Prédica: João 6.35
Autor: Silvio Meincke
Data Litúrgica: Domingo Laetare
Data da Pregação: 13/03/1983
Proclamar Libertação – Volume: VIII
I — O texto
1. A multiplicação dos pães
Esse versículo faz parte de um dos típicos discursos do Evangelho de João. Esses discursos desenvolvem um tema, a partir da narração de um fato, no presente caso, o milagre da multiplicação dos pães. ' 'A história da multiplicação dos pães desemboca num discurso em torno do pão da vida, que é o próprio Jesus. (Brakemeier, G. Observações introdutórias referentes ao Evangelho de João. Neste Vol.)
Jesus cuida de dar o pão aos famintos, pela multiplicação abundante. Esse milagre atrai o povo, que vê em Jesus um profeta. Jesus não aceita a glorificação pretendida pelo povo e se retira, pois querem glorificá-lo como alguém que ele não quer ser — o rei do pão, ou algo semelhante. Retira-se, mas o povo o busca. No diálogo que se segue, as pessoas custam a entender o que Jesus realmente quer dizer. Quando fala claramente que é o pão da vida (v.35), as pessoas murmuram (v. 41), pois o conhecem como o filho de José, o marceneiro (v. 42). O diálogo torna-se mais agudo, e os interlocutores alimentam ainda a expectativa de que Jesus há de dar-lhes um maná melhorado (v. 34).
Mas Jesus é o pão da vida. Como tal, ele se dá a si mesmo. Comer esse pão significa partilhar do que ele é e oferece; significa o estreito relacionamento pessoal, em fé, com ele. Relacionamento, pelo qual se recebe a vida. Jesus compartilha-se a si mesmo, ele. que é o pão da vida, ele, que é a vida.
2. Jesus, o pão da vida
Quando Jesus diz: Eu sou…, no caso presente Eu sou o pão da vida, ele expressa, com isso, a elevada reinvindicação de ser o único revelador, a única incorporação da mensagem de Deus, o único que traz a salvação. Sendo o pão da vida, ele também é mais do que o maná do deserto e mais do que Moisés. O povo anseia pela volta do maná, bênção máxima de fartura fácil, de que têm noticia (6.31-32 + 49). Jesus é mais do que o maná, e a sua oferta é maior, também. Ele é o pão da vida. Todo o discurso que segue à multiplicação (vv. 26-59) é, em última análise, o desenvolvimento de um diálogo em torno dessa afirmação.
Os que comeram o maná do deserto morreram. Ele, Jesus, é o verdadeiro pão vivo que vem do céu. Quem dele come não morrerá, mas tem (observe o presente) e terá a vida.
O maná que Deus deu a Israel, no deserto, é o alimento diário, que o povo necessita para escapar da morte de fome, numa situação, em que Deus o socorre (Êx 16). Mas o povo descobre, mais tarde, que não pode viver só do pão que se come. Sabe que necessita, para viver, de toda a palavra que sai da boca do Senhor (Dt 8.1-3; Mt 4.4). Is 55.1-3 faz uso da imagem do pão para expressar tudo o que Deus oferece aos que o buscam.
Quando Jesus diz que ele é o pão da vida, então expressa que ele é tudo o que Deus oferece às pessoas que o buscam: vida plena, de bom conteúdo, abundante (Jo 10.10), eterna (Jo 11.25). Essa pretensão de Jesus soa dura demais aos ouvidos de muitos discípulos, que passam a afastar-se dele (6.60).
Por melhor que seja a prédica, ela não poderá minorar a radicalidade dessas palavras. Pelo contrário, quanto melhor a prédica, tanto mais claramente ela há de elaborar e expressar essa radicalidade.
O centro de todo o milagre da multiplicação dos pães é o próprio Cristo, que se oferece para ser compartilhado. O sentido último do milagre expressa-se nas palavras Eu sou o pão da vida. Os que se alimentam desse pão, os que com ele têm estreito relacionamento, terão a vida, a vida com fartura (houve sobras), e aprenderão a compartilhar (a fartura cresceu do pouco que alguns tinham trazido e que estavam dispostos a repartir). Em outras palavras: na presença de Cristo as pessoas se dispõem a compartilhar e, então, haverá alimento e vida para todos.
II — Meditação
Vida abundante
Tenho desenvolvido esse tema, Jesus, o pão da vida, em cultos informais, principalmente com grupos de jovens. A forma, pela qual desenvolvi o assunto, foi bem aceita, e, por isso, gostaria de sugeri-la aqui.
Inicialmente dei um pequeno cartão, em branco, para cada jovem e pedi que escrevessem nele as duas coisas que consideravam mais importantes para ser feliz, ter uma vida plena, abundante, de bom sentido, de bom conteúdo, que vale a pena ser vivida. Depois, recolhi os cartões, embaralhei-os e os redistribui. Pedi, então, que cada um lesse o que estava escrito no cartão que recebera.
