l — Seca-se a erva, e cai a sua flor…
Os caps. 40 a 55 do atual Livro de Isaías reúnem oitos de um profeta anônimo que não é o conhecido Isaías do séc. VIII a.C. Já em 1788 Johann C. Döderlein, ao resenhar o comentário de Heusler, afirma a existência de um profeta exílico. O povo ao qual o profeta se dirige já não se encontra em Judá, mas no exílio babilônico (cf. 40.2: 42,14,22; 43.14; 46.1ss; 48. 20; 52.8s,11s), oprimido não mais pelos assírios, mas pelos babilônios (47.1; 48.14; quanto à Assíria cf. 52.4); Judá, Jerusalém e o templo estão destruídos (44.26,28; 49.16ss; 51.3): menciona-se Ciro, o fundador do Império Persa (44.28; 45.1).
Por sua mensagem ter sido mais tarde anexada à de Isaías — sem dúvida por causa do grande prestígio deste — convencionou-se chamar este profeta anônimo de Dêutero-Isaías. Sabemos muito pouco da pessoa do profeta. Is 40.6 parece substituir um relato de sua vocação. Outros traços biográficos dificilmente encontraremos em seus ditos, a não ser que identifiquemos o Servo Sofredor com o profeta. Por fazer uso frequente de oráculos e anúncios de salvação (Westermann. pp 13ss, fala em Heilszusage e Heilsverkündigung. O primeiro termo, traduzido por oráculo de salvação, quer assegurar que a salvação já é um fato. O segundo, traduzido por anúncio de salvação, afirma que o futuro trará libertação, retorno à pátria e redenção definitiva.), o profeta deve ter tido vínculos com o culto, quem sabe com as cerimônias de lamentação do povo no exílio (cf. Sl 137; assim WALDOW, H.E Von. Anlass und Hintergrund der Verkündigung des Deuterojesaja. Hnnn, 1953. p. 174).
A atividade de Dêutero-Isaías situa-se ao final do exílio, entre o início das campanhas vitoriosas de Ciro (550/546 — Em 550 Ciro toma a capital dos medos. Ecbátana, e em 546 toma Sardes, capital da Lídia. A este último acontecimento talvez aludam os trechos 41.2s; 45.1-3) e a tomada de Babilônia (539). Os israelitas deportados em 597 e 586 para a Babilônia já estavam 50, respectivamente, 40 anos em terra estrangeira. Isto significa que o profeta atuou entre judeus que — bem ou mal — tiveram que adaptar-se ao seu novo lar e que, em grande parte, já haviam nascido numa cultura diferente.
A situação política era um tanto confusa na época. Parece que o rei Nabonide (556-539) não foi politicamente muito sábio. Apoiara a insurreição do insignificante Ciro de Ansam, do clã dos aqueménidas, contra os medos, por temer um fortalecimento destes. Além disto, Nabonide havia entrado em conflito com uma das mais influentes classes políticas de seu império: os sacerdotes de Marduc. Sendo pessoalmente devoto do deus da lua, Sin, eliminou o tradicional festival de Ano Novo, empreendeu diversas obras em homenagem a seu deus que requereram grandes investimentos. De resto parece que Nabonide dedicou-se mais às construções do que propriamente à política. Edificou um palácio real em Tema, um oásis no norte da Arábia, transferindo para lá sua residência, provavelmente para melhor controlar as rotas das caravanas e talvez por temer mais o Egito do que um inimigo do Norte, deixando seu filho, Belsazar, mencionado no livro de Daniel, como regente da capital.
O grande descontentamento de sacerdotes e de diversas camadas populares foi sabiamente aproveitado por Ciro que conseguiu, com o apoio do comandante do exército babilônico, ocupar a capital sem derramar sangue. Em Babilônia foi recebido como libertador pelo povo (Veja o Cilindro de Ciro que se encontra parcialmente traduzido em Steinmann, pp. 53ss). Os ditos de Dêutero-Isaías poderiam estar, em parte, refletindo a euforia de determinadas camadas populares pela iminente libertação através de Ciro.
