Prédica: Jeremias 20.7-13
Autor: Nelson Kirst
Data Litúrgica: Domingo Oculi
Data da Pregação: 06/03/1983
Proclamar Libertação – Volume: VIII
I — Tradução
V.7: Tu me seduziste, Javé, e eu me deixei seduzir. Tu me violentaste e venceste. Tornei-me objeto de escárnio o dia inteiro. Todo mundo zomba de mim.
V.8: Pois sempre que eu f alo, eu berro! Violência! Opressão!, eu exclamo. Pois a palavra de Javé tornou-se para mim vergonha e opróbrio o dia inteiro.
V.9: Então, eu disse: Não me lembrarei dele e não falarei mais no seu nome! E (isso) se tornou no meu coração como fogo ardente, preso nos meus ossos. E eu me esforço por aguentar, mas não consigo.
V. 10: Pois ouvi a murmuração de muitos — horror por todos os lados! —: Denunciem! Denunciemo-lo! Todos os homens da minha paz (isto é, todos os meus amigos) estão à espreita da minha queda: Talvez ele se deixe enganar. Então nós o dominaremos e tomaremos nossa vingança (contra) ele.
V.11: Mas Javé (está) comigo como um herói poderoso, por isso meus perseguidores tombarão e não conseguirão (nada). Ficarão muito envergonhados, pois não foram compreensivos. Vergonha eterna que não será esquecida.
V.12: E Javé dos Exércitos prova o justo, vê rins e coração. Eu verei a tua vingança contra eles. Pois a ti confiei a minha causa.
V.13: Cantai a Javé, louvai a Javé, pois ele arrancou a vida do pobre da mão de maus.
II — Forma e lugar
Nosso texto faz parte das chamadas confissões de Jeremias (11.18-12.6; 15.10-21; 17.14-18; 18.18-23; 20.7-13, 14-18). De todas, a do nosso texto é certamente a mais veemente e passional, sua explosão de rebeldia é a mais violenta.
Em nenhum outro profeta temos, como em Jeremias, e especialmente em suas confissões, um entrelaçamento tão intrínseco e total entre o cargo profético e a pessoa. Vemos aqui, nas confissões, como a incumbência profética agarra e arrebata o homem Jeremias, deixando sulcos profundos e indeléveis na sua vida psíquica e física.
Percebemos logo na primeira leitura uma forte quebra entre os vv. 10 e 11. Nos vv.7-10 temos exclamações provenientes da mais profunda miséria humana; nos w. 11-13 há uma explosão de confiança e louvor a Javé. Este mesmo contraste violento se observa também em outros textos que são, como o nosso, lamentações do indivíduo: SI 6.8-10; 26.12;31.19ss.
A explicação que se dá para tal contraste é a de que, no lugar vivencial original da lamentação do indivíduo, no templo, ocorria, entre uma parte e a outra, o oráculo do sacerdote, garantindo ao fiel o atendimento de Javé. A segunda parte seria, então, a resposta do fiel a tal oráculo. (Temos vestígios de um tal oráculo nos salmos 20.7 e 85.8, e uma citação explicita no S112.6, v.5 no Almeida.)
Normalmente, a primeira parte da lamentação do indivíduo é composta de alusões à situação (em que o indivíduo descreve seu sofrimento) e súplicas (para que Javé intervenha e mude a situação). No nosso texto, porém, não há súplicas. Em seu lugar, Jeremias coloca acusações a Javé.
A estrutura dos vv.7-13 é, portanto, a seguinte:
vv.7-10 — a lamentação, contendo alusões à situação e acusações a Javé;
vv.11-13 — a certeza de atendimento, expressando confiança na intervenção de Javé.
Normalmente ocorre, entre ambas as partes, o oráculo do sacerdote, no templo. Por tudo o que sabemos de Jeremias, porém, é inimaginável que ele tenha ido ao templo para buscar lá o consolo para o seu estado depressivo. O que teria, neste caso, substituído aqui o oráculo sacerdotal, provocando em Jeremias a mudança radical da lamentação para a certeza de atendimento? Mais adiante responderemos esta questão.