As respostas são sempre muito diferentes e podem deixar-nos sem saber como ordená-las. Por isso relacionei-as no quadro-negro, dentro de quatro categorias diferentes, que chamei de quatro necessidades básicas da vida. Forma-se, a partir daí, um quadro mais ou menos assim:
Necessidades materiais:
Vestimenta
Comida
Bebida
Abrigo (casa)
Saúde
Dinheiro
Necessidades afetivas:
Carinho
Afeto
Aceitação
Amor
Compreensão
Convívio
Lar
Necessidades sociais:
Amizade
Diversão
Participação
Liberdade
Convívio
Aceitação
Necessidades espirituais:
Fé
Amor
Perdão
Confiança
Aceitação
Refúgio
Houve ainda respostas que eu não soube enquadrar em nenhuma dessas quatro colunas. Por isso, escrevi-as separadamente no canto do quadro-negro, para voltar a elas depois. Diziam, por exemplo: bom objetivo de vida, bom ideal, realização pessoal.
Passei, então, a reforçar o que os próprios participantes disseram:
Todos temos necessidades na área da vida social: As crianças mal sabem andar e já saem à procura de amiguinhos. As pessoas criam clubes recreativos, onde se encontram. Os colonos se visitam, tomam chimarrão, conversam, jogam cartas. As pessoas encontram-se em botecos, nem sempre por causa do aperitivo, mas porque lá encontram amigos, que os aceitam para conversar. Cada pessoa tem necessidade de integrar-se na vida e na organização do seu bairro, da sua cidade. Sente necessidade de participação e integração (sindicatos, movimentos populares, associações de bairros, clubes de interesse).
Todos temos necessidades na área da vida afetiva: As crianças choram, não só pela mamadeira, mas também pelo carinho e pela atenção da mãe. Têm sede e fome de afeto. Os jovens saem à procura do namorado, da namorada. O afeto ë importante na vida matrimonial. Temos sede e fome de afeto, e as pessoas que não o têm são pessoas grandemente frustradas.
Todos temos necessidades na área da vida material: vestimenta, comida, bebida, abrigo, saúde, dinheiro.
Todos temos necessidades na área da vida espiritual: Os salmos expressam isso: Minha alma tem sede da tua presença, Senhor. (81 63) Tu tens sido o nosso refúgio… (SI 90) Agostinho o expressou com sua palavra conhecida: Minha alma está inquieta, Senhor, até encontrar repouso em ti.
Efetivamente, todos temos necessidade de confiar em um amor, maior do que os limites humanos, que ainda nos possa acompanhar, onde tudo o mais falha.
Pessoas que não encontram esse refúgio em Deus procuram migalhas de refúgio e segurança nos presságios dos horóscopos (que vendem muito bem, peio que podemos ver nos meios de comunicação social).
Explicado isso, passei então àquelas respostas do canto do quadro-negro, que antes não soubera como enquadrar: o bom objetivo de vida, o bom ideal, a realização pessoal.
Concluímos que a qualidade do objetivo de uma pessoa e do seu ideal, tão bem quanto a sua realização pessoal, dependem do suprimento ou não das quatro necessidades básicas da vida. Onde estas não forem supridas, o objetivo e o ideal de uma pessoa podem sair distorcidos (anarquia, terrorismo, revolta — talvez se pudesse lembrar aqui algumas figuras da história, como Lampião, Renato Curcio e outros, ou até mesmo pessoas do lugar).
III — Conclusões
Depois disso, pudemos, em diálogo, tirar várias e valiosas conclusões:
1. Saúde não é sinônimo de vida abundante, porque é apenas uma entre muitas outras necessidades. Daí estar errada a resposta que tantas vezes se recebe, quando se pergunta: Como vais? As pessoas respondem: Bem, tendo saúde, tudo bem. Eu tenho conhecido jovens com saúde de ferro, boa apresentação, bonitões, mas que por dentro eram verdadeiros farrapos. A recíproca também é válida: falta de saúde não é necessariamente falta de vida. Tenho visto crianças na APAE, sorridentes e felizes, porque se sabiam aceitas e queridas.
2. Religião não é só para pessoas que têm uma sensibilidade especial, que têm queda para isso. Todos temos necessidade de nos sabermos amparados, guardados, amados, refugiados, protegidos por alguém que não falha, como os humanos falham. Quando não buscamos esse refúgio em Deus, passamos a buscá-lo em outras grandezas, criamos os nossos falsos deuses e procuramos o tesouro da vida, o pão da vida, onde não havemos de encontrá-lo.
3 A corrida exagerada atrás dos bens materiais, como se esses pudessem suprir todas as nossas necessidades, fazem-nos perder vida nos outros setores, por exemplo, no afeto — relacionamento pai-filho marido-esposa, e também na vida social — amizade, convivência, h principalmente na vida espiritual, para a qual, então, não mais teremos tempo.