Os Judeus deportados — Jr 52.28-30 menciona um total de 4.600 pessoas (excluindo mulheres e crianças?) — pertenciam à elite social, militar e intelectual. Mas a vida em regime de relativa escravidão deve ter produzido uma classe consciente de sua situação precária. Os exilados puderam viver juntos, em grupos. Havia uma colônia em Tel-Abib, às margens do rio Quebar (cf. Ez 3.15; trata-se provavelmente de um canal de irrigação); os exilados tinham possibilidade de se reunirem (Ez 33.30-33). A carta de Jeremias aos exilados (Jr 29.4ss) nos informa que a escravidão não era tão cruel; havia uma certa liberdade, pois os exilados podiam construir casas, plantar hortas, ter propriedades, constituir família. Parece que eram obrigados apenas a realizar alguns trabalhos, talvez reedificar cidades, construir muros e canais em determinados lugares. De resto, no entanto, não eram prisioneiros. Podiam, como colonos semi-livres, viver a sua própria vida (cf. NOTH, M. História, de Israel, Barcelona, 1966, p. 271).
Em 560, Joaquim, o rei exilado de Judá, foi anistiado por Amei Marduc (2 Rs 25.27ss) e trazido à corte real babilônica para viver às expensas do erário público. Com este ato uma determinada classe de judeus exilados teve oportunidade de subir na vida. Temos conhecimento de judeus muito ricos no final do exílio (cf. p. ex. Ed 1.6; 2.68s). Talvez tenhamos que contar, na época de Dêutero-Isaías, com duas classes de israelitas na Babilônia: aqueles que, por sorte, empenho ou qualificação, alcançaram uma boa posição econômica na sociedade babilônica, e os que não tiveram, por diversos motivos, o mesmo destino, permanecendo na semi-escravidão e ansiando, juntamente com outras camadas populares, pela libertação de seu cativeiro.
Parece que os exilados também não foram obrigados a adorar os deuses nacionais e oficiais. O fato de morarem em núcleos sem dúvida favoreceu a celebração de seus cultos em comunidades próprias e a conservação de suas tradições. É claro que, com o decorrer do tempo, muitos preferiram adequar-se ao sistema babilônico, inclusive adotar os seus deuses aparentemente vitoriosos. As impressionantes celebrações e procissões públicas e os majestosos templos deviam ter impressionado bastante os exilados.
Os exilados tiveram que passar por uma crise religiosa sem Igual na história de Israel. A perda da terra, o fim do Estado e da dinastia, a destruição do templo despertaram sérias dúvidas teológicas: Será que Javé abandonou o seu povo definitivamente? Ou será que o Deus de Israel é, afinal, mais fraco que o deus dos babilônios? O exílio tornou-se lugar de intensa reflexão teológica na tentativa de obter respostas a estas dúvidas angustiantes, ou seja, na tentativa de interpretar a história de Israel com seu Deus. Dêutero-Isaías participou decisivamente nesta reflexão.
II — … mas a palavra de nosso Deus permanece eternamente
O estilo de Dêutero-Isaías é bem diferente do que conhecemos de outros profetas. O esplendor sem paralelos (von Rad, p. 206) de sua linguagem lembra os Salmos. Os oráculos de salvação (p. ex. 41.8-13), os anúncios de salvação (p. ex. 41.17-20), os discursos judiciários (p. ex. 41.21-29. Gerichtsrede conforme KAISER, O. Einleitung in das Alte Testament. Gütersloh, 1969, p. 204, e outros), com o objetivo de restabelecer a soberania de Deus diante dos outros deuses, as discussões (p. ex. 40.12-31. Diskussionswort ou Disputationswort. Wiener, p. 36, lemos a tradução disputa sapiencial — por ser algo característico da sabedoria?) que pretendem rebater argumentos levantados contra o poder e a majestade de Deus e os diversos elementos típicos de um hino (p. ex. 42.10-13; cf. também as inúmeras qualificações de Deus por meio de particípios, p. ex. 42.5) — tudo parece querer desembocar num grande cântico de louvor.
As formas e o estilo sempre têm algo a ver com o conteúdo. A mensagem central a ser transmitida é a salvação presente e vindoura. Não encontramos em Dêutero-Isaías nenhuma palavra de juízo contra o povo de Israel. Não é tempo de anunciar juízo. Este já veio para o povo na forma do exílio. Agora é hora de falar sobre o objetivo último de Deus para com seu povo: perdão, libertação, novo início, redenção. O hino de louvor é a forma adequada de responder a esta graciosa atuação divina e um modo de confessar a esperança neste Deus.