III — Palavra
V.7: Na sua lamentação, Jeremias ergue-se logo de inicio contra Javé com palavras que chegam à blasfémia. Na violência do seu desabafo, o profeta emprega termos inconcebíveis. O verbo PATAH significa seduzir para o mal (cf. Py 1.10 e 16.29), como qualquer machão seduz uma mocinha ingênua (Êx 22.15; v.16 no Almeida), ludibriar ou enganar por meio de palavras mentirosas (cf. Jz 14.15; 16.5; 2 Sm 3.25; SI 78.36). É assim que Jeremias encara seu envolvimento com Javé; sente-se vitima de tal sedução. Tudo o mais que segue na lamentação não passa de desenvolvimento desta acusação inicial.
E eu me deixei seduzir — ou seja: e eu, idiota, fui cair na conversa. Temos aí resignação, amargura, e uma boa dose de auto-acusação por não ter reagido, por se ter deixado ludibriar.
Tu me violentaste e venceste. Aqui, a imagem da luta. E, outra vez, resignação — misturada com inconformismo, revolta e sarcasmo.
Depois de seduzido como a mocinha pelo machão, depois de massacrado o raquítico pelo brutamontes, Jeremias é abandonado à gozação de todos, tornei-me objeto de escárnio. Sempre — o dia inteiro. Por todos — todo mundo — os seus compatriotas.
Na primeira parte do versículo — v.7a — Jeremias se reporta evidentemente à sua vocação; em especial, a 1.4-10. Tudo aquilo é colocado agora como um ato de violência de Javé contra um Jeremias ingênuo e indefeso. De acordo com o profeta, ao chamá-lo, Javé abusou de sua ingenuidade e o seduziu; Javé assaltou e dobrou-o. É assim que Jeremias sente agora a sua vocação, ao ver que sua pregação profética só lhe traz inimizade (cf. 11.18S; 18.1883; 19.1-20.6; 36.5) e solidão cf. 7.16; 11.14; 15.17; 16.1ss; 17.15). Jeremias não se sente vocacionado, mas — violentado.
Na segunda parte do versículo — v.7b — Jeremias deve reportar-se à reação de seus conterrâneos diante de sua pregação. Sua anunciação do juízo, seu chamamento ao arrependimento apenas lhe colhem zombaria. Aqueias palavras que Javé colocou em sua boca (1.9), aquelas palavras pelas quais Javé velaria (1.11s) — aquelas palavras só provocam risos, ninguém as leva a sério.
V.8: No v.7b falava-se de sofrimentos psíquicos; aqui, de físicos. Qual é a causa do sofrimento do profeta? V.8b: a palavra de Javé tornou-se para mim vergonha e opróbrio o dia inteiro. Por quê? A resposta está escondida em 17.15: Eis que eles me dizem: Onde está a palavra de Javé? Que se cumpra! A palavra, o juízo que Jeremias é obrigado a anunciar, não se cumpre. Com isso, tal palavra volta-se contra ele próprio, tornando-o objeto de escárnio e gozação.
V.9: Este versículo encerra toda a profundidade e complexidade do drama de Jeremias, no todo de sua existência. No momento em que pretende dar o passo mais fácil, deixar Javé de lado, não falar mais no seu nome, ele percebe que isso não é mais possível. Jeremias não escapa mais de Javé. A luta entre querer fugir de Javé e estar definitiva e irrevogavelmente dominado por sua presença provocam no profeta uma tensão insuportável, que chega a atingi-lo em seu físico.
Eu me esforço por aguentar, mas não consigo. Está aí toda a consciência de sua impotência.,Tem que continuar sendo profeta, tem que continuar suportando perseguição e zombaria. Assim como não conseguiu resistir a Javé na vocação (1.4-10), também não o consegue agora. Jeremias, entregue nas mãos de Javé, um farrapo de desespero, frustrado, falido, indefeso, impotente — dilacerado entre a vontade de fugir e a obrigação de cumprir sua incumbência.
