Prédica: João 21.15-19
Autor: Manfredo Siegle
Data Litúrgica: Domingo Misericordias Domini
Data da Pregação: 17/04/1983
Proclamar Libertação – Volume: VIII
I — O texto
V.15 – Após terem tomado a refeição, Jesus disse a Simão Pedro: Simão, filho de João, amas-me mais do que estes? Disse-lhe: Sim, Senhor, tu bem sabes que eu te amo. Respondeu-lhe: Apascenta meu rebanho.
V.16: Pela segunda vez tornou a perguntar-lhe: Simão, filho de João, tu me amas? Respondeu-lhe: Sim, Senhor, tu sabes que eu te amo. Disse-lhe: Cuida das minhas ovelhas.
V.17: Pela terceira vez Jesus lhe perguntou: Simão, filho de João, tu me amas? Pedro ficou triste, porque lhe perguntara pela terceira vez: Tu me amas? Respondeu-lhe: Senhor, tu sabes todas as coisas; tu sabes que eu te amo. Disse-lhe Jesus: Apascenta minhas ovelhas.
V.18: Em verdade, em verdade te digo, quando eras mais jovem, tu mesmo te cingias e andavas por onde querias. Quando, porém, ficares mais velho, estenderás tuas mãos e alguém outro te cingirá e ele te levará para onde não queres.
V. 19: Isto ele lhe disse, anunciando com que tipo de morte haveria de glorificar a Deus. Então respondeu-lhe Jesus, dizendo: Segue-me!
II — Considerações sobre o texto
A perícope deste domingo, Misericórdias Domini, faz parte de um bloco (cap. 21) considerado um apêndice do quarto evangelho. O evangelho propriamente dito termina em 20.30,31. Partimos, pois, da constatação de que os revisores fizeram acréscimos, dentre os quais destacamos o cap. 21.
Analisando o texto, vamos observar um interesse muito grande, por parte da redação, em destacar as figuras de Pedro e do discípulo a quem Jesus amava. Numa época em que procuramos conviver, da melhor maneira possível, com os irmãos católicos, dentro do movimento ecumênico, não podemos ignorar o peso que este texto desempenha na tradição exegética católica e, consequentemente, dentro da dogmática romana.
Jesus confere poder e autoridade a Pedro. Este recebe a incumbência de zelar pelo rebanho de Cristo. Os redatores, no entanto, não estão interessados em destacar somente a pessoa de Pedro. Parece haver um interesse acentuado em situar o discípulo a quem Jesus amava bem próximo a Pedro. Este discípulo seria, após o martírio de Pedro, uma testemunha de grande valor (v.24).
A partir do contexto, descobrimos que se trata de dois diálogos distintos entre Jesus e Pedro, a saber
Nos vv.15-17, Jesus interroga a Pedro quanto ao seu amor para com ele.
Nos vv. 18-22, vamos encontrar um quadro que faia do caminho futuro a ser seguido por Pedro, caminho este que o conduzirá ao martírio.
III — Exegese
Situamo-nos diante de uma cena, na qual Jesus, o ressurreto, mantém um encontro com sete discípulos junto ao mar de Tiberíades. Este encontro é descrito como o terceiro depois da ressurreição (v.14). Após a refeição — que faz lembrar a Santa Ceia (v. 13) — Jesus mantém uma conversa à parte com o discípulo Pedro. Os demais discípulos praticamente desaparecem do cenário; são descritos como estes outros. O papel de Pedro no grupo dos onze é de destaque. Encontramo-nos, com muita probabilidade, diante de um relato antigo, ao qual se refere o apóstolo Paulo em 1 Co 15.5.
Face à pergunta de Jesus, se o amava mais do que os outros, Pedro não responde, com exatidão, a pergunta do Mestre e lhe diz: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. A resposta de Pedro é abrandada em relação à indagação do ressurreto.
Três vezes é formulada ao discípulo a mesma pergunta. Será que em analogia à negação de Jesus? Encontramo-nos diante de uma reabilitação de Pedro? Estaria Jesus absolvendo a Pedro da sua falta, quando este o negara (Jo 13.38; 18.17; 18.25ss), conferindo-lhe agora o direito de apascentar o seu rebanho?
Há quem responda afirmativamente a essas perguntas. Outros, porém, questionam tais suposições. Pessoalmente, não vejo uma importância maior atrás dessas indagações, ao ponto da pregação sair ganhando ou perdendo com a possível resposta.
Através das palavras de Pedro, Jesus, o Cristo ressurreto, não ouve outra resposta, a não ser aquela que ele no fundo já conhece: Tu sabes que eu te amo. Jesus conhece os seus; ele sabe do relacionamento dos seus para consigo.
A Pedro é conferido o direito e o privilégio de apascentar, de cuidar do rabanho que pertence a Jesus. Pela construção da frase, o amor a Cristo é visto como condição para a supremacia conferida ao discípulo Pedro. Na comunidade dos essenos, o pastoreio era um direito conferido ao supervisor da própria comunidade.
