Prédica: João 5.1-16 (18)
Autor: Martin N. Dreher
Data Litúrgica: 19º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 09/10/1983
Proclamar Libertação – Volume: VIII
MISÉRIA
I — Sugestão de tradução
(1) Depois disso houve uma festa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém. (2) Em Jerusalém, porém, há, junto ao tanque das ovelhas, o (tanque) denominado em hebraico de Betesda, o qual tem cinco pórticos. (3) Nestes, jazia uma multidão de doentes, cegos, coxos, paralíticos [que esperavam que a água se movesse, (4) pois um anjo do Senhor descia de tempo em tempo ao tanque, agitando a água. Quem, então, por primeiro entrava (no tanque), após a agitação da água, ficava curado, fosse qual fosse a doença de que fora acometido.] (5) Havia ali um homem que já sofria trinta e oito anos com sua doença. (6) Quando Jesus o viu deitado e reconheceu que há tempo tinha sua doença, disse-lhe: Queres ser curado? (7) O doente respondeu-lhe: Senhor, não tenho ser humano que me leve ao tanque, quando a água fica agitada. Enquanto, porém, eu próprio me dirijo para lá,um outro desce antes de mim. (8) Diz-lhe Jesus: Levanta-te, toma teu leito e anda. (9) E imediatamente o homem ficou são, e ergueu seu leito e andou.
Acontece, porém, que aquele dia era sábado. (10) Disseram, pois, os judeus ao que fora curado: É sábado e não te é permitido carregar o leito. (11) Ele, porém, lhes respondeu: Aquele que me curou, disse-me: Toma o teu leito e anda. (12) Perguntaram-lhe, então: Quem é o homem que te disse: Toma-o e anda? (13) O que fora curado, entretanto, não sabia quem ele era. Pois Jesus havia-se afastado, porque havia muita gente-naquele lugar. (14) Depois disso, Jesus encontrou-o no templo e disse-lhe: Olha, ficaste curado; não tornes a pecar, para que não te suceda coisa pior. (15) O homem foi embora e comunicou aos judeus que fora Jesus quem o havia curado. (16) E, por isso, os judeus perseguiam a Jesus, porque fizera isso no sábado. (17) Ele, porém, lhes respondeu: Meu pai trabalha até agora, e (por isso) eu também trabalho. (18) Por isso, os judeus ainda mais procuravam matá-lo, porque não só violava o sábado, mas também dizia que Deus era seu pai, com o que se igualava a si próprio a Deus.
II — O texto
Nosso texto faz parte de um conjunto maior do Evangelho de João, que vai de 5.1 a 12.50 e que trata da revelação de Jesus, por ocasião de suas discussões com o judaísmo que nele não crê. Bultmann laia aqui da revelação da glória diante do mundo. Nos capítulos anteriores, João faz colocações fundamentais a respeito da pessoa e da obra de Jesus. Agora vai ser apresentada toda a profundidade do ser do LOGOS encarnado, quando Jesus se manifesta como o Cristo de Deus.
A perícope não tem paralelos na tradição sinótica. Os vv.3b e 4 são acréscimo posterior e podem ter sido incluídos para facilitar a compreensão do v.7. O v.15 nos oferece uma dificuldade de ordem critico-textual de peso. O texto de Nestle nos oferece a versão EIPEN (comunicou, disse aos judeus). No contexto da perícope (cf. abaixo, na exegese do texto), a expressão comunicou equivale a uma denúncia: o homem curado por Jesus denuncia-o às autoridades! Uma série de manuscritos de peso (e, com eles, muitos exegetas) chocaram-se com essa formulação, alterando-a para ANÈNGEILEN ou APÊNGEILEN: anunciou! Com essa alteração, o homem não mais estaria denunciando, mas pregando a respeito da ação de Jesus!
Como facilmente se pode constatar, a perícope divide-se em duas partes: vv.1-9a e vv.9b-18. Na primeira, temos a narrativa da cura e, na segunda, a discussão. As duas partes estão interligadas pela frase: Acontece, porém, que aquele dia era sábado.
Vejamos os detalhes:
V.1: Jesus deixa a Galiléia para participar de uma festa em Jerusalém. O texto não dá margem para uma identificação da festa e também não parece estar muito interessado nela. O pregador/exegeta deveria contentar-se com isso.
