia Ă© considerar o mĂ©dico um especialista em assuntos de doença, o mecânico um especialista em máquinas, o pastor um especialista em assuntos de fĂ©, religiĂŁo, Deus. A legitimação exclusiva que ocupou quase todo o espaço da autoridade para a pregação Ă© o estudo regulamentado, a aprovação assinada por professor/doutor.
Por outro lado, grassa dentro desse modelo altamente profissionalizado de legitimação o seu oposto negativo, um fanatismo espiritualista e conversionista. Nesse oposto negativo a legitimação para pregar se baseia na conversão à própria imaginação do que seja Evangelho.
Os legitimados pelo estudo lembram muito a classe sacerdotal e de levirato, ou ainda os profetas de emprego fixo na corte. Os legitimados, por seu fanatismo conversionista lembram muito os fariseus, ingĂŞnuos sustentadores espirituais da ideologia dominante.
O bondoso Pai nĂŁo permitiu que o Evangelho fosse afogado em meio a todas essas pretensões de legitimação. Deus nĂŁo apostou na sabedoria elitizada nem na conversĂŁo auto-sugestionada, mas revela o seu Evangelho aos pequenos oprimidos (Mt 11.25). O EspĂrito de Deus está sobre aquele que deve declarar aos chefes, sacerdotes e falsos protelas a sua transgressĂŁo (Mq 3.8s). Deus colocou o seu EspĂrito sobre o Servo Sofredor (42.1ss) — um representante do povo oprimido, visto atravĂ©s dos Ăłculos da cristologia (Lc 4.18ss) — senĂŁo atĂ© sobre o prĂłprio povo oprimido que, com seu sofrimento e abandono, haverá de converter os opressores. Por isso Ă© necessário, antes de tudo, ouvir. Modo parecer absurdo dizer isso a quem tem a tarefa de pregar. No entanto, a busca pela legitimidade permanece.
A pregação dentro de uma instituição eclesiástica estruturada da chances ao pregador de saber-se ungido pelo EspĂrito de Deus, para legitimar o anĂşncio de boas novas aos oprimidos? Dentro de nossa prática de pastores de igreja, prática em grande parte levĂtica, temos chance de aguçar nossa sensibilidade para a proclamação da graça aos oprimidos? Nossa tradição, sustentada por uma teologia de manutenção, tende a acomodar a pregação como ensino. Existe possibilidade de anĂşncio — como o de um mĂ©dico que avisa ao doente sua cura, como o de um carcereiro que avisa aos presos sua soltura — anĂşncio como esse do texto? Compreendo o seu possĂvel protesto; mas entendo que um auxĂlio homilĂ©tico nĂŁo serve para acomodar o leitor Ă pregação rotineira.
III — A quem pregar
O anĂşncio da boa notĂcia tem um alvo. Como tĂtulo geral, o alvo sĂŁo os oprimidos. Os endereçados das boas notĂcias sĂŁo ainda especificados os de coração quebrado, os cativos, os algemados, os que choram, os que estĂŁo de luto. Na verdade, temos trĂŞs endereços especificados os de coração quebrado, os cativos, os algemados. O choro e o luto sĂŁo consequĂŞncias e manifestações dessas trĂŞs situações.
Ter o coração quebrado Ă© estar morto. O profeta pode estar pensando em ressurreição. Acredito que esteja pensando naqueles mortos vivos que perambulam por aĂ como cadáveres requentados, ou seja, aqueles que já resignaram, cuja esperança nĂŁo Ă© mais que um pavio que fumega, aqueles que, contaminados pelo vĂrus da ideologia dominante, numa sensação de absoluto abandono, consideram a sua misĂ©ria material e espiritual, seu sofrimento, um castigo de Deus.
Estar cativo Ă© estar sem autonomia. Diz-se que o Brasil Ă© mercado cativo de alimentos pelos Estados Unidos — que por isso nĂŁo tĂŞm nenhum interesse em que haja reforma agrária e produção de alimentos no Brasil —, mercado cativo de eletro-eletrĂ´nicos e aparelhos domĂ©sticos pelo JapĂŁo — que freia com pressĂŁo econĂ´mica as iniciativas industriais brasileiras no setor. Os paĂses dominadores repartem entre si os mercados cativos — paĂses subdesenvolvidos, dominados — numa sofisticada e modernizada divisĂŁo de despojos. Cativos sĂŁo os trabalhadores em regime de semi-escravidĂŁo em algumas fazendas da AmazĂ´nia — as quais pagam o salário minguado dos trabalhadores com moeda prĂłpria(l), obrigando-os assim a comprar nos armazĂ©ns da fazenda. Cativa Ă© toda a mĂŁo-de-obra nĂŁo qualificada. Os analfabetos e os de pouca instrução sĂŁo facilmente manipuláveis. Cativos sĂŁo os Ăndios da FUNAI e de ávidos interesses capitalistas. Cativos sĂŁo os agricultores do preço dos insumos e implementos e do preço de seus produtos, ditados por estranhos. Cativos sĂŁo os bĂłias-frias do trabalho sazonal que arrebenta suas famĂlias e cria alcoĂłlatras arruaceiros. Cativos sĂŁo os de mente embotada pela Rede Globo de TelevisĂŁo e pela propaganda. Cativo Ă© o sindicato dos operários, atrelado ao MinistĂ©rio do Trabalho com poder de intervenção. Cativas sĂŁo as cooperativas com sua coleção de prĂ©-requisitos anticooperativistas, atreladas ao INCRA com poder de intervenção…
Estar algemado Ă© estar de mĂŁos amarradas. É estar amordaçado por uma prisĂŁo polĂtica ou pelo exĂlio. Os algemados estĂŁo na condição de espectadores angustiados. Os algemados sĂŁo os que tĂŞm condições, vocação, desprendimento, abnegação, para participar na construção de uma sociedade mais justa e fraterna, mas estĂŁo proibidos, trancafiados; algemados sĂŁo os pequeninos irmĂŁos de Mt 25.31 ss, sem voz, sem vez, nos quais Jesus Cristo está presente.
Você terá muitos outros exemplos. Quem são os oprimidos que estarão sentados nos bancos de sua igreja no domingo? É mister anunciar a estes a eliminação das causas do seu choro e luto.
IV — O que pregar
Anunciar boas novas aos oprimidos. Restaurar a esperança aos resignados, restaurar a autonomia aos cativos, livrar a participação aos de mĂŁos amarradas, estabelecer o tempo da justiça e da paz, avisar a hora do juĂzo de nosso Deus, transformar o luto em resplandecĂŞncia e o choro em riso de alegria, exultação em vez de angĂşstia — indo isso pressupõe conhecer profundamente a queixa coletiva dos oprimidos. Deus está apostando nos oprimidos para serem os esteios da justiça para a sua glĂłria. Os oprimidos sabem o que está errado na sociedade dos humanos, pois eles o sentem na prĂłpria carne. Talvez nĂŁo consigam formular em linguagem acadĂŞmica, e certamente desenvolveram uma linguagem simbĂłlica e codificada prĂłpria que um ouvido cientĂfico Ă© incapaz de compreender.
Diz-se que o Evangelho é para todos. De fato o é! A diferença, no entanto, reside em que a realidade vista através da janela de um Ford Landau é outra que aquela vista por entre as grades de uma cadeia. O ano aceitável do Senhor para os oprimidos significa o dia da vingança para os opressores. Os escolhidos de Deus são os fracos, desclassificados, marginalizados. Esse é o escândalo da cruz. Como é que Deus foi apostar nessa gente?! Talvez seja para nós tolice Deus querer construir o seu Reino com essa gente. Talvez pensemos assim por que estamos de fora.
É preferĂvel anunciar essa graça para as paredes a justificar mesmo em tom de sussurro o espĂrito e a atitude dominadora dos promotores da misĂ©ria, que se autodenominam progressistas.
V — SubsĂdios litĂşrgicos
1. ConfissĂŁo de pecados: Deus misericordioso, trazemos para diante de ti nossa prática de injustiça, nosso culto por isso vazio, nossas omissões, nossa ilusĂŁo com poder, prestĂgio, bens e propaganda. Estamos continuamente rejeitando teu braço estendido, estamos desviados da procura pela justiça e pelo teu Reino em primeiro lugar. Tem piedade de nĂłs, Senhor!
2. Oração de coleta: Amado Senhor, tu nĂŁo tens necessidade de nĂłs. Mas nĂłs precisamos de ti e de teu Santo EspĂrito constantemente presente. Revela-nos tuas intenções conosco. Deixa-nos depois ir para casa abençoados, consolados, atingidos por tua palavra e abalados em nossa existĂŞncia. Dependemos de tua bondade, cujo nascimento mais uma vez festejamos neste Natal.
3. Assuntos para a oração final: agradecimento pela palavra, pela revelação aos pequeninos (Mt 11.25), referência ao nascimento de Jesus, anunciado aos pastores de ovelhas, reforço de Deus aos pequeninos oprimidos para que continuem nos mostrando o caminho da justiça e da paz: ouvidos e coração abertos, de parte da comunidade, para que se deixe fermentar pela salvação dos oprimidos: desprendimento para procurar uma ordem estrutural mais justa.
VI — Bibliografia
– PAURITSCH.K. Die neue Gemeinde: Gott sammelt Ausgestossene und Arme. Rom, 1971.
– VON RAD.G. Theologie des Alten Testaments. Vol.2. MĂĽnchen, 1968.
– SCHWANTES. M. Das Recht der Armen. Heidelberg, 1974.
– WEISER.A. Einleitung in das Alte Testament. Göttingen, 1966.
– WESTERMANN.C. Das Buch Jesaja — Kap. 40-66. In: Das Alte Testament Deutsch. Vol.19. Göttingen, 1966.
Sugestão para leitura complementar: GALEANO.E. As veias abertas da América Latina, 6a ed. Rio de Janeiro, 1979.
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