Prédica: João 17.20-26
Autor: Heinz Ehlert
Data Litúrgica: Ascensão
Data da Pregação: 12/05/1983
Proclamar Libertação – Volume: VIII
I — Considerações exegéticas
1. Texto e contexto
As variantes do aparelho crítico apresentadas ao texto adotado pelo NT grego de Nestle, 16. ed., não apresentam alterações sensíveis •o sentido da passagem. A tradução de Almeida satisfaz.
O trecho indicado para a pregação encontra-se no contexto da oração de Jesus, conhecida como oração sacerdotal. Caracteriza, pois, Jesus como sacerdote que intercede pelos seus, colocando-se como mediador entre Deus e eles. O evangelista João testemunha como Jesus pratica a oração (6.11; 11.41) e a recomenda a seus discípulos (15.7,16). No presente capítulo encontramos a oração de Jesus pelos seus em toda a sua profundidade. A partir do cap. 13, João apresenta a despedida de Jesus de seus discípulos. Esta inclui atos simbólicos (o lava-pés), palavras parenéticas (de exortação) e, agora, a oração sacerdotal, como oração de despedida. Ela é, ao mesmo tempo, meditação. Foi formulada a partir da situação limítrofe da Sexta-feira Santa (Strathmann, apud Voigt, p. 209). A comunidade, em cujo meio surge o Evangelho de João, conhece o Senhor glorificado e tem a certeza de que ele assim intercede por ela.
O trecho em pauta subdivide-se em duas partes: vv. 20-23 e vv. 24-26.
2. Análise do trecho
a) Oração pela unidade, para servir ao mundo: vv. 20-23
V.20: Primordialmente Jesus intercedeu pelos seus, isto é os homens que me deste do mundo (17.6), ou seja os discípulos. Podemos admitir que, além dos doze, trata-se dos que creram em seu nome, receberam as suas palavras e verdadeiramente reconheceram que ele veio do Pai (17.8). Durante o seu ministério terrestre, protegeu-os como verdadeiro pastor e guia (17.12). Isso deve continuar agora que ele é glorificado. A sua oração, porém, estende-se à Igreja de todos os tempos. Com outras palavras: expressa-se aqui a certeza de que o envio dos discípulos ao mundo vai ter sucesso, a comunidade dos discípulos crescerá. Eles serão instrumentos da missão de Cristo no mundo. Fica claro que são enviados com a Palavra. Esta Palavra nada mais é do que o próprio Evangelho de Cristo, anunciado e vivido. Para que isso aconteça, isto é, para que seu testemunho não seja apenas da boca para fora, Jesus intercede por eles. Assim, a Igreja é assistida, carregada por seu Senhor em sua trajetória através dos tempos.
V.21: O grande objetivo da oração de Jesus é a unidade. Por que tanta ênfase sobre este ponto? Jesus conhecia os homens. A própria história de seu povo também lhe servia de exemplo. Há tanta coisa que pode dividir o povo de Deus. E a desunião comprometeria fatalmente a divulgação do Evangelho. As divisões no seio da Igreja, que, aliás, já apareceram no primeiro século da era cristã, invalidariam o seu testemunho no mundo. Mesmo que o texto ainda não tenha em vista a divisão em diferentes confissões e denominações, ele atinge — e até tanto mais — a nossa situação eclesiástica de hoje.
A unidade preconizada tem a sua imagem e força na unidade do Filho com o Pai. O fato de que Jesus ora pela unidade é significativo: a unidade provém de Deus, e é concretizada, na medida em que a buscarmos na união com o Filho e com o Pai. Não pode, pois, ser alcançada por esforço e organização humana, mas na humilde sujeição a Cristo, cujo último mandamento foi o amor (Jo 13.34,35) e cuja última oração objetiva a unidade dos seus.
Vv. 22 e 23: Uma dádiva é mencionada: a glória (DOXA, KABOD). Ela tem a sua origem em Deus. Trata-se da glória, da qual já fala o inicio do evangelho (1.14). Ela revela a maneira de agir de Deus, para que não haja dúvida sobre o seu objetivo salvífico.
A Igreja, que recebe esta glória, é qualificada, assim, a ser portadora da revelação: Deus estava em Cristo Jesus, o nazareno, reconciliando consigo mesmo o mundo (2 Co 5.19).
