Prédica: João 1.19-23 (24-28)
Autor: Hans Alfred Trein
Data Litúrgica: 4º Domingo de Advento
Data da Pregação: 19/12/1982
Proclamar Libertação – Volume: VIII
I — Considerações exegéticas
João Batista é testemunha, instrumento de preparação, lâmpada provisória. O lugar do que acontece nesse texto é Betânia, do outro lado do Jordão, onde João Batista batizava. O tempo é indicado em Lc 3 115° ano de Tibério César, aproximadamente no ano de 29 d.C.
A primeira parte do testemunho de João Batista (w. 19-23) o apresenta como mera voz, anunciando o Messias. Os judeus têm, no Evangelho de João, um significado mais indicativo que nos sinóticos. João caracteriza, em muitas oportunidades, os judeus como adversários de Jesus. Discípulos de Jesus e judeus formam, em seu evangelho, os dois campos antagónicos: os seguidores do Messias e os seus inimigos.
Vem a João Batista uma delegação de peso: sacerdotes e levitas da capital – os dignitários do templo, acompanhados pelos levitas (parcialmente encarregados do policiamento do templo), embora as verdadeiras autoridades, por enquanto, fiquem ainda nos bastidores. O estilo da delegação já tem características judiciais. Por isso a solene formula judicial ao pronunciar seu depoimento, dizendo o que ele não é: “ Ele confessou e não negou; confessou… (v.20)
Já aparece no prólogo: João Batista não é a luz (vv.6-8,15). Ele não é o Cristo, o Messias, o Ungido, o enviado de Deus, para libertar o povo e instaurar o Reino de Deus. Também não é Elias, que, conforme Ml 3.1; 4.5-6, devia voltar para preparar a visita de Javé ao seu templo — embora a tradição sinótica o tenha apresentado como tal (Mt 17.12). João Batista cita apenas o texto de Is 40 3, sobre a voz que clama no deserto, mandando aplainar o caminho para o Senhor. Também o titulo de profeta é negado por João Batista, embora os sinóticos implicitamente lhe outorgaram (Mt 11.13; Lc 7.26). Interessante, também, é observar que os sinóticos dão a entender que João Batista sabia quem era Jesus; ao mesmo tempo, porém, o fazem perguntar, se de fato Jesus era o que haveria de vir, ou se era preciso esperar outro (Mt 11.3; Lc 7.19). Já em João, a condição de Messias, de Jesus Cristo, e a condição de instrumento, de João Batista, estão expressa e indubitavelmente claras. Essa notável diferença em relação à tradição sinótica pede explicação: o evangelista João tem em mente setores das comunidades que atribuíam a João Batista características messiânicas. Por isso, acentua que ele não é o Elias redivivo, nem o Profeta (que na concepção judaica tinha características messiânicas, ao contrário dos profetas em geral), mas que tem consciência clara de ser preparador. Problemática semelhante teve o apóstolo Paulo (1Co 1.12s).
Na segunda etapa do inquérito (vv.24-28), os mandantes da delegação são identificados como sendo os fariseus (v.24). Historicamente isso é pouco provável, porque no tempo de Jesus as autoridades do templo eram os saduceus, sendo que os sumos sacerdotes pertenciam a essa classe. O evangelista nunca os menciona, pois não é propriamente historiador, mas evangelista; escreve para o seu tempo. O evangelista João reflete a situação do fim do primeiro século, quando, depois da destruição do templo (70 d.C.), não mais a aristocracia sacerdotal (os saduceus) e, sim, os fariseus (chefes das sinagogas, rabinos, escribas) assumiram a hegemonia do judaísmo.
Por isso, devemos suspeitar que a pergunta dirigida pelos enviados dos fariseus a João Batista reflete alguma atualidade também para os leitores de João: por que batiza ele, se não tem valor messiânico? Pois o batismo é uma realidade messiânica, pelo menos o batismo pelo Espírito. Por isso, é enfatizado o batismo com água de João Batista, como anúncio daquele que vem depois. Enquanto em Mc 1.4 o batismo do João Batista é caracterizado como batismo de arrependimento para o perdão, em Jo 1.26-27 nem mesmo este sentido lhe é dado, pois só Jesus tira o pecado do mundo (v.29). O batismo de João Batista é moro testemunho daquele que vem e que já está, incógnito, no meio do povo, só que os interlocutores não o conhecem, porque não têm condições de conhecê-lo. O mundo e seus representantes não o conhecem (Jo 1.10).