V.10: Violência, perseguição, e solidão. Jeremias está completamente só. Sente-se abandonado por Javé e por todas as pessoas. Do cumprimento de sua tarefa só resulta perseguição. E nesta miséria Jeremias está completamente só. A que se refere a vingança do
v. 10b? Provavelmente trata-se de vingança contra sua pregação de juízo.
Concluindo esta primeira parte, um comentário: Não é qualquer um que aqui se expressa de modo tão chocante. Não é qualquer revoltado antieclesiástico ou qualquer impiedoso. Quem assim fala é o servo de Javé, o mensageiro, o profeta, o porta-voz de Javé. O que temos ai não é a erupção temperamental de um jovem imaturo, mas a explosão de um indivíduo que levou extremamente a sério a incumbência recebida, que viveu esta incumbência até as últimas consequências. Exatamente este homem, este servo fiel diz estas coisas de Javé.
Se olharmos para o cap. 26, veremos que Jeremias efetivamente tinha motivos para proferir tamanha lamentação.
V.11: Depois da lamentação modifica-se completamente a atmosfera. Jeremias passa abruptamente da lamentação para a gratidão e o louvor. Como explicar esta brusca mudança? Se, por seu visceral antagonismo contra a classe sacerdotal, não podemos imaginar que Jeremias tenha ido buscar um oráculo sacerdotal no templo, que outro fato poderia ter provocado tamanho câmbio?
A resposta está em Jr 15.10-21. Lá temos, nos w.10-18, uma lamentação e em seguida, nos vv.19-21, uma resposta de Javé. De que fala aquela resposta de Javé? Não há sombra de dúvida: ela se refere claramente à vocação do profeta. São flagrantes os paralelismos entre 15.19-21 e o relato da vocação, especialmente 1.4-10 e 17-19. A partir dai, podemos afirmar o seguinte: na nossa perícope, entre os vv. 10 e 11, deve ter ocorrido uma palavra de Javé, em que este reafirma a Jeremias as promissões manifestadas por ocasião da vocação. Tal conclusão é confirmada logo no inicio do v.11, onde Javé (está) comigo é uma clara alusão a 1.8.
Quanto ao restante do v.11, note-se que não exprime um desejo de Jeremias. O fato de Javé estar com ele necessariamente fará com que seus inimigos tombem e caiam na vergonha. É uma simples constatação.
V.12: No v.12a, Jeremias expõe uma característica de Javé, que o reforça na sua certeza de atendimento. Javé conhece o ser humano, até o mais íntimo do seu ser. Por isso. desmascarará os inimigos do profeta.
No v.12b, novamente uma simples constatação — e não, sede de vingança. Se Javé está com ele, só poderá vingar-se dos inimigos, que, ao perseguirem seu mensageiro por causa da palavra, demonstram ser inimigos do próprio Javé. Por isso, a vingança não é do profeta, mas tua, do próprio Javé.
V.13: O v.13 contém uma explosão de alegria, na linguagem típica do gênero. Por ser linguagem litúrgica estereotipada, não convém que se force os seus conceitos.
IV — Em direção à prédica
Nosso texto oferece ricas chances de atualização. Ao trazê-lo para os dias de hoje, é fundamental considerar que entre Jeremias e nós aconteceu, histórica e teologicamente, Jesus Cristo. Com isso em mente, registramos aqui alguns aspectos que deveriam ser considerados numa atualização:
1. Na perícope subsequente à nossa, Jr 20.14-18, temos, logo após o canto de louvor de Jeremias, uma nova lamentação. Esta sequência é, evidentemente, redacional e não precisa refletir o desenrolar histórico dos acontecimentos. Mesmo assim, ela é bastante elucidativa. Mostra que, com 20,11-13, as coisas ainda não se resolveram para Jeremias, de uma vez por todas. Mostra que, na vida do profeta, os altos e baixos se sucediam, que Jeremias nunca ficou, em caráter definitivo, assentado nos píncaros da certeza e da fé. Sua vivência de fé constituiu-se de altos e baixos, de confiança e revolta, de certeza e de¬sespero, de obediência e acusação. Os dois momentos, juntos, constituem sua vivência de fé. Os dois momentos, juntos, marcam sua relação com Javé. Juntos significa, não numa sequência histórica, mas intrinsecamente interligados.