A unidade entre Deus e o Filho, e entre o Filho e os seus, é expressão de comunhão íntima e pessoal. Não se extingue a individualidade e a identidade pessoal de cada um, apenas se destaca a comunhão. Esta comunhão deve caracterizar a Igreja e será um sinal no mundo. Pessoas, com todas as fraquezas e imperfeições humanas, são capazes de formar e viver uma comunhão de fé, na qual as diferenças e tensões, resultantes de raça, cor, cultura e tradição religiosa anterior, podem ser superadas. A partir da comunhão com Deus e com Cristo, as pessoas tornam-se capazes para o amor, no seu sentido mais profundo (cf. 1 Co 13). E, mais uma vez, este amor não tem apenas seu exemplo, mas também a sua força no amor de Deus que torna possível esta comunhão íntima. Assim, ele criou e continua criando as condições para um convívio diferente no mundo. O melhor serviço que a Igreja presta ao mundo é a vivência deste amor, em palavra e ação. O objetivo salvífico se realiza, quando, através deste testemunho da Igreja, o mundo crê que Jesus é o enviado de Deus para a salvação.
b) Participação na revelação total da glória: vv.24-26.
V.24: A prece de Jesus é, ao mesmo tempo, declaração de vontade — a vontade do Filho, que está em perfeita sintonia com o Pai. Neste sentido, torna-se uma promessa para a Igreja peregrina (cf. 14.1-H), Se já agora a Igreja pode ver a glória do Filho de Deus que se fez homem (1.14), então a promessa é de que ela vai conhecer toda a glória escatológica, isto é, a plenitude da glória no além. Agora vive no crer, depois poderá ver (cf. 1 Co 13.12).
V.25: Deus é chamado de justo, porque confirma a fé dos discípulos de Jesus e, ao mesmo tempo, o juízo de Deus sobre os que não o quiseram conhecer, que não o reconheceram como Senhor e Salvador, que o rejeitaram. Também o que vai acontecer à Igreja no fim dos tempos é consequência da obra justificadora de Deus.
V.26: A revelação do Filho continua até a consumação do século, quando então se completa. O amor de Deus, que agora pertence ao Filho glorificado, também pertencerá, então, por toda eternidade, aos que são de Cristo.
II — Meditação
1. Reflexão meditativa sobre o texto
O pai do pietismo, Ph. J. Spener, cuja influência sobre a Igreja Evangélica e o mundo cristão até hoje se faz sentir, nunca teve a coragem de pregar sobre o cap. 17 do Evangelho de João, ao longo de 40 anos de atividade eclesiástica. No leito de morte, porém, por três vezes pediu que lhe lessem a oração de despedida de Jesus.
Talvez isso tenha sido modéstia demasiada. Mas, sobretudo, deve ter sido o mais profundo respeito. E é justamente isto que sentimos, quando lemos e meditamos sobre este capitulo do quarto evangelho. E algo semelhante a um testamento. Certamente não é acaso que ele preceda o relato sobre a Paixão, a morte e a ressurreição de Jesus.
O trecho em pauta é o final desta 'oração sacerdotal', como passou a ser chamada. Durante a história da Igreja, os cristãos se relacionaram de diferentes maneiras com esta oração. Sempre, porém, prevaleceu este respeito que também hoje se impõe, quando meditamos sobre ela. Toda a dedicação, amor, desvelo do Senhor e Redentor pelos seus se expressa ai. É o Senhor quem chamou, instruiu, protegeu os seus, sofreu e morreu por eles e continua a interceder por eles, como ressurreto e como aquele que ascendeu ao Pai. Confirma-nos na certeza de que temos um advogado junto ao Pai, o qual também está à direita de Deus e intercede por nós, pessoalmente e como Igreja (Rm 8.34; 1 Jo 2.1 ;Hb 7.25).
No dia da Ascensão do Senhor não se pode deixar de lembrar isto com insistência. Mesmo que João não tenha um relato especifico sobre a ascensão do Senhor, o presente testemunho da glorificação do Filho a inclui. A Igreja adquire grande consolo e força do fato de o Senhor, que corporalmente não está com ela, estar junto ao Pai. Isto significa que ele não está longe, mas assiste com sua Palavra, com os Sacramentos e com seu Santo Espírito.