4 Essa mesma corrida irá tirar as chances de outros poderem suprir as suas necessidades materiais, porque o que acumula demais sempre o tirará de outro. O acúmulo dos fortes é sempre pago pelos fracos.
5. O ideal é que haja equilíbrio no suprimento das quatro necessidades básicas da vida. No entanto, como cristãos, podemos testemunhar que o suprimento das necessidades espirituais preserva a torça das pessoas, quando carentes nas outras áreas, para, assim, poderem melhor suportá-las. Podemos testemunhar também que tudo começa com o suprimento das nossas necessidades espirituais, porque a vida não se conquista, nem com a técnica, nem com a força, nem com a espada, nem com a caderneta de poupança, nem com o whisky estrangeiro nem com a influência política. A vida é dádiva que recebemos de mãos vazias, gratuitamente, pela mão estendida da fé, que comia. Quando assim confiamos e recebemos a vida de graça, como dadiva, seremos libertados da exagerada corrida por querer conquista-la, e teremos então, condições de ver o outro, de partilhar com ele, de carregar as suas cargas, de sentir as suas necessidades, porque já não estaremos tão ocupados conosco mesmos.
6. Uma conclusão ética que podemos tirar de tudo isso é que, querendo ajudar uma pessoa, devemos ter em mente as suas quatro necessidades básicas. Um pedinte talvez nem queira o nosso sapa o velho, o nosso casaco usado, o nosso pão seco. Talvez ele queira muito antes a nossa amizade, a nossa aceitação, o nosso afeto, a nossa compreensão, o conforto espiritual.
7 E ainda uma conclusão prática: para ajudar uma pessoa è preciso, antes de tudo, saber ouvir, para descobrir o que ela realmente precisa. Só ela sabe o que necessita, e nós, só por sermos mais ricos ou mais cultos, não sabemos, só por isso, qual a sua real necessidade. Tenho visto pessoas da comunidade visitarem os pobres nos bairros, como se tudo soubessem, e, por isso, erraram totalmente o alvo.
Desenvolvi esse tema também no último dia dos ex-alunos do IPT. Não usei os cartões e nem dialoguei. Apenas desenvolvi o tema, falando sozinho. Houve boa aceitação, e um dos participantes do culto falou-me, depois, que gostou muito da prédica-aula. Por isso gostaria de encorajar os colegas a desenvolverem o assunto num culto, dentro desse modelo. Nesse caso, a liturgia deverá ser reduzida, para não tornar o culto extenso demais. Todavia, tenho percebido que o assunto, quando bem exposto e bem exemplificado, não se torna cansativo.
IV — Subsídios litúrgicos
1 Intróito: Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus. (Mt 4.4)
2 Confissão de pecados: Senhor, sabemos que a nossa sociedade está organizada violentamente em cima do individualismo, no qual triunfam os fortes e sucumbem os fracos. Ajuda-nos a socializar, repartir e compartilhar a nossa (orça, a nossa influência, o nosso poder. Muitas vezes não soubemos ouvir e nem entender. Não percebemos, quando alguém veio buscar um momento de atenção; não nos demos conta, quando alguém veio buscar uma palavra de orientação. É que andamos muito ocupados conosco mesmos. Perdoa-nos, e tem piedade de nós, Senhor!
3. Oração de coleta: Senhor, dá-nos olhos atentos para ver o irmão que nos busca; dá-nos ouvidos atentos para o irmão que nos fala; dá-nos um coração sensível para o irmão que se aproxima. Porque todas as pessoas sentem falta da atenção e do apoio de outros. Há muitas pessoas que precisam de nós. Ajuda-nos a acolhê-las em nosso meio, assim como tu nos acolheste. Ajuda-nos a ir ao seu encontro, assim como tu o fizeste. Amém.
4. Leitura bíblica: Mc 8.1-9.
5. Oração final: Senhor, nosso Deus e Pai! Tu és o Senhor da vida, e tens a vida em tuas mãos. Tudo o que temos, somos e podemos é dádiva tua. Ensina-nos a repartir essa dádiva, pois tudo o que deste é para viver e ajudar a viver. Tudo o que temos pertence a todos: o nosso tempo, a nossa força, as nossas capacidades e os nossos bens. Sabemos que muitas pessoas necessitam de nós. Alguns necessitam de uma ajuda material, outros precisam de nossa amizade, outros do nosso afeto, e ainda outros do nosso testemunho de fé. E os fracos necessitam da nossa abertura para uma mudança da organização social, ainda que com isso venhamos a perder privilégios. Dá-nos forças, Senhor, para não guardarmos para nós o que é de todos. Mostra-nos que o cristão não anda sozinho, mas procura companheiros de jornada. Mostra-nos que somos todos ramos da única videira verdadeira, que és tu. Amém.