V.2: Aqui, divirjo da tradução de Almeida e acompanho J. Jeremias (Die Wiederentdeckung von Bethesda, 1949, p. 5ss). O tanque das ovelhas, situado ao norte do pátio do templo, era formado por dois tanques, cercados por quatro halls de colunas (pórticos) e separados um do outro por um quinto.
V.3: No 'hall central costumava-se encontrar doentes que esperavam cura das águas, às quais se atribuía poderes miraculosos. O movimento nas águas era provocado pela água que, de tempos em tempos, afluía do tanque-norte para o tanque-sul. É provável que a água era coletada em um lugar mais alto do vale de Cidron, para então ser canalizada para o tanque das ovelhas. O nome Betesda, com o qual é designado, significa casa da misericórdia e deve-se,provavelmente, à finalidade a que a construção estava destinada.
Vv. 5-9a: Provavelmente no hall central, Jesus encontra um homem, doente há 38 anos. Talvez é o que mais necessita de auxilio. O texto nada diz a respeito de sua doença. O doente não tem quem o auxilie. Quando a água se move e poderia ocorrer sua cura, é deixado de lado. Para ele não há esperança. Por isso, Jesus vê sua tarefa primordial em despertar no doente o desejo de ficar curado. Na pergunta: Queres ser curado?, há uma oferta. Quem, no entanto, só teve más experiências com seres humanos não pode conceber que alguém esteja disposto a auxiliá-lo. Certamente é importante que aqui alguém se interesse pela sua situação e se dirija a ele. Mas, será que deve confiar nesse homem, Jesus, que lhe é totalmente desconhecido? Ele não dá uma resposta direta a Jesus. Jesus, no entanto, sente que esse homem resignado quer ser curado. Dá-lhe a ordem. Ele está curado. Toma o leito e anda. Deu-se o milagre. No entanto, não foi a água quem curou o doente, mas a palavra de Jesus. O que a narrativa parecia encaminhar: Jesus vai ajudar o homem a entrar na água — não ocorre. Sua palavra poderosa leva à cura.
V. 9b: O versículo traz uma constatação: Acontece, porém, que aquele dia era sábado. Nessa constatação, porém, já está contida a tensão por causa do que há de vir. Os porta-vozes do legalismo apossam-se daquele que fora curado.
Vv. 10-13: Eles não se alegram e não louvam a Deus. Antes, acusam-no de desrespeitar o mandamento sabático. Interrogam-no. O que fora curado responde, dizendo que a culpa não cabe a ele, mas àquele que lhe deu a ordem de carregar o leito. Por isso, o ódio dos judeus volta-se contra o iniciador do desrespeito ao sábado. Querem saber quem é Jesus, mas o que fora curado não o conhece, nem o consegue ver no meio do povo. Jesus já se foi. O caso, que parecia estar, com isso, liquidado, no entanto, continua.
V.14: Ocorre novo encontro entre Jesus e o que fora curado. Nessa oportunidade, Jesus lhe dirige uma admoestação bastante séria: não deve mais pecar, para que não lhe venha a acontecer algo pior que a doença de que estivera anteriormente acometido. Que significa esse pior? Estaria Jesus afirmando que a doença é castigo, por causa de pecado anteriormente cometido? Essa possibilidade é categoricamente eliminada em Jo 9.2s. O pior só pode ser a condenação eterna (Barret). A passagem fala, pois, da relação entre pecado e o juízo divino.
Vv. 15 e 16: Aquele que foi curado, no entanto, não se preocupa com as palavras de Jesus. Sua preocupação é cair fora. Ao invés de agradecer a Jesus, denuncia-o aos judeus, que, tão logo o encontram, exigem satisfações.
V.17: Jesus justifica-se, apontando para Deus, que trabalha constantemente. Como seu Filho, também ele tem o direito de agir constantemente!
V.18: Para os oponentes, a afirmação de Jesus é escandalosa. Esse Jesus não só é réu do sábado, mas também blasfemo: ele se equiparou a Deus. Quem blasfema contra Deus não pode viver no seio do povo de Deus: tem que morrer. A morte na cruz está sendo preparada.