A oração sacerdotal, como legado, é uma pregação muito incisiva, tanto para o conviver da Igreja e sua missão, quanto para a esperança que a alenta. As considerações exegéticas já destacaram a importância da unidade no convívio dos discípulos. O nosso século viu nascer o movimento ecumênico, que visa a unidade dos cristãos. Mas viu também uma proliferação sem precedentes de diferentes organizações e denominações eclesiásticas. Mesmo assim, pode-se afirmar que o movimento ecuménico teve frutos significativos. Houve aproximação e cooperação acentuada entre as grandes confissões cristãs, inclusive a Igreja Católica Romana. Foi criado o Conselho Mundial de Igrejas. Outros conselhos regionais e nacionais surgiram com o mesmo objetivo. Mas, até agora, não foi possível abranger todas as Igrejas e denominações cristãs num único corpo ecumênico, dando expressão à unidade que Cristo quer e dá. Seitas e organizações religiosas que, se dizem cristãs, concorrem para aumentar a complexidade do quadro religioso e confundir o mundo, no que toca o cristianismo.
Entre as Igrejas e/ou denominações, além disso, há um bom número de orientações teológicas mais conservadoras que se distanciam ou também se opõem francamente ao movimento ecumênico representado pelo Conselho Mundial de Igrejas. Na América Latina surgiu, em 1978, o CLAI (Conselho Latino Americano de Igrejas). Visa a unidade dos cristãos e dos povos deste continente. Embora autônomo e não vinculado ao CMI, é visto com bastante reserva por boa parte das Igrejas de linha conservadora, havendo inclusive a tentativa de uma organização paralela que, na verdade, persegue os mesmos objetivos.
Será que não levamos suficientemente a sério a oração e o desejo de nosso Senhor pela unidade?
O movimento ecumênico teve, na sua origem, o seu maior impulso para o seu objetivo missionário. Divisões, e polémicas entre os cristãos foram, no inicio do século, reconhecidas como escândalo e como o maior empecilho na divulgação do Evangelho. Esta preocupação não perdeu nada de sua atualidade. Os cristãos serão autênticos, na medida em que viverem o amor fraternal, fruto da comunhão com Cristo. Este amor ativo deve incluir a todos os que confessam a Jesus Cristo como único Senhor e Salvador, testemunhado nas Sagradas Escrituras do AT e do NT.
A Igreja está no mundo, é enviada ao mundo com a Palavra, mas nunca se pode igualar ao mundo, adotando métodos ou regras do mundo que contrariam o Senhor e seu mandamento de amor. Por isso mesmo, o melhor serviço que a Igreja pode prestar ao mundo é praticar o amor fraternal, segundo Jo 13 e 1 Co 13. Isso não a impede de denunciar toda a injustiça e todo o pecado contra o amor, nem de nadar contra a correnteza da corrupção, da mentira e da opressão. Mas o seu testemunho não pode esgotar-se em combater os males da sociedade. Antes deve levantar sinais concretos do amor, mostrando solidariedade, desistindo de poder temporal, mas demonstrando poder espiritual, deixando de lado o orgulho para andar em humildade.
Seguir a verdade em amor (Ef 4.15) — eis a questão.
O impulso missionário deve ser renovado em nossas comunidades, Levar o Evangelho a toda a criatura (longe e perto da gente) é compromisso que a Igreja universal continua tendo neste final do séc. XX. Isso requer atuação e participação de cada um dos membros da Igreja, cada qual com seus dons, e não só de suas lideranças e de seus especialistas. Da mesma maneira, o compromisso ecumênico não pode ser deixado a cargo de líderes e cúpulas da Igreja.
Jesus orou pelos seus, isto se refere a cada um deles. Espera o engajamento concreto de todos. A glória por vir será o alento diante das frustrações e dos fracassos que temos que enfrentar. O Reino de Deus futuro faz parte da proclamação e do testemunho cristão, tão bem quanto o anúncio de sua presença entre nós agora.
2. Escopo
Jesus ora por sua Igreja, para que ela conviva no amor fraternal, em unidade, testemunhando, assim, ao mundo o amor de Deus, alentada pela esperança da glória eterna, em comunhão com o Filho e com o Pai.
