Prédica: Deuteronômio 30.11-20
Autor: Ulrico Meyer
Data Litúrgica: Confirmação
Data da Pregação: 27/01/1982
Proclamar Libertação – Volume: VIII
I — O Livro de Deuteronômio
O Livro de Deuteronômio é um verdadeiro mosaico, composto por escritos surgidos em diferentes épocas e regiões. Mas, apesar disso, o livro forma uma unidade, seguindo o esquema do culto israelita: exortação — mandamentos — compromisso de aliança — anúncio das bênçãos e das maldições. A sequência das diferentes partes do livro lembra o desenrolar litúrgico de uma solenidade: a festa da renova¬ção da aliança de Siquém. Conforme von Rad, o conteúdo do Deuteronômio em si se prestaria a uma exposição sistemática, pois é uma obra coerente, equilibrada e homogênea. (von Rad, Teologia, p. 222)
Na forma como o Deuteronômio se apresenta para nós hoje, ele é o livro de despedida de Moisés em Moabe, quando o povo de Israel estava para entrar em Canaã, a terra prometida. No Sinai, Moisés teria recebido toda a lei, toda a vontade de Deus, mas, então, ele só anunciara o decálogo ao povo. Agora, porém, quando estava prestes a conquistar a terra prometida, o povo deveria saber toda a lei, para poder cumpri-la na nova terra. Essa lei serviria ao povo como regra de vida na terra prometida. Por isso, Moisés somente a anuncia ali em Moabe.
Conforme von Rad, o Deuteronômio não quer ser uma lei do estado. Nenhum código do Antigo Testamento se apresenta nestes termos. Interpela Israel na qualidade de comunidade sagrada, povo santo que pertence a Javé, e é sob esse aspecto que se ordenam sua vida e seus ministérios (sacerdote, rei, profeta, juiz). Tudo está em função de sua dádiva privilegiada, isto é, da sua instalação na terra prometida. Foi assim que a salvação começou para Israel, na qualidade de povo natural, atingindo até os seus membros mais insignificantes, em sua realidade histórica. Foi conduzido inteiramente à condição de povo salvo.(Teologia, p. 229) E ainda: Tudo é coerente no Deuteronômio, e tudo converge para uma visão teológica unificadora: um Israel (formando um todo), uma revelação (THORAH), uma terra prometida (NAHALA), um lugar de culto e um profeta.(Teologia, p. 230)
Cunliffe-Jones afirma que o Deuteronômio é uma súplica dirigida a Israel, para que reconheça a Javé, seu Deus, como o Deus do Pacto, e para que viva como corresponde ao povo de Deus, por causa do Pacto. O Pacto se apoia na redenção obtida por Deus; graças ao amor e misericórdia por ele derramados, Israel tem recebido sua vida e destino como povo. O futuro de Israel dependerá da aceitação desse destino fins das mãos de Deus, e de que ande de tal maneira, para ser digno dele. ( H. Cunlilffe-Jones, p. 17)
II — O Texto
A perícope, alvo de nosso estudo, se compõe de duas partes bem distintas:
a) vv. 11-14 — Cumprir o mandamento de Deus é algo humanamente possível;
b) vv. 15-20 — Deus chama Israel para decidir-se por ele ou contra ele, pela vida e o bem, ou pela morte e o mal..
Com grande probabilidade, os vv. 11-14 originariamente não eram relacionados com o que antecede. Mas, mesmo assim, eles complementam o antecedente; as promessas de misericórdia. Sobretudo, temos que levar em conta que estes versículos foram dirigidos a Israel no exílio. No exílio, Israel não estava fora dos domínios de Deus e, também ali, havia a possibilidade de cumprir a sua vontade. Pois a exigência fundamental do Pacto era amar a Deus de alma e coração, e isto não era algo tão elevado e distante que não pudesse ser cumprido. Eles haviam levado consigo os ensinamentos que passaram de geração em geração (Cunliffe-Jones, p. 206)
Nos vv. 15-20 está resumido o conteúdo do Deuteronômio. Deus conclama Israel para decidir-se por ele ou contra ele. É uma questão de vida ou morte. Aqui, como em Jr. 21.8, vida e morte significam literalmente sobrevivência ou destruição, assim como bem e mal significam prosperidade e seu oposto. (Cunliffe-Jones, p. 207s)
Apesar de os vv. 11-14 terem sua origem em época e lugar diferentes, eles formam uma unidade com os versículos que seguem (15-20). Se é humanamente possível cumprir o mandamento de Deus em qualquer situação, se a vontade de Deus não é algo distante ou elevado demais, então tem-se duas opções: decidir-se para Deus ou contra Deus: escolher entre o bem e o mal, entre vida e morte. A sorte de Israel dependerá da escolha que faz. Ao meu ver, por aí se nota o fio vermelho do todo do texto.