II – Reflexões
Podemos imaginar muito bem a reação da suprema autoridade religiosa e civil do povo judaico: um desconhecido inicia uma atividade bastante invulgar. Aparece no deserto. Prega sermões vigorosos. Raça de víboras, quem vos induziu a fugir da ira vindoura? (Lc 3.7) Atrai multidões. Batiza os arrependidos. E fala de um reino de Deus que está próximo Que significa tudo isso? Com que autoridade esse homem está agindo? Ademais, não se entendeu com os guias espirituais do povo, não solicitou licença das autoridades eclesiásticas. Será que vamos perder membros? Será que está querendo enganar o povo? Que interesses velados tem esse homem, materiais, políticos? Que alcance poderá ter sua atividade? Como é que as autoridades estrangeiras de ocupação vão entender isso?
É a típica reação da instituição, dos representantes do poder A inquisição é uma realidade histórica de todos os tempos, desde suas manifestações mais cruentas, com torturas e condenações à morte, até as formas mais sofisticadas e aparentemente mais amenas. No momento em que instituição e poder se sentem ameaçados por movimento e carisma, começa a funcionar todo aparato de morte para os outros e vida para si mesmo. Assim como o Estado, também a Igreja, como instituição humana, tem essa característica.
Parece que João Batista, depois desse interrogatório, não foi considerado muito perigoso pelas autoridades judias. Não o combateram abertamente, mas também não aceitaram seu batismo (Lc 7.29-30). Pode ser que até simpatizaram tacitamente com sua pregação, considerando-a uma renovação das forças morais e reavivamento espiritual do povo sob seu domínio. Sua atitude foi de indiferença. Jesus problematiza essa indiferença dos fariseus em Lc 20.11-8. Diante das testemunhas pode haver indiferença; diante de Jesus, não. Quem não é por mim é contra mim! É preciso preparar-se para essa opção.
Pela ótica da dominação, seja de que ordem for, o Evangelho não é só escândalo e tolice, mas clara subversão. O mundo, seus poderes e valores dizem: minha vida é o que importa, mesmo que implique na tua morte. O Evangelho diz: tua vida é o que importa, mesmo que isso implique em minha morte. Cristo é subversivo! O Evangelho é subversivo! Advento, o tempo da preparação, é um período altamente subversivo, se estiver despido do manto religioso que o encapuza e perverte, que o domestica e rotiniza. Quem está hoje preso ou sendo inquirido por causa do Evangelho?
III — Meditação
Lutero, sobre esse texto: Neste evangelho é delineado o ministério da pregação no Novo Testamento. Numa prédica sobre esse texto, deverá, portanto, ser mostrado, como acontece reto e fidedigno testemunho de Cristo neste mundo.
Numa reunião de comunidade tentamos encontrar em conjunto entendimento e sentido desse texto. A pergunta de entrada foi: Por que os judeus queriam saber quem era João Batista? Eles não sabiam ou era falta de fé? Em seguida a conversa se concentrou no v.23:
1. De quem é a voz que clama? Pode ser voz de Jesus que ainda não estava em atividade. Pode ser porta-voz de outros que vivem numa situação de deserto = não vida. Voz do que clama é um instrumento que não quer ser aplaudido, até mesmo sem nome. João Batista ficou atrás da moita, se despersonificou. Parece que é exatamente isso que o texto quer dizer. Não importa saber quem é a voz. Importa saber a função que ela tem; função de não aparecer, mas preparar. Importa que ele cresça e que eu diminua. (Jo 3.30) A testemunha não é nada mais do que voz, do que preparador, que vai perdendo a sua função, à medida em que vai surgindo o essencial. João Batista foi preparador da ação de Jesus Cristo. Cristãos testemunhas são preparadores da ação do Espírito Santo.
2. O que vem a ser deserto no qual a voz clama? Deserto não tem vida. Deserto pode ser figura para a falta de esperança do povo Deserto é deserto mesmo, um lugar onde não cresce mais nada. Deserto me lembra a figura de um filósofo da antiguidade, o filósofo do barril, que saiu a procurar pessoas com uma lanterna na mão em plena luz do dia. Deserto é um lugar onde é difícil de sobreviver; o mundo está virando em deserto. A juventude está num deserto sem rumo. A monocultura química e venenosa vai fazendo desertos. A terra ficará cada vez mais deserta à medida em que não for administrada em resposta á bondade de Deus. Deserto não tem eco; é a falta de respostas aos apelos proféticos de preparar o caminho do Senhor. Temos que preparar o caminho para a segunda vinda de Cristo. Deserto é um lugar, onde já havia vida anteriormente, mas que está destruída. Já havia vida no movimento cristão antigo; agora resta um deserto religioso. A característica de vida da fé se perverteu em grande parte num blá-blá-blá religioso A instituição eclesiástica consegue se manter com isso, mas a Igreja de Jesus Cristo está ficando deserta.