III — Indicações para a prédica
Podemos iniciar a prédica, perguntando se, na opinião da comunidade, a unidade dos cristãos no mundo de hoje deveria ser considerada um sonho, um ideal ou uma meta. Constatar-se-á, em seguida, que, de acordo com o trecho estudado, a unidade foi a grande preocupação e objeto de oração na chamada oração sacerdotal, oração de despedida de Jesus. Por quê? Que nos parece a divisão dos cristãos em muitas confissões, denominações e organizações eclesiásticas? Deve-se destacar o prejuízo que resulta disso para o testemunho cristão e sua credibilidade num mundo secular, respectivamente sincretista e pagão.
Depois disso será bom aludir ao evento comemorado no dia da Ascensão do Senhor, esclarecendo seu significado: lembrança do Senhor, crucificado e ressurreto, como aquele que, elevado à glória, está à direita do Pai. O tempo depois da Ascensão é o tempo da Igreja até a vinda do Senhor. Tempo da Igreja significa tempo de missão. Nesse contexto, devemos mostrar a relevância da unidade — sua busca e sua dádiva, no cumprimento da missão.
Enfatizado, assim, o compromisso missionário em nossos dias, apontaremos possibilidades concretas de engajamento pessoal nesta missão, hoje, em nossa vila, nossa cidade, nosso país, nosso mundo. Deve ficar claro que missão é mais que anúncio verbalístico. Inclui diaconia e voz profética, sem querer valer-se de práticas correntes no mundo. Inclui, afinal, viver, em unidade com o Senhor, o amor fraternal, que será sinal do Reino de Deus, no meio do mundo de corrupção mentira, desonestidade, logro e destruição.
Numa parte final, deve ser anunciada a esperança, baseada na própria oração-promessa do Senhor: O Reino de Deus futuro, a glória por vir,(cf. vv. 24-26). Tanto a certeza da presença do Senhor que intercede por nós e que nos chama à unidade (que ele mesmo oferece), quanto a promessa do reencontro perfeito na eternidade alentam a Igreja a persistir neste tempo, com alegria e entusiasmo na sua missão.
IV — Subsídios Litúrgicos
1. Hinos: 73. 102 ou 101. 74 (Hinos do povo de Deus).
2. Intróito: É Cristo quem morreu, ou antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus, e também intercede por nós.' (Rm 8.34)
3. Confissão de pecados: Misericordioso Deus e Pai, Arrependidos, confessamos perante ti que faltamos com o amor. Por isso estamos desunidos Perdoa-nos a insensibilidade para com os irmãos. Purifica-nos e renova-nos por teu Santo Espirito. Tem piedade de nós, Senhor!
4. Anúncio da graça: O Senhor tem piedade de nós e aceita a nossa confissão, pois assim diz a sua Palavra: Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus. (Rm 8.28)
5. Oração de Coleta: Senhor glorioso, chegamos a ti para te louvar e adorar. Instrui-nos por tua Palavra, para que nossa fé, nosso amor e nossa esperança sejam renovados. Concede verdadeira comunhão por tua graça Amém.
6. Assuntos para a oração final: agradecimento pelas oportunidades que se nos oferecem para nos encontrarmos e cooperarmos com irmãos de diferentes denominações; engrandecimento do amor de Deus que dá a união, apesar de nossas reservas; pedido por maior unidade na família da fé e com ir-mãos de outras confissões; pedido por olhos abertos para desafios e oportunidades de missão em nossa cidade, nosso estado, nosso país; intercessão em favor da missão indígena da Igreja; intercessão em favor de todo o trabalho de evangelização e instrução; intercessão em favor dos oprimidos, dos enfermos, dos moribundos.
V — Bibliografia
– BÜCHSEL, F. Das Evangelium nach Johannes. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol. 4. Göttingen, 1949.
– BÜLCK, W. Dos Johannesevangelium und die Gegenwart. 2. ed. Hamburg, 1948.
– HOLTZ, T. Meditação sobre João 17.20-26. In: Calwer Predigthilfen. Vol. 7. Stuttgart, 1968.
– VOIGT, G. Meditação sobre João 17. 20-26. In: Der rechte Weinstock. 2. ed. Berlin, 1974.
– SCHNEIDER, J. Das Evangelium nach Johannes. In: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. Vol. esp. 2. ed. Berlin, 1978.