III — Conteúdo
a) Não há justificativa, para a desobediência
O mandamento que Deus dá a Israel não é tão difícil, a ponto de seu cumprimento ser impossível. A dificuldade não é desculpa nem justificativa para não cumpri-lo. Até mesmo no exílio, onde certamente as dificuldades dos exilados eram enormes e onde oficialmente existia uma outra religião, o povo de Israel não estava impossibilitado de cumprir a vontade de seu Deus.
O mandamento de Deus não está longe deles. Não ficou na terra que tiveram que deixar, mas está sempre ali, onde cada um se encontra. Ele não está nos céus, para que alguém, eventualmente, possa vir com a desculpa: Quem poderá subir até os céus por nós? Quem po-derá buscar este mandamento lá de cima e anunciá-lo aqui para nós, para que possamos cumpri-lo? O mandamento de Deus já é deste mundo, está ai, já foi anunciado e, por isso, a desobediência não se justifica, sob a alegação de ignorância ou inatingibilidade. A vontade de Deus está ao alcance de todos. No Pacto ela se tornou uma coisa clara e foi anunciada a todos.
O mandamento de Deus também não está além do mar, numa terra distante demais. A desobediência também não se justifica pelo fato de Israel estar desterrado. O mandamento os acompanha. Não há desculpa nem justificativa para o não cumprimento.
A Palavra de Deus está muito perto, na boca e no coração. Ela foi e é anunciada de pai para filho. É, portanto, conhecida de todos. Israel tem condições — em qualquer época, lugar e situação — de, exteriormente, mentalizar e fazer ouvir e, interiormente, sentir a Palavra de Deus. Toda e qualquer desculpa para não cumprir a vontade de Deus é simplesmente fugir da responsabilidade e mentir a si mesmo. A vontade de Deus é clara, não é difícil em demasia, não é sobre-humana. É do céu, mas está no mundo. Pode ser ouvida e sentida. Não está longe, mas bem perto, no meio das pessoas e ao alcance de todos. Por isso, a vontade de Deus pode ser cumprida em qualquer época, lugar e situação, mesmo quando as condições são adversas. Ela está ai e-pode ser cumprida. Graças a Deus, Israel tem essa possibilidade.
b) Obediência e desobediência – vida e morte
A sorte de Israel dependerá da escolha que fizer Israel pode escolher entre obedecer e desobedecer, entre a vida e a morte, entre o bem e o mal A proposta de Deus está contida nestas duas alternativas:
vida e o bem, ou morte e o mal. Quem cumpre o Pacto terá vida, não será destruído, obterá de Deus todo o bem e terá uma vida próspera. Quem, porém, não cumpre o Pacto terá, em consequência disso, a morte, a destruição, o mal e não prosperará na vida.
O mandamento que resume a vontade de Deus (o Pacto) é: que ames o Senhor, teu Deus. Amar a Deus significa andar nos seus caminhos e guardar seus mandamentos, seus estatutos e os seus juízos Quem ama a Deus não terá dificuldade em saber onde está e qual é a vontade de Deus. O cumprimento do Pacto será automático. A pessoa que ama a Deus não precisará de alguém que busque o mandamento do céu ou de além-mar. O mandamento estará presente em seu intimo. O cumprimento deste mandamento terá como consequência a vida e o bem: então viverás e te multiplicarás, e o Senhor teu Deus te abençoará na terra, a qual passas a possuir. (v. 16)
A nova terra, o símbolo da salvação, representava, para Israel, também uma ameaça. A terra, a qual passariam a possuir, prometia muita prosperidade. Este fato representava um perigo à fé do povo. Por outro lado, também a adoração a outros deuses, praticada nesta terra estranha, poderia levar o povo a desviar-se da verdadeira fé. A influência de uma religião pagã era ameaçadora. Por isso, o povo precisava ouvir este alerta radical: Se o teu coração se desviar, e não quiseres dar ouvidos e fores seduzido e te inclinares a outros deuses, e os servires, então hoje te declaro que, certamente, perecerás; não permanecerás longo tempo na terra a qual vais, passando o Jordão, para a possuíres (vv. 17 e 18) A escolha é de Israel: vida e o bem, ou morte e o mal.
O texto todo é uma exortação ao povo de Israel, para que cumpra o mandamento de Deus. A exortação cresce e se acentua no desenrolar do texto. A forma da pericope é quase uma coação para que Israel cumpra a vontade de Deus: se querem a vida e o bem, amem a Deus acima de todos as coisas! Quem não quer a vida e o bem? A resposta de Israel terá que ser forçosamente positiva: obediência. Se os versículos anteriores exortam, de uma maneira indireta, o povo a cumprir os mandamentos de seu Deus, o v. 19 é incisivo e a exortação é direta. Os céus e a terra são testemunhas contra Israel de que Deus lhe propôs a vida e a morte, a bênção e a maldição. A expressão céus e a terra como testemunhas serve para acentuar ainda mais a exortação: Israel deve escolher a vida!
A vida depende da escolha que se faz. Para se ter vida, é preciso escolher a obediência e o amor a Deus. Pois é de Deus que depende a vida e todo o bem. A vida e o bem se alcançam, amando a Deus e cumprindo os seus mandamentos. Se alguém se perde, não é por culpa ou vontade de Deus. Deus lava suas mãos, porque nos possibilita uma vida consigo, apresentando-nos a sua vontade e mostrando-nos claramente o seu caminho. Se Israel quiser ter vida, sucesso e prosperidade na nova terra, deverá optar pelo caminho de Deus
IV — Meditação
A escolha do texto de Dt 30.11-20, para servir de base para a alocução no culto de Confirmação, é feliz. Pois trata-se de uma exortação forte e incisiva, que exige uma decisão a favor de Deus e um compromisso com ele. Confirmação é decidir-se para Deus e comprometer-se com ele e com o próximo. É o nosso Pacto, revelado na pessoa de Jesus Cristo. Já no Batismo, Deus nos propõe a vida e todo o bem, ou a morte e o mal. A escolha entre ambos é nossa. Na hora do Batismo, nossos pais e padrinhos escolheram, por nós, a vida e o bem. Com a Confirmação, nós mesmos optamos pela vida e o bem. Dizemos o nosso sim e nos comprometemos com Deus. Confirmação é, portanto, uma escolha responsável, na qual fazemos uso da liberdade que Deus nos dá para escolher o que pessoalmente achamos melhor para nós. Deus propõe a vida e todo o bem, ou a morte e o mal. O confirmando, já ciente do que é melhor para ele, escolhe a vida, assumindo o compromisso de cumprir, na vida, a exigência da mensagem de Jesus Cristo, o novo Pacto. Este compromisso é assumido para toda a vida e para toda e qualquer situação, mesmo que as condições de vivência da fé sejam adversas. A Confirmação é a prova e o testemunho público da escolha.
É tão bonito falar desta maneira sobre a Confirmação! E é uma pena que a realidade em nossas comunidades seja bem outra! Pois, para a maioria dos confirmandos e seus pais, a Confirmação não passa de um mero acontecimento social, paralelo ao debute ou à formatura. Nota-se claramente tal fato nas reuniões de pais e confirmandos, no final do curso, quando a solenidade social da Confirmação está às portas. Nelas, constata-se sempre que a maior preocupação não esta na Confirmação em si, nem na escolha que estão fazendo ou no compromisso que estão assumindo. O mais importante parece não ser a profissão de fé. A preocupação maior está no aspecto externo e secundário da cerimônia: que roupa vão vestir; como vão entrar na igreja; onde vão arrumar flores para enfeitar os bancos e o altar, e como vão fazer isso; a que horas têm que estar na igreja; como cada um deverá portar-se dentro dá igreja. Por fim, ainda tem o grande problema das fotografias: que fotógrafo vamos pegar; o pastor vai ter que tirar foto com todo o grupo e com cada um individualmente. O Importante é fazer tudo bem bonitinho. Assim a gente deixa uma impressão boa para os padrinhos e parentes que vem de longe.
A mesquinhez desta realidade é decepcionante! Essa decepção ainda é maior, porque a maioria destes jovens estão se despedindo da igreja, para só voltar no dia de seu casamento (outro acontecimento social!), para, novamente, exigir do pastor uma cerimônia bonita. Nas reuniões de noivos temos que constatar a mesma preocupação mesquinha pelo supérfluo e secundário.