Advento é época de preparação. Dar testemunho não é propriedade privada dos pastores, mas tarefa da comunidade cristã. Ao mesmo tempo em que a comunidade é testemunha de Cristo no deserto do mundo, ela precisa aperceber-se do deserto dentro dela mesma.
Fica a pergunta sobre como preparar o caminho do Senhor. No texto paralelo em Lucas essa pergunta foi feita a João Batista. Ele respondeu assim: Produzam bons frutos do arrependimento. Quem tiver duas túnicas reparta com quem não tem, e quem tiver comida faça o mesmo. Aos representantes da dominação disse: Não coloquem fardos pesados demais em outros para o seu proveito próprio. Aos soldados disse: Não torturem, não dêem denúncia falsa, não aceitem suborno.
IV — Pistas para Prédica
1. A época de Advento é a época de João Batista, que, sem glória e sem nome, se deixou usar por Deus como instrumento preparador. Época de palavras duras ao lado de animada expectativa de vida. O Messias está entre nós. Reconhecemo-lo? A voz que clama hoje no deserto são os pobres?
2. Ou será a comunidade cristã como João — não o Cristo, não o fim — mas um instrumento? Não uma estrela com brilho próprio, mas um planeta alumiado pelo sol Cristo; por isso a comunidade tem condições de alumiar no mundo deserto.
3. O verdadeiro testemunho de Cristo implica reação violenta por parte do mundo, seus poderes e valores. O deserto reage; mata qualquer vida que o queira transformar. Mas nem sempre o consegue apesar da instituição Igreja, como o mostrou a ressurreição de Cristo.
4. Como ser instrumento, preparar o caminho do Senhor? João Batista responde aos seus ouvintes em Lc 3.10-14 Como vamos nós responder?
V — Subsídios Litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus, Pai do perdão! Queremos lembrar neste culto: além de outras tantas falhas, especialmente de um grande pecado: não estamos sendo teus instrumentos nem como pessoas, nem como comunidade. Observando bem, estamos vivendo em nossa comuni¬dade como num clube: só os associados se beneficiam. Ficamos satisfeitos quando os departamentos funcionam regularmente, quando cada membro e atendido conforme o seu direito, quando tem movimento, quando a comunidade aparece com posição de destaque na sociedade. À luz de tua Palavra temos, que reconhecer que não é essa a função de uma comunidade cristã. Precisamos reorganizar a nossa comunidade, para que ela funcione como teu instrumento a fermentar, salgar e alumiar o mundo. Sabemos que contas conosco, para transformar o deserto em que vivemos num jardim exuberante, onde habita a justiça. Ajuda-nos a assumir as consequências da tua sempre renovada graça. Tem piedade de nós. Senhor!
2. Oração de coleta: Amado Senhor, agradecemos-te por mais esse encontro de reflexão e louvor. Reúne-nos agora em torno de tua Palavra, ajudando-nos a compreender nossa situação de testemunhas de Cristo nesse mundo. Especialmente neste Advento faze-nos lembrar que, como comunidade, somos teu instrumento que deve soar como tu o tocas com tua Palavra pois deixa-nos ir para casa encorajados, para viver e organizar a missão que tu nos deste. Amém.
3. Assuntos para a oração final: Agradecimento pela Palavra que abala e incentiva, que desinstala e encoraja, intercessão por alguma situação específica do local: lembrança de algumas situações de deserto a partir de noticias; pedido peto Espirito Santo, para orientar a comunidade com a coragem dos primeiros cristãos às situações de deserto – mencionar algumas – do local.
VI — Bibliografia
– GOERL, O. Púlpito. Porto Alegre, s.d.
– SCHULZ, S. Das Evangelium nach Johannes. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol. 4. Göttingen, 1972.
– BOFF, L e BOFF, C. Comunidades Cristãs e Política Partidária — Veio para dar testemunho. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, 38(151): 23-25, 1978.