Jesus é o bom pastor (Jo 10). Agora ele transfere a tarefa de pastorear o rebanho às mãos de Pedro. Anteriormente (Jo 20.214, todos os discípulos receberem a comissão de pregar e de levar o amor de Deus adiante; agora, um dos discípulos recebe a incumbência de cuidar do rebanho, à semelhança do bom pastor (Jo 10.11). O homem, a ovelha deste rebanho, necessita desta preocupação, deste cuidado. As ovelhas não são de Pedro; não será o seu cuidado especial que as qualificará. Jesus Cristo, a confiança nele, já as qualificou para pertencerem ao rebanho. A liderança conferida a Pedro (v.18s) não conduz a poderes ou honrarias especiais, mas implica em martírio e em condução pelo supremo pastor, por Deus mesmo: Outro te levará para onde não queres Pedro torna-se um guia guiado. Estenderás as tuas mãos — o delinquente condenado à morte tinha de carregar o patíbulo, com os braços abertos nele amarrados, até o local da execução da pena.
O discipulado pode levar até esta última consequência, ao martírio. E não foi somente Pedro quem evidenciou este fato, pagando com a sua própria vida. No decorrer da história da Igreja vamos conhecer outros discípulos, pagando um preço muito alto pelo discipulado. Aqueles que pagam pelo ser discípulo o alto preço da morte, é dada a possibilidade de glorificar a Deus.
O v. 19 termina com o imperativo: Segue-me! Um convite que faz lembrar o encontro entre Pedro e Jesus antes da crucificação (Jo 13.36).
IV — Meditação
1. Pedro — um líder à serviço de Cristo
Desde logo partilho minhas dificuldades em fazer com que o texto se torne transparente e atual para membros de uma comunidade evangélica luterana, ouvintes em potencial da pregação. A tradição exegética da Igreja Católica Romana vê neste trecho um dos textos clássicos para embasar a primazia de Pedro, não só dentro do grupo dos discípulos, mas sobretudo dentro da Igreja cristã universal.
Surge, em consequência, a indagação: vamos usar o personagem Pedro, a fim de colocá-lo também no centro das nossas atenções? Ou vamos falar, na prédica deste domingo, daquele Pedro que poderia ser um protótipo, um exemplo para todo e qualquer discípulo do Senhor Jesus Cristo? Parece-me que a exegese do texto nos dá a liberdade para tanto e sublinha, em especial, o último aspecto proposto.
Tu me amas mais do que estes outros? É a primeira pergunta feita a Pedro. Apascenta as minhas ovelhas, é a resposta dada ao discípulo. Pergunta e reação de Jesus à resposta, em forma de incumbência, são repetidas por três vezes. E, finalmente, o convite: Segue-me! Torna-se plenamente justificada a ênfase que é dada no texto e no contexto ao aspecto do discipulado. O pastoreio do rebanho não foi serviço exclusivo de Pedro, apesar da tradição eclesiástica romana. O cuidado das ovelhas, especialmente das desgarradas e desorientadas, é tarefa de todo discípulo (Mt 18.10-14). O desafio do envio não envolve somente a vida de Pedro. Todos os discípulos receberam a incumbência de ir, de sair a proclamar libertação aos cativos, de perdoar e de reter pecados (Jo 20.21-23). O desempenho de uma liderança, na qualidade de discípulo: isto é tarefa do cristão!
Pedro, um homem cheio de fraquezas e de faltas, um personagem marcado pelos contrastes da fé e da dúvida, nos serve de exemplo. Nós o conhecemos de outras ocasiões; sabemos de sua reação violenta e negativa, quando seu mestre predisse a morte (Mt 16.21-23). Sua emoção foi grande, quando Jesus foi preso no Getsêmani (Jo 18.10). Quem não se lembra da sua negação na hora do julgamento do Mestre?
Lideranças, líderes — tendemos a identificá-los com personalidades fortes, marcadas pelo dom da palavra, que movem massas humanas, manipulam mentes e vidas humanas. Não será errado afirmar que este tipo de líder desestimula aquelas lideranças não caracterizadas pela ostentação, pelo brilho de palavras, pela retórica e pelo poder.
2. Discípulos de Cristo — lideres à serviço da paz
Fiz uso deste texto, focalizando em especial o aspecto da liderança, no trabalho com um grupo de jovens. Pedi que fizessem um trabalho sobre liderança, utilizando a técnica da colagem.
Apareceu um buque colorido de ideias, surgiu uma gama de tipos de liderança. Foram destacados lideres políticos, lideres no campo da economia, da família, do esporte, etc. Um dentre os diversos trabalho chamou-me atenção. Num cartaz foram colocadas lado a lado, mas separadas por uma linha distinta, lideranças â serviço da paz e lideranças â serviço da violência e da guerra.