O que ainda traz uma certa alegria são casos raros de jovens que realmente assumem o compromisso da Confirmação e tentam, em qualquer situação, cumprir o mandamento de Deus, revelado em Jesus Cristo: amor a Deus e amor ao próximo. E outros ainda assumem a Confirmação mais tarde, quando, eventualmente, são atingidos pela mensagem do Evangelho. Penso que estes casos raros não deverão ser esquecidos.
Oxalá este texto e sua exortação possa, através da prédica, ajudar pelo menos mais um jovem e algum pai descompromissado.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor Deus e Pai amado, tu instituíste o Santo Batismo para nos servir de sinal do teu grande amor por nós. Teu amor é tão grande, a ponto de entregares teu próprio Filho na cruz. Senhor, através de Cristo tu nos tornas santos, remindo todo o nosso pecado. Através dele, tam-bém o teu mandamento tornou-se algo claro para nós, e nada nos impossibilita de cumpri-lo em qualquer situação. O teu mandamento não está longe de nós, mas está bem perto, dentro de nós, pois já ouvimos o teu chamado, através do teu Evangelho. No entanto, Senhor, temos que confessar que somos agentes e cúmplices de muita injustiça e de muito desamor. Muitas vezes deixamos o teu mandamento de lado, porque nos parece pesado demais. A nossa fé é fraca demais para podermos realmente ser teus cooperadores neste mundo. Muitas vezes, o egoísmo e a vaidade tomam conta de nós, e não temos lugar para o teu mandamento. Não estamos conseguindo praticar direito a comunhão contigo e com o próximo. A nossa confissão de fé muitas vezes é só da boca para fora. Perdoa-nos, Senhor, e tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor Jesus Cristo, nós te agradecemos, porque agora podemos novamente ouvir a tua Palavra. Nós te agradecemos pelo Batismo, onde nos dás o teu sinal de amor e de perdão. Dá que a nossa confissão de fé aconteça sempre e que seja sincera. Senhor, fala a cada um de nós. Dize-nos o que precisamos e mostra-nos o que nos pode ajudar. Dá poder à proclamação do Evangelho, a bênção ao ouvir, aqui e em toda a parte, onde pessoas se reúnem em teu nome. Amém.
3. Oração final: Querido Senhor, nós te agradecemos, porque a força do teu poder é maior do que a nossa culpa. Não somos heróis na fé. Somos homens que tem que lutar contra tensões e esmorecimento, e que, de modo algum, podem aguardar sempre de bom ânimo e cheios de esperança o novo dia. — Por isso, rogamos-te por fé. Porque só a fé que tu suscitas e proporcionas, só essa fé é capaz de manter-nos unidos contigo, não obstante frustração, sofrimentos e tempos difíceis. — Rogamos-te pelos jovens entre nós. Buscando apoio, perdem-se muitas vezes em becos sem saída. Mostra-lhes que, sem ti, não ha verdadeira felicidade, e que salvação e paz só podem vir de ti. — Pedimos-te pelas mães e pelos pais, por professores e educadores, por todos os que têm poder para influenciar a outros. Dá que sua atividade aconteça em reponsabilidade diante de ti e em beneficio das pessoas. Intercedemos por todos aqueles, para os quais tornou-se difícil ter fé, ou que a perderam totalmente; que não sabem com que podem alegrar-se e anseiam por paz. Deixa-te achar também por eles. — Comisera-te especialmente daqueles que te abandonaram, que não querem saber nada de ti e te negam. Não os abandones. Fortalece, por isso, antes de tudo, os teus servos no anúncio da tua Palavra, pastores, pregadores e catequistas. Guarda-os de cansaço e resignação; Dá-lhes as palavras necessárias, consoladoras e oportunas. Conserva-lhes o amor a seu ministério e aos homens. — Senhor, ensina-nos todos a esperar mais confiantemente, a crer mais firmemente e a orar mais fielmente. Tem paciência conosco, enquanto oramos em nome de Jesus Cristo: Pai Nosso… (Oração extraída de Orações para o Culto — Prontuário Litúrgico l, Editora Sinodal, p. 130s)
VI — Bibliografia
– CUNLIFFE—JONES, H. Deuteronomio — Introducción y Comentario. Buenos Aires, 1960.
– MACKINTOSH, CH. Estudos sobre o Livro de Deuteronômio Vol. 1. Lisboa, 1979.
– RAD, G. von. Das fünfte Buch Mose. In: Das Alte Testament Deutsch Vol.8. Göttingen, 1964.
– ________ Teologia do Antigo Testamento. Vol. 1 São Paulo, 1973.