Prédica: Tiago 5.13-16
Autor: Gerd Uwe Kliewer
Data Litúrgica: 19º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 17/10/1982
Proclamar Libertação – Volume: VII
ORAÇÃO PELOS DOENTES
I — Exortação às comunidades
A carta à qual pertence o nosso texto é dirigida às comunidades cristãs primitivas, ao finai do primeiro século da nossa era. Na verdade não é uma carta. O autor, um líder da igreja primitiva de nome Tiago, conforme a tradição, provavelmente judeu, redigiu ou colecionou uma série de admoestações e orientações práticas para a vida cristã e comunitária. As comunidades que ele tem em vista são razoavelmente organizadas; já parecem ter perdido o seu primeiro entusiasmo, e existe o perigo da acomodação; estão perdendo o zelo inicial pela obediência è palavra; as diferenças sociais se fazem sentir, os ricos consideram-se mais importantes e mais dignos, colocando em perigo a comunhão; como a volta de Cristo demora, há os que procuram interpretar a doutrina de Jesus Cristo de maneira a ajeitar-se neste século, vivendo numa boa neste mundo; por conseguinte, há muitos que querem difundir as suas doutrinas; surgem fofocas e brigas entre líderes; a salvação pela fé é esvaziada do seu sentido prático e os crentes tendem a restringir a atuação da comunidade ao campo espiritual; surge a moral dupla. Enfim, manifestam-se os fenómenos observados quase sempre quando um movimento passa para a segunda geração. Estas comunidades, acha Tiago, precisam de orientação a respeito do significado das provações e da posição do cristão neste mundo (1.2-4; 4.1-10), da prática da palavra (1.19-27; 2.14-26), do relacionamento social (1.9-11; 2.1-13; 5.1-6T, do uso da língua (3.1-12), da verdadeira sabedoria (1.5-8; 3.13-18) e de outros assuntos da convivência cristã. E. recorrendo à sua experiência pastoral e às tradições parenéticas da sua época, ele procura dar essas orientações. Temos, portanto, no livrinho de Tiago um levantamento da prática cristã da igreja primitiva, com problemas específicos que preocupavam naquela época, compilado em forma de exortação às comunidades, com o objetivo de orientá-las e fortalecê-las na comunhão. Tiago confronta-nos com o dia a dia da vida cristã do primeiro século.
II — O texto
O nosso texto, colocado já no fim do livrinho, aborda uma questão bem prática: a doença e a saúde do crente e da comunidade, e as providências que a comunidade deve tomar a respeito.
V.13: Sofre alguém entre vós? Ele ore! Alguém é feliz? Ele cante louvor!
V. 14: Alguém está doente e fraco? Chame os presbíteros e eles orem em seu favor, ungindo-o com óleo, em nome do Senhor.
V.15: E a oração na fé salvará o enfraquecido e o Senhor o levantará; e se ele tiver cometido pecados, ser-lhe-á perdoado.
V.16: Confessai, então, uns aos outros os pecados e orai uns pelos outros, para que sejais curados.
Muito pode a súplica do justo, quando poderosa.
III — Sofrimento, felicidade, doença – assuntos comunitários
Costumamos ver nossa saúde ou doença como assunto particular. O mesmo vale para a felicidade e sentimentos semelhantes. Dizemos: eu sou feliz, eu sou triste, eu estou doente. Se sofremos de algum mal, procuramos um especialista que, à base de técnicas aprendidas e numa relação de subordinação, trata o nosso corpo, a nossa alma ou a nossa mente.
Nosso texto mostra-nos outra abordagem. Se alguém está doente e fraco, chame os presbíteros! (v. 14) A doença é logo transformada num assunto comunitário. Se alguém sofre, ore! Se alguém é feliz, cante louvor! Também estas admoestações apontam para a prática comunitária. O cristão ora e canta em comunidade. Os cristãos primitivos reuniam-se sempre que podiam, cantando salmos, testemunhando, relatando seus problemas e experiências, orando em conjunto e ouvindo a pregação. A piedade particular., individualizada, que nós praticamos surgiu mais tarde. Assim, muitos cristãos hoje só sabem orar intensamente a sós, no quartinho escuro, e cantam salmos à vontade mesmo, só no banheiro. Quanta inibição encontramos nos cantos dos nossos cultos, para desespero do pastor que quer animar a comunidade. Quanta compostura se apresenta nos nossos cultos! As mulheres arrumadas, os homens engravatados, todo mundo quietinho; crianças, doentes e perturbados nem entram. Raramente há manifestações de alegria, de tristeza, de sofrimento. E se há, são comedidas.