III — Meditação
É bom lembrarmos, no inicio da meditação, o que já dissemos anteriormente: nosso texto faz parte da 1a grande parte do Evangelho de João, que fala da revelação da glória de Deus diante do mundo. Do capítulo 13 até o final do evangelho, vai ser falado da revelação da gloria de Deus diante da comunidade. Aqui, em nosso capitulo, a revelação da glória, de Deus se evidencia, como juízo para o mundo, pois revela toda a miséria humana; a miséria que provém da situação do mundo longe de Deus. A revelação da glória, de Deus, porém, nos evidencia também toda a liberdade que há em Deus e que é revelada, em Jesus. A meditação deste texto fica, pois, entre miséria, e liberdade. Sugiro que também a pregação se valha destes dois aspectos.
1. No texto existem quatro passos, em que se evidencia a miséria humana.
a) O texto descreve doença, uma das características do mundo não redimido: doentes, cegos, coxos, paralíticos; sofria trinta e oito anos com sua doença. O texto descreve a situação de marginalidade de um ser humano doente, dentro da sociedade. Ele é miserável, não só por causa do fardo da doença que tem que carregar, mas também por causa do desprestígio social que esta doença lhe traz. Ele é um homem que, em sua doença, em sua miséria experimenta…
b) a miséria da sociedade, pois o texto nos mostra que a miséria humana não se resume apenas em doença. A miséria humana é maior que a doença do homem que sofre há trinta e oito anos. Ela é tão grande que o homem não chega mais a ver o homem: Não tenho ser humano que me leve… E a ironia disso tudo é que toda essa cena ocorre em Betesda = casa da misericórdia!
c) Num crescendo, o texto nos mostra miséria sempre maior. Pois ele nos fala da miséria do homem que só vê parágrafos: E sábado e não te é permitido…- Impressionante! O texto nada tem do maravilharam-se que podemos encontrar nos relatos sinóticos, após uma ação maravilhosa de Jesus. Ao invés da admiração, louvor e agradecimento, há protestos. Não por causa da cura, é claro, mas porque Jesus induziu alguém a agir contra a religião da lei. Jesus manda fazer o que não se faz. A maravilha da ação de Deus, a graça e a misericórdia de Deus, provoca protesto, porque coloca a lei de lado e oferece vida.
Isso assusta! Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. (1.11) Há briga. E a causa da briga é Deus! A miséria humana reside em não conseguir ver que, para Deus, existe algo mais importante que o parágrafo. Miséria humana é também o fato de o ser humano não poder conceber um Deus que sai de sua grandeza, para penetrar na pequenez humana. Jesus afirma que Deus é seu pai. Com isso iguala-se a Deus. Afirma que Deus está agindo em sua pessoa (Trabalha até agora!), que a cura é vontade de Deus, que ela é mais importante que o sábado. A miséria humana não consegue compreender um Deus que rompe esquemas, por isso rejeita-o.
d) O texto fala da miséria do homem que não consegue decidir-se por Deus. Não só os judeus, os porta-vozes do legalismo, se fecham ao Deus que age em Jesus, também (!) o homem que foi curado faz isso. Ele não consegue ouvir a oferta contida na pergunta de Jesus: Queres ficar curado? Também para ele é mais fácil e importante manifestar sua solidariedade com a religião da lei. E onde é que ele faz isso? Na casa de Deus, no templo! Por si só, o homem não é capaz de reconhecer o que Jesus lhe diz: Não tornes a pecar para que não te suceda coisa pior. Tal reconhecimento é graça. O homem curado, que faz parte do mundo, não ouve a palavra de Jesus; apressa-se em denunciá-lo (v. 15).
O texto fala da miséria total de um mundo não redimido, mas não fica só nisso, pois ele fala…
2. da liberdade de Deus, que é maior que a miséria humana.
a) Em sua liberdade, Deus vê a miséria em que o homem se situa: Jesus o viu deitado… Deus vê, onde homem algum mais está vendo. Aqui age o amor de Deus, contra a miséria humana. Deus não só vê, ele deixa que se lhe conte a miséria. Aqui a liberdade de Deus já é irrupção nas trevas (1.5). No fundo, a cura é sinal escatológico. O levanta-te (EGEIRE) é sinal antecipatório daquilo que vai ser dito a respeito da ressurreição de Jesus (ËGERTHË = ressuscitou!) e que faz parte do centro da esperança cristã. Ao mesmo tempo, o levanta-te é juízo de Deus sobre a causa da miséria humana.