Esta mensagem encontra um povo que já não tem esperança, que se sente abandonado por seu Deus (40.27; 49.14), que tem medo (41.13s), que é cego e surdo às promessas de seu Deus (42.18-20), que se perdeu na nostalgia (43.18). Reanimar, alentar, converter à esperança (Schökel/Diaz, p. 268) é o que importa nesta situação. Para persuadir o povo desanimado o profeta usa de uma linguagem terna que quer abrir o coração de Deus: ele é o pai bondoso e a mãe afetuosa (43.6; 45.10s; 49.14s), o esposo amado de Sião (50.1) e o GO'EL que resgatao seu parente endividado (p. ex. 41.14). Pode-se confiar neste Deus.
O Senhor da história movimenta todo o universo político em favor de um punhado de exilados. É vontade de Javé que as vitórias militares de um pagão venham beneficiar o vermezinho de Jacó' (41.14), através do qual todas as nações reconhecerão o verdadeiro Deus.
Por causa da analogia da situação, o profeta recorre sempre de novo à tradição mais cara do povo — o Êxodo — para explicitar a sua mensagem de salvação. Logo no início do livro (40.3-5. O tema também encerra o livro. Cf. 55.12s) deparamos com o tema (Os demais textos são 41.17-20; 43.16-21; 48.20s; 49.8-13; 51.9s; 52.7-10,11s; 55.12s). Assim como Javé libertou o povo do cativeiro egípcio, ele fará com os israelitas exilados na Babilônia. Este novo Êxodo será, no entanto, muito mais maravilhoso: ele não vai ocorrer com pressa (52.11 s), mas será acompanhado de alegria e júbilo (42.10s; 43.20; 55.12), não faltara água e até árvores crescerão no deserto (41.18s; 43.19s; 48.21. 55.13). Javé liderará a marcha (52.12) na grandiosa estrada através do deserto (40.3s). A tradição do Êxodo possibilita esperar por uma atuação idêntica — quem sabe até maior — de Javé no futuro.
A libertação do cativeiro babilônico desembocará na reconquista da terra natal, na reconstrução da cidade santa e do seu templo. Em Sião Javé quer congregar o seu povo e restabelecer definitivamente a sua comunhão com ele. A reconstrução de Sião e a constituição de uma nova comunidade será o início do tempo escatológico, da salvação definitiva. Os povos todos acorrerão, então, a Sião para adorar o Deus de Israel (49.22ss). Com traços nacionalistas e quase imperialistas, o profeta descreve esta situação escatológica em que todos os povos serão servos de Israel (49.23), talvez retratando o desejo de desforra que acompanha qualquer povo humilhado.
Para dar credibilidade à sua mensagem, o profeta traz um argumento de suma importância: Javé é Criador de todo o universo e, como tal, tem tudo em suas mãos (p. ex. 40.12-31; 43.1; 44.24s). O Deus que quer libertar Israel tem também todo o poder para tanto. Utilizando figuras do artesão (42.5; 44.24; 45.12; 48.13), do construtor (48.13; 51.13) e do oleiro (45.9), as afirmações sobre o Criador, expressas mormente por particípios, pretendem defender a hegemonia de Deus sobre outros deuses.
Mas note-se que as afirmações sobre Javé, o Criador, estão intimamente ligadas às afirmações sobre Javé, o Senhor da história da salvação. Cada atuação de Deus parece ser, ao mesmo tempo, ato criador. A libertação do exílio está entremeada de novas criações de Deus (40.3; 41.18s; 43.19). A criação tem claramente caráter soteriológico (von Rad, p. 208). Em Is 44.24, o que te formou é sinônimo de o que te redime. O Criador do mundo é o Redentor de Israel (cf. principalmente 40.28-31).
Ao afirmar que o Deus de Israel é o Criador, o profeta posiciona-na claramente contra a concepção babilônica de que Marduc criou o mundo. Muitos trechos de Dêutero-Isaías polemizam contra os deuses-ídolos babilônicos (São os seguintes trechos: 40.19s; 41.6s,21-24; 42.17; 43.8-13; 44.9-20; 45.14-17,18-25; 46. Geralmente são considerado! acréscimos posteriores.). A fabricação de ídolos e os idólatras são ironizados (40.19S; 41.6s; 44.9-20; 46.6s), pois madeira e pedra são incapazes de ajudar. Os ídolos simplesmente são menos que nada (4124).