2. Numa atualização, isso nos deveria levar a alertar contra uma fé muito fácil, muito sem problemas, muito segura de si. Se nos orientarmos pelo exemplo de Jeremias, fé não significa garantia, segurança e certeza inabalável e definitiva para todo o sempre.
3. Numa atualização, por outro lado, deveríamos também dar uma palavra de incentivo justamente àqueles que não se consideram capazes dessa fé tão fácil. A eles deveríamos dizer, se nos orientarmos pelo exemplo de Jeremias, que pode ser multo legitimo brigar com Deus, revoltar-se e acusá-lo até a beira da blasfêmia. É claro, não nos referimos à revolta ou acusação de quem, em sua comodidade ou capricho, só procura uma saída fácil. Referimo-nos à revolta sofrida daquele que, como Jeremias, sente o fogo queimando nos seus ossos.
4. Numa atualização, deveríamos perguntar e responder o que pode hoje arrancar o indivíduo da sua revolta e acusação, colocando-o novamente numa relação adequada com Deus. O que pode assumir para nós o papel que teve, para Jeremias, a reafirmação das promissões de sua vocação? Hoje, não poderemos tocar neste assunto, sem falarmos do significado do evento de Cristo por nós.
5. Uma atualização do nosso texto só será legitima se considerar todos os três momentos: a) a revolta, b) a ocorrência que traz a mudança, c) a gratidão e o louvor.
Há uma prédica minha sobre este texto em: KIRST, N. Vai e fala! São Leopoldo, 1978, pp. 279-285.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, tu és bom demais para nós. Nós te decepcionamos muito. Só pensamos em ti, quando isso nos serve, ou quando não lemos mais outra saída. Dificilmente paramos para pensar o que tu queres de nós. Assim também foi na semana que passou. Muita coisa não estava certa. E, mesmo assim, tu permites que a gente venha sempre de novo aqui, falar contigo e pedir o teu perdão. A gente não merece isso. Senhor, mas, confiando na tua bondade, confiando que tu nos amas, nós te pedimos humildemente, mais uma vez: Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Nosso Deus, se nós chegamos aqui, hoje de manhã, e não ficamos em casa ou saímos a passeio, é porque sentimos necessidade de falar contigo, de ouvir o que tu tens a nos dizer, aqui, junto com os irmãos que estão conosco neste lugar. Nós precisamos ouvir do teu consolo, do teu perdão e daquilo que tu esperas de nós. Então, abre agora os nossos ouvidos e corações, e abençoa tudo o que for cantado, louvado, suplicado e proclamado aqui, hoje de manhã Amém.
3. Assuntos para intercessão na oração final: pelos que têm a tarefa de educar e orientar, nas escolas, nas igrejas, nos meios de comunicação; pelas famílias, para que sejam lugar de harmonia e entendimento, e um porto seguro para os seus membros; pelos solitários, doentes, idosos, deficientes físicos, para que tenham pessoas que os acompanhem; pelos enlutados para que sejam consolados com a certeza de que Cristo vive e nada, nem mesmo a morte, pode separar-nos da sua mão; pelos que sofrem em nosso meio, os subnutridos, os menores abandonados, os que são expulsos de suas terras, os que se vendem para sobreviver, os bóias frias, os Índios, os que são marginalizados e explorados, na cidade e no campo; pelas vítimas das guerras e de toda forma de violência, no nosso pais e no mundo; por cada um de nós, para que recebamos forças, a fim de sermos instrumentos de Deus no lugar onde nos colocou, no meio da solidão, do luto e das fraquezas, no meio da exploração e da violência ao nosso redor; pela difusão do Evangelho por todo mundo, a começar por nossas casas, para que a Palavra de Deus traga muito fruto