b) A liberdade de Deus rompe esquemas humanos. Para a sociedade da época, o homem doente é um ser atingido pelo castigo de Deus. Para os atingidos por Deus ninguém olha. Deus, porém, é livre para olhar para os por ele atingidos. Tanto assim, que ele pode usar de misericórdia na casa da misericórdia, onde ninguém consegue ser misericordioso. Com esta sua liberdade, ele julga os que julgam e, exalta o humilhado. E mais, em nosso esquema, Deus só ajuda onde há fé. Aqui Deus ajuda, coloca sinal do Reino, onde não há fé! Essa sua liberdade rompe até o nosso esquema, o esquema dos ouvintes da narrativa. Deus também pode curar onde não há fé!
c) A liberdade de Deus rompe os parágrafos. Nossa perícope fala de maneira clara a respeito de lei e liberdade. 1.17: A lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por melo de Jesus Cristo. Não é através da observância da lei que o mundo perdido se torna novamente mundo de Deus. Isso só pode acontecer através da ação misericordiosa de Deus. Nessa liberdade de Deus reside salvação. Mas, por causa dessa sua liberdade, Deus tem que passar por cruz e ressurreição (v.18a), e, sem essa cruz e ressurreição, nós não temos parte nessa liberdade. Poder ver essa liberdade é dádiva de Deus. Que isso é verdade, nos mostra o fato de nem os judeus, nem o homem que fora curado poderem decidir-se por Deus. E esse é o quarto aspecto da liberdade divina, que nos mostra o texto. Talvez a denúncia do homem curado leve os ouvintes da perícope a perguntar: Mas como pode? Como pode ser que esse homem não consiga se decidir por aquele que o curou? Como pode ser que esse homem não se consiga decidir pela liberdade que Deus lhe oferece em Cristo? Essa é uma questão da liberdade de Deus. A liberdade de Deus também implica em que ele tenha a liberdade de deixar alguém nas trevas. Sair das trevas é sinal da graça, da liberdade de Deus, e não de uma obrigação de Deus. Salvação se obtém como presente de Deus, ou não se obtém.
IV — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, deixa-nos reconhecer, sob a tua Palavra, nossas falhas como nossa culpa. Permite-nos, no entanto, também experimentar a tua proteção. Livra-nos da falsa suposição de que nós mesmos podemos determinar a nossa vida. Perdoa-nos nossa culpa, por amor a Jesus Cristo. Tem piedade de nós Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor, santo Deus, Pai misericordioso, pedimos: põe novamente em ordem nossa vida inquieta. Ajuda-nos a cumprir tua vontade, para que sejamos salvos em corpo e alma. Ouve-nos, por Jesus Cristo, que, contigo e com o Espírito Santo, fortalece os fracos e salva os desesperados. Deus onipotente, tu és o principio e o fim, eternamente. Amém.
3. Assuntos para intercessão na oração final: Invocação; graças pela Palavra; intercessão pela Igreja local, nacional e universal: tentações, negação, auto-segurança, confirmandos, perseguidos, os que desconhecem a Cristo; governantes, paz, participação para todos nas riquezas e bens, técnica e cultura, pão, discriminação, justiça social, leis justas; relacionamento de patrões e empregados, índios, povos perseguidos e sujeitos ao extermínio; doentes, idosos, deficientes, solitários, angustiados; prece por pessoas que se ocupem com eles; presos; pais e filhos; marido e mulher; famintos; diáconos e diaconisas, pessoas que nos são antipáticas; pelas nossas misérias; pela liberdade que Cristo nos dá; que tudo seja pedido em nome de Jesus Cristo, com o Espirito Santo e o Pai.
V — Bibliografia
– BARRET, C.K. The Gospel according to St. John. LONDON, 1955.
– BULTMANN, R. Das Evangelium des Johannes. In: Kritisch-exegetischer Kommentar über das Nette Testament Parte II. 18. ed. Göttingen, 1964.
– SCHLATTER, A. Der Evangelist Johannes wie er spricht, denkt und glaubt. 3. ed. Stuttgart, 1960.
– SCHNEIDER, J. Das Evangelium nach Johannes. In: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. Vol. esp. 2. ed. Berlin, 1978.