Cristãos são, por excelência, líderes à serviço da paz. Enquanto medito sobre este texto, acende-se sempre mais a chama da luta armada entre ingleses e argentinos, em torno das Ilhas Malvinas. No dia de amanhã ou no ano que vem o foco da violência pode estourar em outra parte. Conversando com nosso filho caçula, ele deixou transparecer um medo compreensível, perguntando se a luta, lá no Atlântico Sul, também não haveria de chegar até o Brasil. Não sei; nesta altura não poderia responder. O que me preocupa mais é o silêncio aparente das lideranças cristãs, cuja incumbência fundamental é a busca da paz e da fraternidade.
3. Discípulos de Cristo — líderes em busca da transformação
Aos poucos estamos acordando na IECLB (apesar das reações em contrário) de um sono que nos deixou letárgicos e inertes face à situação de desespero e de vida miserável das grandes massas do nosso povo, que vivem na periferia do desenvolvimento econômico, social e cultural. Vamos nós esperar que o povo acorde para a violência, à semelhança de países na América Central, ou haverá cristãos que farão um trabalho profilático, de prevenção, visando uma transformação profunda na vida humana? Lideranças à serviço da proclamação do Evangelho da paz, da justiça, da graça e da promoção humana continuam ouvindo, ainda hoje, o convite de Jesus Cristo: Venham e sigam-me! Pedro, de fato, serviu de exemplo valioso. Graças ao amor que teve para com seu mestre, Jesus Cristo!
Lideranças cristãs não estão interessadas em segurar posições e em reter privilégios. O texto desconhece este tipo de retenção; ele fala, isto sim, da possibilidade de sacrifício da própria vida e da disposição em deixar-se guiar pelo supremo pastor (v.18s). Discípulos de Cristo não vivem em cima de ilhas, previamente fortificadas. Nosso caminho é o caminho de baixo, o caminho da cruz. É nele que vamos encontrar o Jesus crucificado e o Cristo ressurreto. Seguindo por este caminho é que discípulos de Jesus Cristo encontrarão um verdadeiro sentido para as suas vidas.
Se for da vontade do leitor, ele poderá usar o roteiro desenvolvi¬do na meditação como passos concretos a serem seguidos na elaboração a prédica:
1. Pedro — um líder à serviço de Cristo
2. Discípulos de Cristo — líderes à serviço da paz
3. Discípulos de Cristo — líderes em busca de uma transformação
Com base na ênfase que estamos dando ao aspecto da liderança, cabe destacar, mais uma vez e com toda clareza, que existe uma força propulsora para toda e qualquer liderança que acontece em nome de Cristo. As misericórdias do Senhor não têm fim, renovam-se a cada manhã. Sem este indicativo, não há liderança que mereça ser qualificada de liderança cristã.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, há pessoas que esperam peto nosso tempo e pela nossa presença. Nós, porém, não lhes damos a atenção necessária. Há crianças, jovens, idosos, doentes que estendem as suas mãos em nossa direção, mas nós permanecemos inertes e calados. Há tantos que contam com a nossa solidariedade em suas dificuldades materiais e espirituais. Nós, porém, continuamos frios e sem ação. Há pessoas que nos perguntam e questionam, mas nós os deixamos sem respostas. Senhor, quão diferente é, no entanto, o teu relacionamento para conosco! Tu carregaste a cruz em nosso lugar. A nossa vida te valeu mais do que a tua própria vida. Tu morreste, porque tinhas interesse em nossa salvação. Continuamos a viver como se nada tivesse acontecido. Por isso te pedimos, com muita humildade: apaga as nossas falhas e perdoa nosso egoísmo. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Deus, nosso Pai! A partir da certeza de que as tuas misericórdias não tem fim, nós nos dirigimos a ti. Tu nos ouves e tens palavras de vida, por seres a fonte da esperança e da vida. Rogamos-te, Senhor, por concentração, a fim de que nada possa desviar nossos pensamentos de ti. Permite que aceitemos a tua Palavra. Estamos dispostos a ouvi-la. Fala a nós! Amém.
3. Assuntos para a oração final: o agradecimento pela liberdade que nos é dada para conversarmos com Deus, nosso Pai e Senhor; nós oramos, porque Deus nos ouve; o amor do Pai e a sua misericórdia renovam-se constantemente e são a causa para todo o engajamento cristão; o pedido por lideranças responsáveis e humildes; as petições pelas lideranças existentes dentro da comunidade, na Igreja, nos lares, nos mais diferentes campos e grupos que, em nome de Cristo, anseiam por lideranças; a intercessão pela paz. pela justiça e pela verdade, enfim, pelos serviços cristãos; o louvor e o agradecimento a Deus pelos exemplos de lideranças já concedidas através dos tempos, e que já nos auxiliaram nos caminhos da vida.
VI — Bibliografia
– BULTMANN, R. Das Evangelium des Johannes. In: Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament. Parte II. 18. ed. Göttingen, 1964.
– FUNKE, A. Meditação sobre João 21.15-19. In: Calwer Predigthilfen. Vol. 7. Stuttgart, 1968.
– SCHWEIZER, E. Meditação sobre João 21.15-19(22). Göttinger Predigtmeditationen, Göttingen , 64(2): 220-225, 1975