Nas comunidades de Tiago, porém, as situações existenciais dos crentes eram motivo de oração, de canto e de comunhão. A doença, a felicidade, a desgraça tornavam-se logo o tema do culto.
IV — Orar pelos doentes — tarefa da comunidade
Os presbíteros mencionados no v.14 não eram pastores, especialistas teológicos e poimênicos. Eram os lideres de fé, crescidos dentro da comunidade e indicados por ela. Correspondem aos presbíteros, presidentes, secretários e tesoureiros que encontramos em nossas comunidades. No tempo de Tiago, a Teologia e a Poimênica ainda não se tinham transformado numa arte esotérica e especializada. Com fé, compaixão e boa vontade os presbíteros — que não eram nada mais que membros dedicados e destacados — acompanhavam e consolavam o doente no seu sofrimento. Naturalmente o fato aqui apontado não vale como argumento contra uma formação específica para o aconselhamento de doentes e perturbados, que o pastor possa adquirir. Nem significa que a visita a doentes, a oração por eles não seja também tarefa do pastor. Bem ao contrário. Mas realmente eficiente a oração, a preocupação com o doente só será, se crescer como força de dentro da comunidade e se nesta as pessoas carismáticas neste sentido forem motivadas e aproveitadas.
V — Na origem da doença, muitas vezes, está uma causa social
Saúde e doença estão intimamente ligadas com o ambiente vivencial das pessoas. A minha dor de cabeça, a minha diarreia, as minhas úlceras, o meu fígado, até a minha gripe podem ser, em grande parte, uma reação, por exemplo, à briga com a esposa, ao desentendimento com colegas, à rejeição por um grupo. A medicina fala de causas psicossomáticas das doenças. Será que Tiago tem conhecimento disso? Intuitivamente, talvez, reconheça essa origem social da doença e procure dar uma resposta no mesmo nível.
E, falando de origens, neste nosso Brasil os que ficam doentes por causa da briga com a namorada ou da incompreensão de colegas quase já são privilegiados. Muito mais agudas são as causas oriundas da injustiça que marca as macro-estruturas da nossa sociedade. Exemplo gritante disso nos dá uma pesquisa realizada na Diocese de Goiás em 1978/79, na qual o povo foi consultado sobre as suas condições de saúde. Diz o grupo de Itapuranga: Mas o homem não adoece não, ele já nasce doente e vai morrendo pela vida. Já nasce doente, segundo outro grupo, porque a mãe não alimenta bem, o pai também é mal alimentado e não tem onde plantar roça pra dar alimentação pra família. (O meio grito. Cadernos do CEDI. N° 3. Rio de Janeiro, 1980. p. 20).
VI — Serviço ao doente: passar óleo
A igreja católica considera o nosso texto (v.14) como uma das bases bíblicas do sacramento da unção dos enfermos. É difícil dizer até que ponto os cristãos primitivos davam algum significado sacramental e simbólico ao ato de passar óleo no enfermo. No mundo judaico o óleo era considerado portador de poderes especiais. Era usado nos ritos religiosos, na consagração de sacerdotes, reis, santuários (por exemplo, Êx 29.7; 30.26; 1Sm 16.13). Era aplicado aos doentes (Mc 6.13). O uso terapêutico do óleo é mencionado na parábola do bom samaritano (Lc 10.34). Os evangelhos relatam o episódio da unção de Jesus por uma mulher (Mc 14.3-9; Lc 7.36-50; Jo 12.1-8). A força terapêutica do óleo é incontestada até hoje. Grande parte dos remédios e pomadas que compramos na farmácia contém óleo de alguma espécie.
Não me parece necessário acentuar demais o significado sacramental do óleo mencionado no v.14. O que os presbíteros levavam consigo, na visita ao doente, era remédio. Além da fé, da oração, traziam algo bem concreto, material para aliviar o sofrimento do doente e promover a sua cura. E não só traziam, mas também aplicavam o remédio. Não ficavam distantes, envolviam-se com o doente, tocavam-no, passavam óleo nele, davam-lhe remédio. Acho que nesse envolver-se, nesse tocar, nesse passar óleo no doente está um dos segredos do processo de cura. Quando uma criança está doente, a mãe (ou outra pessoa em que a criança confia) tem que dar o remédio, e o fato de a mãe o dar torna o remédio muito mais eficiente. A massagem para tratar uma contusão ou aliviar uma tensão tem que ser aplicada por outro e não por si próprio. Quanto consolo, quanto alivio pode-se dar, segurando a mão de um moribundo! Há poder de cura no contato físico através do toque.
VII — O doente participa
O doente no nosso texto não é meramente objeto de um processo terapêutico despersonalizado e técnico (que muitas vezes encontramos na medicina moderna). Ele participa. Ele ora, ele chama os presbíteros, expõe o seu sofrimento, confessa os pecados, ouve confissão. Surge assim um grupo ativo, cujo objetivo é a cura, o auxilio ao irmão que sofre. Encontramos associações desse tipo também hoje: em comunidades de base, nas reuniões de alcoólicos anónimos, nas comunidades de doentes. Será que grupos de OASE, de JE, de presbíteros podem formar tais conjuntos de pessoas?
VIII — Cura para corpo e alma
O v. 1.5 coloca a cura (= restabelecimento da saúde) e o perdão dos pecados como acontecimentos simultâneos, sinónimos. Reencontramos aqui a equivalência já estabelecida na cura do paralítico, em Cafarnaum (Mc 2.1-12 par.). O conhecimento da época ligava doença a pecado e, logicamente, cura a perdão de pecados. Manifesta-se aqui uma consciência da unidade de corpo e alma, da interrelação de sintomas físicos, psíquicos e espirituais que a medicina moderna atualmente procura recuperar.
IX — Botar para fora o que nos torna doentes
Portanto, para conseguir e manter a saúde, é necessária a confissão dos pecados. Mais uma vez é destacado o caráter democrático e comunitário deste ato. Confessai os pecados uns aos outros e orai uns pelos outros! (v.15) Não há necessidade de pastor para que possa acontecer confissão e perdão de pecados (mas a presença dele pode ajudar, desde que seja um bom animador). Um crente confessa os seus pecados ao outro ou aos outros. Um pronuncia a palavra de perdão para o outro. Um intercede pelo outro perante Deus. Certamente não se trata de uma confissão genérica do tipo eu sou pecador, tu és pecador, nós todos somos pecadores. O verbo usado para designar o confessar, em grego, tem o prefixo EX = para fora. Trata-se de botar para fora, de maneira explícita e concreta, o que pesa na nossa consciência: as nossas falhas e erros, o mal que fizemos e que se interpõe nas relações com o próximo: de descarregar a consciência para livrar-se dos entraves à comunhão com Deus e com o próximo. Confessar os pecados e orar um pelo outro é um serviço que os membros da comunidade podem e devem prestar um ao outro em prol da saúde.
X — A oração pelos enfermos cura?
O nosso texto termina com uma afirmação conclusiva a respeito da força da oração do justo. Que justo é esse? O justo não è outro senão o membro, o presbítero, a irmã que visita os doentes, traz-lhes remédio, ora com eles, ouve os seus pecados. Tiago mesmo aponta nesta direção em 1.27: O culto puro e sem mácula a nosso Deus e Pai é este: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo. A oração do justo traz a cura? Os pentecostais acreditam que sim. Com toda naturalidade oram, nos seus cultos, pelos enfermos, e com a mesma naturalidade aceitam a cura como uma resposta de Deus à sua oração insistente (evidentemente, não falo aqui de exploradores carismáticos que prometem cura em troca de dízimos ou carnes de salvação). Pastores da IECLB testemunham experiências de cura após a oração. (Jornal Evangélico. São Leopoldo, 2a quinzena maio. 1981. p.6s) Que ganhamos se duvidamos e questionamos? Acho que devemos ter fé no poder de Deus. Não se trata, porém, de substituir médico e medicina por orações ou dinâmica de grupo. Mas o médico mais eficiente concordará que um ambiente de fé, de amor, de ajuda e apoio mútuos é um poderoso aliado na restituição da saúde do doente. E onde essa restituição não é possível, tal ambiente tornará o sofrimento, e até a morte, suportáveis e frutíferos para a comunidade. A oração não cura; mas temos um Senhor poderoso que responde a nossas súplicas e quer-nos dar, na sua infinita graça, saúde e salvação.
XI — O que pregar?
1. Acho que a prática que o texto nos propõe deve servir de motivação para que a comunidade desenvolva a sua própria prática em torno do assunto doença e saúde. A prédica não poderá instituir tal prática, mas poderá dar o primeiro impulso. Sugiro uma prédica exortativa, mas que evite glorificar o uso da comunidade primitiva, opondo-o à nossa omissão e ineficiência, suscitando assim nada mais que um sentimento de culpa. Trata-se de recuperar, reavivar uma prática que è própria da comunidade cristã.
2. Eu colocaria a ênfase teológica no poder de Deus que quer salvar-nos em corpo, alma e mente, mas quer fazer isso na comunidade, com o auxilio dos crentes.
3. O contexto sócio-econômico em que vivemos, causador de tanto sofrimento e doença, deve ser abordado. Quando o acesso à alimentação, aos serviços de saúde, se torna proibitivo para a maior parte da população, o simples apontar para o poder de Deus pode parecer blasfêmia. A ação em favor da saúde deve transcender os limites estreitos da comunidade e atingir as estruturas sociais mais amplas.
4. Recursos para ilustrar a situação da saúde do povo o pregador encontrará no caderno do CEDI, já mencionado. Mais exemplos provavelmente poderá acrescentar de sua própria experiência. Em alguma parte do culto deverão ser mencionados os doentes e sofredores da comunidade. Onde há desinibição suficiente, pode-se pedir que os membros presentes apontem e descrevam casos de doença e sofrimento.
5. Pode ser que a comunidade esteja insegura em relação à oração pelos doentes, devido aos abusos — cura divina, benzeduras, despachos, magias — presentes no nosso ambiente. Acho que, neste caso, a sobriedade com que o nosso texto aborda a oração pelos enfermos, com unção e confissão de pecados, sem ingredientes mágicos, pode ser uma ajuda. Deus não deu a cura aos benzedores, carismáticos e charlatães, mas a realiza com a sua comunidade de fé e no meio dela.
XII — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Deus Todo-poderoso, nosso Senhor: Chegamos a ti desnorteados e de coração aflito. Há doença e sofrimento no nosso meio, e não sabemos enfrentá-los com o teu poder. Trezentas mil criancinhas morrem no nosso país, a cada ano, por falta de alimentação e condições de vida. Milhões clamam por assistência médica e acompanhamento na doença. Outros são ludibriados por benzedores e charlatães. Nas ruas tropeçamos nos mendigos e desempregados, nossos irmãos. Milhares de colonos pedem terra para, com o seu trabalho, poderem alimentar as suas famílias. Como podemos ajudar, Senhor? Queremos ajudar? Nos hospitais, nos asilos, os doentes, os velhos anseiam por um sinal de amor. Também o nosso vizinho está doente. O nosso egoísmo mantém uma sociedade que obriga a maioria ao sofrimento e à doença. Temos boa vontade de ajudar, mas como? Estamos de consciência pesada diante da nossa omissão e impotência e suplicamos: Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor, Deus fiel e misericordioso. Queres a felicidade e o bem-estar de todos os homens. Preparaste para todos os teus filhos vida plena. Proporcionaste saúde e salvação para cada um de nós, por mera graça, sem mérito nosso. Dá-nos hoje o teu Espirito Santo, para que nos guie e nos ensine a aproveitar, em comunhão com todos os homens, os dons que em Jesus Cristo recebemos de ti. Amém.
3. Assuntos para a oração final: agradecimento pela saúde que temos, e pelo sofrimento também, que nos leva a lembrar-nos da nossa condição humana; a cura dos doentes da comunidade; os grupos de visita de doentes, para que tenham poder; os médicos e hospitais, para que sirvam realmente à saúde e não à ganância; os ministros da Saúde e da Previdência, para que usem o seu poder em favor da saúde e não para fins eleitoreiros; a sociedade, para que possa renovar-se; a comunidade, para que cresça em comunhão e poder de cura.