No confronto com os deuses babilônicos, Dêutero-Isaías usa um argumento contundente: único e verdadeiro Deus só pode ser Javé, pois é o único que sabe predizer o futuro (41.25ss; 48.14). Javé predisse, através de seus profetas, o exílio de seu povo. Por isso ele é o único Deus. Por isso também a sua palavra presente se cumprirá no futuro. A situação desoladora do exílio é evocada como argumento a favor da divindade de Javé. O cativeiro, o abandono, a miséria são provas de que o Deus de Israel é poderoso. Esta visão do Deus oculto no sofrimento pároco ser o conteúdo mais importante dos cantos do Servo Sofredor.
Desde que B. Duhm, em seu comentário sobre Isaías de 1892, destacou quatro cânticos do todo do Livro de Dêutero-Isaías, a discussão tornou-se tão ampla, a ponto de não se poder ter mais uma visão nobre toda a literatura existente a respeito. Há dúvidas quanto a número e delimitação dos cantos (Os quatro cantos são 42.1-4; 49.1-6; 50.4-9; 52.13-53.12, enquanto que 42.5-7; 49.7-9a; 50.10s devem ser tentativas de interpretar os cantos originais. Aliás, a denominação 'canto não é muito adequada.). Mais variadas ainda são as opiniões sobre quem seja o Servo. A maioria dos pesquisadores defende a ideia de que se trata de um indivíduo. Entre estes predomina a concepção de que tenha sido o próprio profeta. Neste caso Dêutero-Isaías teria escrito os três primeiros cantos, enquanto que o último, que relata sobre o Servo, teria sido obra de seus discípulos. A interpretação mais antiga, no entanto, presente já no próprio texto (Em 49.3 foi incluído o termo 'Israel por um antigo intérprete, mas a inserção conflita com os vv. 5s) e defendida ainda hoje no judaísmo e por muitos pesquisadores, é a de que o Servo é um coletivo, ou seja, Israel. Isto condiz com o contexto de todo o livro, onde Jacó/Israel é expressamente designado “servo” diversas vezes (44.1.2,21; 45.4; 48.20; quanto a 49.3. veja a observação anterior).
Há dificuldades na interpretação coletiva, principalmente por causa dos traços bastante individuais e biográficos dos cantos. Mas talvez não se deva ver uma alternativa entre indivíduo e coletividade. Um indivíduo pode representar o seu grupo ou comunidade e, assim, espontaneamente ser confundido, ou melhor, identificado com o seu grupo ou comunidade (Wiener, p. 77). Parece que devemos pensar num grupo de exilados sofredores, esmagados no cativeiro. Através de seu sofrimento este grupo alcançou, em certa medida, conscientizar o resto do povo judeu (52.13-53.12). O destino do Servo é o destino deste povo sofrido. A salvação que o Servo irá experimentar no final (após a sua morte!) é a libertação que está à espera do povo aflito (53.10-12).
Algo novo é que, nestes cantos, o sofrimento do Servo é interpretado não mais como castigo de Deus, mas positivamente como vontade de Deus: alguém (ou um grupo) sofre vicariamente, pelas nossas transgressões (53.5; cf. 1 Co 15.3). Esta concepção é a que encontramos na interpretação da morte de Jesus. Não é de estranhar, portanto, que o Novo Testamento, na tentativa de explicitar a fé em Jesus, tenha encontrado tanta riqueza e tanta atualidade na mensagem de Dêutero-Isaías
III — Bibliografia
– ÉLLIGER, K. Deuterojesaja. In: Biblischer Kommentar Altes Testament. Vol. 11/1. Neukirchen/VIuyn, 1978.
– MESTERS, C. A missão do povo que sofre. Petrópolis, 1981.
– PREUSS, H.D. Deuterojesaja. Eine Einführung in seine Botschaft. Neukirchen/VIuyn, 1976.
– RAD, G. von. The Message of the Prophet». New York, 1967.
– SCHÖKEL, LA. — – DIAZ, J.L.S. Profetas. Tomo l. In:Nueva Bíblia Española. Madrid, 1980.
– STEINMANN, J. O livro da consolação de Israel e os profetas da volta do exílio. In: Estudos Bíblicos. Vol. 8. São Paulo, 1976.
– WESTERMANN, C. Das Buch Jesaja – Kap. 40-66. In: Das Alte Testament Deutsch. Vol. 19. Göttingen, 1966.
– WIENER, C. O Dêutero-Isaías. O profeta do novo êxodo. In: Cadernos Bíblicos. Vol 7 São Paulo, 1980.
Proclamar Libertação 08
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia