Prédica: Jeremias 9.22-23
Autor: Harald Malschitzky
Data Litúrgica: Domingo Septuagesimae
Data da Pregação: 07/02/1982
Proclamar Libertação – Volume: VII
I — Considerações preliminares
É necessário alertar logo de inicio para o fato de que a numeração dos versículos não é igual em todas as traduções da Bíblia. Enquanto que na Bíblia Hebraica o texto está nos vv.22-23, ocorrendo o mesmo com a tradução de Lutero, tanto a tradução de Almeida quanto a conhecida Zürcher Bibel apresentam o texto nos vv.23-24.
Não há problemas de tradução ou variantes que pudessem ser dignos de maior discussão; o texto é claro.
Todo o cap. 9 do Livro de Jeremias, especialmente o trecho dos vv.9 a 25, é uma coleção de ditos de juízo contra o povo de Israel, de um juízo que chega a ser cruel e violento. Justamente os vv.22 e 23 parece que estão fora deste contexto, à margem do conteúdo restante do capítulo, pois em lugar de anunciar juízo, eles são uma advertência, um desafio, um convite. Entretanto, embora não haja uma ligação aparente entre estes versículos e o restante do texto, sem dúvida eles apontam para algumas das razões que levaram o povo a se desgarrar de Deus, o que está muito bem resumido nas seguintes palavras: … deixaram a minha lei, que pus perante eles, e não deram ouvidos ao que eu disse, nem andaram nela. (v.13) Dentro desta perspectiva de afastamento total de Deus e de sua lei, os vv. 22-23 parece que apontam para formas bem concretas de o homem voltar-se contra Deus na medida em que se volta para si mesmo.
II — O texto
V. 22: Aqui são caracterizadas três áreas — muitas vezes interligadas! — em que o homem facilmente se deixa enredar para viver e curtir a própria vida: sabedoria, poder (força) e riqueza.
A sabedoria é aquela que se orgulha de si mesma e que é usada como arma contra o outro, para manter o outro sob controle, para pressionar o outro. Saber é poder, diz o ditado. Poder sobre outros, um poder escravizante, que tortura e que destrói. Não é por menos que em nossos dias fatias generosas de orçamentos dos países são destinadas à espionagem, a fim de evitar que o outro saiba alguma coisa que possa ser um poder ameaçador.
Sem dúvida, trata-se também — no texto — do saber religioso une se coloca diante de Deus farisaicamente, não para lhe pedir graça e perdão, mas para lhe pedir méritos.
Poder corrompe — uma expressão conhecida, embora sempre se diga isso do outro. O exercício do poder, sempre que não estiver a serviço do outro, sempre que estiver a serviço próprio, do próprio lucro, dos planos particulares, é corrupção. Uma das passagens muito elucidativas está em 1 Rs 21.1-16, texto conhecido como A vinha de Nabote. E a vida de todos os dias apresenta exemplos a cada passo, dois dos quais cito a titulo de melhor compreensão do texto. O governador do Estado do Paraná, Ney Braga, está promovendo uma verdadeira guerra na TV, através de anúncios de suas realizações nos dois anos de seu governo. O alvo é bem claro: manter o poder em suas mãos também no futuro. O segundo exemplo: Um prefeito de uma cidade do Oeste Paranaense esteve presente à assembleia da APAE (Associação de Cais e Amigos dos Excepcionais), e ameaçou, sem rodeios, não repassar as verbas destinadas à entidade pela LBA (Legião Brasileira de Assistência), caso a assembleia não votasse na candidata apresentada pui ele, uma ilustre desconhecida. Também aqui o alvo é claro: estruturar toda uma sociedade a fim de manter o poder e demonstrar sua força. Mas, o poder que corrompe se manifesta também nas famílias e nos pequenos grupos sociais. Daí Israel estar diante de uma realidade para a qual o profeta só tem ditos de juízo, pois o poder que se orgulha de si mesmo, que é usado em causa própria, corrompe. Por isso, não se glorie o forte de sua força, o poderoso de seu poder.
Assim como o poder, também a riqueza, quando tem um fim em si mesma, corrompe, sobretudo pela falsa segurança que ela tende a insinuar, pois a riqueza compra amigos e mata inimigos, compra silêncio o falsos testemunhos (cf. 1 Rs 21.8ss; Lc 12.13-21).
As três grandezas, sabedoria, poder e riqueza, facilmente se tornam instrumentos de orgulho e corrupção, o que sempre se manifesta contra o semelhante, transformando-o em objeto de uso e exploração. Esta realidade, ao lado de outras, transparece por detrás de todos os ditos de juízo. Trata-se da realidade do homem que, a partir de seu orgulho e da ideia de que agora é auto-suficiente, se distancia de Deus e com isso — automaticamente — de seu semelhante, o que é o início do fim, o inicio do caos.
V.23: Deus, através de seu profeta, apresenta uma alternativa para que o homem se salve, colocando no centro o gloriar-se em Deus. Este gloriar-se em Deus significa conhecer a Deus e tomar a sério a sua realidade. É interessante que, em meio a uma coletânea de anúncios de juízo, vamos encontrar novamente o Deus da misericórdia que luta por sua criatura, que sempre tenta ganhá-la e mostrar-lhe o caminho de uma vida plena. A Deus, e não ao homem, cabem a glória e a honra, porque em suas mãos estão a justiça e a misericórdia, o que equivale a dizer que em suas mãos está a verdadeira chance de vida e sobrevivência para o ser humano.
III — Meditação
Quase poderíamos dizer que existe uma espécie de aliança entre o poder, o saber e a riqueza. E o mundo parece que se estrutura sempre mais neste trinômio. Poucos têm o saber, poucos têm o poder e poucos têm a riqueza. E, calcados nisso, estes poucos tentam usar os homens e o mundo para si mesmos. Um exemplo desta estruturação é o que nós, pais, costumamos dizer aos nossos filhos para incentivá-los a estudar, estuda que amanhã você ganha um bom emprego. Aliás, todo o sistema de ensino em nosso país parece que segue nesta direção. O aluno aprende mecanicamente para si e a serviço próprio.
Neste contexto, porém, é necessário lembrarmos um outro saber muito em voga entre cristãos, também na IECLB: o saber das coisas da fé. Com que facilidade se desenvolve o farisaísmo de estar por dentro das coisas da fé, de ter, pois, a fé mais correta e de, em consequência, ter mais chances do que o outro, também frente a Deus. Este orgulho mascarado de fé cristã e enfeitado de palavras piedosas é tão perigoso como todos os outros orgulhos e sabedorias, pois tanto um quanto o outro se fecham em si mesmos e se distanciam do semelhante e também de Deus. O orgulhoso da sabedoria e a respeito das coisas da fé é aquele que julga não mais necessitar da misericórdia e do perdão de Deus.
Já citei dois exemplos concretos do que se faz com o poder e pelo poder. Algo semelhante ocorreria também dentro da Igreja? Quantas vezes nós, pastores, usamos o poder de que nos julgamos investidos para manter os membros calmos e quietos, para manter a situação sob controle. A ameaça de trocar de comunidade, porque na IECLB existem muitas vagas, é, sem dúvida, um desses falsos e perigosos exercícios de poder. Quantas vezes presbíteros usam o seu poder para forçar decisões e planos. Quantas vezes, em nossas famílias, usamos o suposto poder para ditar normas pelas quais os demais familiares deverão guiar-se. Tudo isso cria escravidão, para nós e para os outros, pois também quem exerce o poder em causa própria é escravo do medo constante de, mais dia menos dia, perder este poder. Em comunidades muitas vezes se luta pelo poder na localidade, especialmente nos pequenos lugares. Mesmo quando se diz que a fé não tem nada a ver i:orn a política, há um tremendo empenho para abocanhar privilégios de mando muito humanos e temporais. E qual não é o orgulho quando urna comunidade evangélica está por cima na localidade e desfruta de Ioda sorte de privilégios e isenções! O poder corrompe e cega, também cristãos e comunidades inteiras.
Não é por nada que Jesus adverte as pessoas sobre as riquezas. Mas, ele fala direta e claramente sobre a dificuldade de o rico entrar no Reino de Deus (Mt 19.16ss). Não é por nada que Tiago precisa criticar o tratamento especial e de destaque dado aos ricos na comunidade (Tg 2.1 ss) e faz advertências muito sérias ao poder de corrupção do vil metal (Tg 5.1ss). Apenas a titulo de ilustração lembro aqui as grandes reportagens acontecidas em 1980, em revistas como Veja e Isto é, dando cobertura ao casamento do ano (filha de Ibraim Sued) que custou a ninharia de mais de 20 milhões de cruzeiros, ou falando dos novos ricos da agricultura, especialmente os do Mato Grosso. Ao mesmo tempo, porém, se reservam espaços bastante minguados para os agricultores sem terra ou em fase de expropriação, valendo o mesmo para todos os miseráveis desta terra.
Mas, seria barato e simples demais atirar pedras somente em outros. Não será um desejo de todos nós chegar a este ponto de riqueza. Não estamos constantemente na luta por mais sabedoria, por mais poder, por mais fortuna? E não é verdade que nesta caminhada já tentamos nos separar do outro, já dividimos, marginalizamos e esquecemos a solidariedade?
Deus propõe uma inversão das coisas. Propõe uma vida em que ele é Senhor de fato e de direito e, portanto, critério de toda uma vivência esta vivência se tornou concreta na pessoa de Jesus Cristo, na solidariedade com o mais fraco, livre do egoísmo e portanto livre para o outro Esta proposta de vivência é um desafio, um desafio cada vez mais estranho dentro de um mundo marcado pela concorrência e pela competição fratricidas.
IV — A caminho da pregação
O pregador encontrará sempre exemplos do nosso mundo, em que o texto cai como uma luva. Gloriar-se da sabedoria, do poder e da riqueza, tornando-se assim auto-suficiente diante dos homens e diante de Deus, não é novidade alguma. Mais difícil será — porque exige atenção o observação — encontrar situações na própria comunidade e aleitar para o risco que todos nós corremos a cada momento. O texto nos ajuda a encontrá-las e a desmascará-las. Aqui vale o conselho de Karl Barth, de ter em uma mão a Bíblia e em outra, o jornal.
A partir do Deus Criador e pai de Jesus Cristo, Senhor do mundo e dos homens, o qual compete aos cristãos proclamar, temos que lançar o desafio de uma violência centrada em Deus e seus critérios de vida.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, confessamos diante de ti e de nossos irmãos que muitas vezes nos orgulhamos daquilo que sabemos, nos orgulhamos de poder mandar, nos orgulhamos de tudo aquilo que temos e somos. Mas em tudo isso nos esquecemos de ti e nos esquecemos do irmão que colocas ao nosso lado. O nosso orgulho nos cega e nos torna insensíveis. Tudo isso. Senhor, nos afasta de ti e do nosso semelhante. Pedimos-te, perdoa o nosso pecado e guia-nos nos caminhos de tua vontade. Tem piedade de nós. Senhor!
2. Oração de coleta: Deus, nosso Pai! Nós te agradecemos pela vida que nos dás e pelos caminhos de sobrevivência que nos mostras. Ajuda-nos para que o ponto de partida e o critério de nossa existência sejam tu somente, para que saibamos partilhar com os outros aquilo que somos e temos. Por Jesus Cristo, Senhor e Salvador nosso. Amém.
3. Leituras bíblicas: Evangelho: Lc 12.13-21. Epistola: Tg 5.1-6
4. Oração final: Lembrar que a ganância em sabedoria e riqueza, a sede por poder e o egoísmo são a fonte de toda a miséria; interceder pelas igrejas para que elas sejam instrumentos de justiça e louvor a Deus e não instituições preocupadas consigo mesmas e com o louvor próprio; interceder por todos os governos do mundo, para que entendam o seu exercício de poder como uma tarefa para o bem-estar de todos; interceder para que cada um revise constantemente a sua vida. tendo como critério o próprio Deus, a fim de que a nossa vida espelhe ao menos um pouco do amor desmedido de Deus.
VI — Bibliografia
– CALVIN, J. Auslegung des Propheten Jeremia. In; Calvins Auslegung der Heiligen Schrift. Vol.8. Neukirchen, 1937.
– RUDOLPH. W. Jeremia. In: Handbuch zum Alten Testament. Vol.12. Tübingen, 1947.
– VOIGT, G. Meditação sobre Jeremias 9.22-23. In: Der helle Morgenstern. Göttingen, 1961.
– WEISER, A. Das Buch Jeremia. In: Das Alte Testament Deutsch. Vol.20. 5.ed. Göttingen, 1966.