Prédica: João 8.21-30
Autor: Martin Volkmann
Data Litúrgica: Domingo Reminiscere
Data da Pregação: 27/02/1983
Proclamar Libertação – Volume: VIII
I — O texto no seu contexto
1. Os versículos propostos como texto de pregação neste domingo Reminiscere são os seguintes: (21-26a) 26b-30. Esta subdivisão dá a entender que a partir de 26b inicia uma nova parte, perfeitamente compreensível sem os versículos anteriores. Porém, tal não é o caso, porque o v.28 é uma resposta à pergunta do v.25. Esta pergunta, por sua vez, fora motivada pela afirmação de Jesus no v.24. Este versículo retoma a afirmação do v.21: morrereis no vosso pecado. Além disso, a expressão retirar-se (v.21), do ponto de vista do conteúdo, é a mesma coisa expressa no v.28 pelo termo elevar (veja mais abaixo). Portanto, não convém separar a resposta de Jesus no v.28 da pergunta dos judeus no v.25. Em resumo: os w. 21-30 formam uma unidade temática.
2. A perícope é uma discussão de Jesus com os judeus, motivada pela afirmação de Jesus no v.21, semelhante a de 7.33s, acrescida aqui do complemento e morrereis em vosso pecado (cf. Dt 24.16; Ez 3.19; 18.24,26). Com isso já está indicado o tema central: chegará o momento em que será tarde demais. Urge reconhecer o momento oportuno; importa compreender o desafio, diante do qual estamos colocados.
Como em 7.35s, também aqui os judeus interpretam mal a afirmação de Jesus: Acaso pretende ele suicidar-se? E com esse mal-entendido, sem o saberem, eles apontam de fato para aquela realidade que está bem presente e é o ponto culminante de todo o texto: a morte de Jesus. É bem verdade, não da forma como imaginam, porque quem vai levá-lo à morte são eles próprios, ao elevá-lo à cruz (v.28). E, fazendo Isso — que mistério! —, ao invés de julgá-lo, elevam-no à situação de jute sobre si mesmos (v.26). Então reconhecereis: Este homem ma o que não queríamos ver nele. Por isso não cremos nele; por isso morremos no nosso pecado; por isso é tarde demais.
Em virtude dessa situação existe esse contraste gritante entre Jesus e os judeus (vv.21 e 23). Ambos pertencem a realidades totalmente distintas e opostas. Não se trata de dois mundos ou esferas distintas, no sentido de que este mundo é a realidade visível, à qual se contrapõe uma esfera invisível. Trata-se, antes, de duas realidades determinantes do ser da pessoa: Jesus é totalmente, obediente ao Pai, e um só com o Pai (vv .26,28s; 8.18s; 10.38 etc.). Os judeus representam a realidade não obediente a Deus. Conseqüentemente, para lá onde ele vai, eles não poderão ir (vv.21s). Por isso o desafio colocado a eles por aquele que representa a realidade divina: Se não crerdes que eu sou, morrereis em vossos pecados (v.24).
De um lado, pois, está uma linha de pensamento: os judeus, que entendem mal a Jesus, não compreendem o KAIROS e não crêem e, por isso, morrerão em seus pecados.
3. Jesus representa a outra linha de pensamento: ele ê quem traz a realidade divina para dentro da realidade humana; nele acontece o evento salvífico que rompe o contraste gritante entre ambas as realidades. Como acontece isto?
Estes versículos estão cheios de expressões chaves, típicas do Evangelho de João, através das quais o autor descreve em Jesus o evento salvífico:
a) Eu vou embora… (v.21). O verbo HYPAGÕ é característico para João (cf. 7.33; 8;14; 13.3; U.4s; 16.5). A ele corresponde a outra expressão: Eu vim… (cf. 1.9; 3.19; 5.43; 6.14; 7.28; 9.39; T2.47; 16.28). Jesus vai embora para a cruz, isto é, para o Pai (cf. v.28 e mais abaixo). Neste seu vir do Pai para o mundo e voltar novamente para o Pai, se realiza o evento salvífico. Portanto, na pessoa de Jesus a realidade transcendente de Deus se torna audível, visível e sensível no meio da esfera terrena. Jesus é o 'Cristo, o Filho de Deus que devia vir ao mundo' (11.27) (Bultmann, Theologie, p. 386).
b) Neste vir para o mundo, o Filho permanece vinculado ao Pai. Aquele que me enviou está comigo. Ele não me abandonou, porque faço sempre o que lhe agrada. (v.29) Jesus justamente traz a revelação e, com isso, realiza o evento salvífico por estar unido ao Pai e anunciar aquilo que ele lhe ensinou. Nesta perícope, em quatro momentos, esta comunhão intima com o Pai é destacada:
— eu sou do alto… eu não sou deste mundo (v.23; cf. 18.36);
— aquele que me enviou (vv.26 e 29; cf. 4.34; 5.24,37; 6.44);
— o que escutei dele, isto falo para o mundo (v.26); como o Pai me ensinou, isto falo (v.28; cf. 3.11; 5.19; 7.16; 12.49);
— aquele que me enviou está comigo; Ele não me abandonou, porque faço sempre o que lhe agrada (v.29; cf. 8.16; 16.32).
Seja destacando a sua determinação pela esfera divina, seja apontando para aquele que o enviou, seja acentuando a obediência ao que recebeu, sempre é destacada a participação de Deus no evento salvífico. O que aqui acontece não é um agir arbitrário do homem Jesus; aqui o Filho e o Pai agem conjuntamente. Na pessoa do homem Jesus — e só nele — Deus mesmo está presente. (Bultmann, Theologie, p. 402) Justamente por isso, aqui se dá a salvação.
c) Quando exaltardes o Filho do Homem… (v.28). O termo HYPSOÕ, elevar, exaltar, que também aparece em outros escritos do NT (cf. At 2.23; 5.31; Fp 2.9), tem no Evangelho de João um caráter especial. Em todas as passagens (3.14; 8.28; 12.32, 34) ele é empregado em sentido duplo: A partir de 3.14 fica bem evidente que HYPSOUN significa elevar o Filho do Homem à cruz. O termo tem em vista a morte. Mas a morte é simultaneamente o ir embora para o Pai. E, com isso, fica evidente o outro significado do termo: na morte o Filho do Homem é exaltado para junto do Pai. Sendo exaltado para junto do Pai, ele volta para lá, de onde veio (3.1). Nisso se realiza o evento salvífico: Jesus é o Senhor. Não há separação entre morte, ressurreição e ascensão como fatos distintos. Para João, todos formam uma unidade, e, por isso, o termo exaltação resume da melhor forma esta realidade.
Os judeus pensam elevar Jesus à cruz para se verem livres dele. Mas, com isso — que mistério! — justamente o exaltam à posição do Senhor. Querendo julgá-lo, eles o instituem juiz sobre si mesmos (v.26).
d) Pois se não credes que eu sou… (v.24) Quem és tu? (v.25) Respondeu-lhes Jesus: Quando exaltardes o Filho do Homem, então reconhecereis que eu sou. (v.28; cf. Is. 43.10) A vinda do Filho do Homem representa o desafio para os judeus. Eles são desafiados a ver nele o enviado do Pai. Mas eles não entenderam o recado (veja o item 2). Por isso a sua pergunta: Quem és tu?
O conteúdo da fé a que os interlocutores são desafiados é este: 'Eu sou. Nesta forma reduzida a expressão aparece novamente em 13.19 (cf. também 8.58). Outras vezes é acrescentado um complemento: pão (6.35), luz (8.12), porta (10.7), bom pastor (10.11), ressurreição (11.25), caminho, verdade, vida (14.6), videira (15.1). Como entender esta expressão reduzida? Que complemento acrescentar aqui? Talvez nenhum e, simultaneamente, todos. Esta expressão reduzida, sem predicativo qualquer, é a síntese de todas as demais: Eu sou tudo aquilo que eu tenho dito que sou (cf. Bultmann, Johannes, p. 265s).
Simultaneamente, porém, considerando a sequência do texto, em especial que no v.28, em resposta à pergunta do v.25, é retomada a expressão do v.24, devemos entender esta expressão em conexão com a primeira parte do v.28 e dizer: Eu sou o Filho do Homem. Tudo o que Jesus é pode ser resumido neste título — Filho do Homem (cf. Golpe, p. 468ss).
Conforme 12.34, os interlocutores de Jesus conhecem este titulo e sabem que o Filho do Homem é o Messias, aquele que trará a salvação e que será o juiz escatológico. O Filho do Homem è esperado como o Salvador escatológico no fim dos tempos. O mistério para os judeus e que este fim escatológico está presente. É interessante observar que este título aparece aqui no contexto da expressão exaltar (veja acima 3.c). Ao ser exaltado ele se torna o juiz escatológico, o Filho do Homem. Mas aqui ele já é o Filho do Homem que será exaltado. Novamente se destaca: em Jesus o fim já é presente; aqui acontece o evento escatológico; aqui está o Messias que traz a salvação para o que crê e juízo para aquele que não o reconhece.
Por isso, a conclusão da perícope é: Tendo dito isto, muitos passaram a crer nele. (v.30; este versículo é simultaneamente a ponte para os versículos subsequentes. Mas, considerando todo o contexto, pode-se torná-lo como conclusão desta perícope) Enquanto os judeus representam o grupo daqueles que não reconhecem o desafio do momento estes compreenderam o mistério: aqueles não creem e morrem no seu pecado (v.24), estes passam a crer, e com isso se elimina o contraste entre eles e aquele que traz a salvação (v.23).
II — O texto e o nosso contexto
A análise do texto nos levou à constatação de que nele são enfocados três aspectos:
— Jesus é o evento salvífico: nele o próprio Deus está presente. No confronto com Jesus, as pessoas são confrontadas com o próprio Deus.
Para as pessoas há uma dupla possibilidade diante deste confronto: … .
— Fechar-se a ele, a partir de sua posição rígida, fixando-se com isso o abismo entre realidade divina e humana, ou
— abrir-se a ele e reconhecer o momento oportuno, superando-se, assim, o abismo entre realidade divina e humana.
1. Como Jesus Cristo é visto em nossos dias? Ele ainda representa um desafio para nós? Como as pessoas são confrontadas com ele, hoje? Sem dúvida, a nossa situação é muito diferente da descrita em nosso texto. Jesus não está mais presente em carne e osso para discutirmos com ele. Mas o próprio relato de João é um testemunho para as pessoas que vivem depois dele.
Há muitas concepções sobre Jesus Cristo. Uma delas é muito atual e já era atual na época de Jesus. Em conexão com o termo Filho do Homem, ela diz: Jesus virá, Jesus logo volta, etc. Espera-se pela volta de Cristo, com a consequente destruição dos maus e o reconhecimento dos bons. E, atrás dessa concepção, está a certeza dos que a expressam, de estar entre os que serão recompensados. O olhar fixo nas nuvens (At 1.10) obscurece a visão clara para os desafios do Cristo na realidade concreta. Cristo tem que ser assim; a sua volta vai ser desta forma — será que isto não poderá obscurecer o olhar das pessoas, de modo que não vejam os desafios do Cristo aqui e agora?
Mas Jesus também pode ser encarado como um bom homem, que lutou em favor dos marginalizados, que demonstrou um humanismo extraordinário na sua maneira de ser. E a gente procura seguir o exemplo deste Jesus. Até que ponto a nossa pregação e o nosso testemunho estão colocando este Jesus como algo mais do que só um filantropo? Até que ponto nosso falar e agir desafiam as pessoas a verem neste Jesus o próprio Deus?
Jesus é o evento salvífico. Isto significa: nele se realizam os sonhos da humanidade por felicidade, vida abundante, realização. Nosso mundo está cheio de pessoas que buscam esta vida abundante nos mais diversos setores e das mais diversas formas: tóxicos, ideologias políticas, sexo, status, riqueza, etc. Estamos dizendo que este Jesus é a resposta à busca desta pessoas? Estamos deixando claro a estas pessoas que, se eles não reconhecerem que ele é, morrerão em seus pecados?
2. Mas a nossa situação também se assemelha em muito a dos judeus, com os quais Jesus discute no texto. Como eles, nós estamos dentro de uma tradição que conhece muito bem os caminhos de Deus com seu povo. Nós conhecemos a história da Igreja, especificamente da nossa confissão. Nós também sabemos, mais ou menos, as doutrinas básicas da fé cristã. Com isso, nós estamos em condições de saber quem é Deus, como ele está presente em nossa realidade, como ele age ou deveria agir.
Essa atitude — como também a dos judeus da época de Jesus — é uma atitude séria que procura considerar justamente os pontos básicos da sua doutrina e tradição. Se nós sabemos quem Deus é e como ele se manifesta hoje, é porque o levamos a sério; é porque ele significa algo para nós.
Mas, exatamente nessa nossa atitude, poderemos estar andando por caminhos radicalmente opostos aos caminhos de Deus. E, com isso, também estaremos entre aqueles que não mais entendem o caminho da história: Terá ele acaso a intenção de se suicidar? Quem és tu? Eles, porém, não atinaram que lhes falava do Pai. Por levarmos nossa fé tão a sério, por estarmos tão radicalmente comprometidos com a nossa posição, nossa tradição, nossa confissão, nós nos tornamos surdos para o falar de Deus hoje. Por estarmos tão bitolados, não temos condições de ver os caminhos de Deus hoje. Onde acontece isso?
— Num confessionalismo fechado e unilateral: só a minha Igreja é a certa;
— num modelo tradicional e hermético de atuação e vida comunitária: sempre foi assim;
— num apego ferrenho a posições teológicas: esta é a verdade;
— na defesa de um posicionamento e de uma atuação unilateral da Igreja: a Igreja não deve meter-se nestes assuntos, ou: a Igreja só se ocupa com estes problemas.
Com isso estaremos tentando eliminar o verdadeiro Cristo, calar a voz de Deus — exaltar o Filho do Homem — e, na realidade, estaremos cortando o galho, no qual estamos sentados. Julgando sobre o Cristo, estaremos instalando a ele como juiz sobre nós mesmos. A época da Paixão deve levar-nos a refletir sobre isso.
Nesta situação nós somos desafiados a estarmos dispostos a ouvir, constantemente, o falar novo de Deus. Caso contrário, se nos aferrarmos à nossa posição, sem atentar para os constantes novos desafios de Deus, poderá ser tarde demais: poderemos ter perdido o momento oportuno de nos comprometermos de fato com o Cristo.
III — O texto e a nossa pregação
A partir das reflexões acima, a pregação poderá abordar os três tópicos centrais do texto:
— Jesus é o evento salvífico: nele o próprio Deus está presente.
— Qual a nossa atitude diante deste Jesus? ..— Fechar-nos na nossa posição. — Abrir-nos ao desafio do Cristo.
Para tudo isto a época da Paixão pode ser um desafio. Dando um outro sentido ao nome deste domingo: na Paixão somos lembrados de que podemos levar, de muitas maneiras, Jesus à cruz, deixando de perceber o desafio de Deus. .
IV — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Santo Deus, a cruz de Cristo nos mostra o quanto tu sofres por nós e quão alto preço tu pagaste por nós. Nós te confessamos que, muitas vezes, nós nem nos damos conta daquilo que fazemos de mal. Outras vezes nós não reconhecemos o quanto há de maldade em nossas ações. Nós pensamos que está tudo certo, assim como o estamos fazendo, e não reparamos que há tantos outros que sofrem com aquilo que fazemos errado. E quem mais sofre com isso és tu mesmo, Senhor. Tudo isto acontece, porque não levamos a ti, santo Deus, a sério, como Senhor sobre a nossa vida. Por isso Cristo teve que morrer. E ele morreu por nossa culpa, na cruz. Mas esta cruz pode ser para nós uma nova vida. Por isso nós te pedimos: Tem compaixão de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor Deus e Pai, nós queremos ser teus discípulos. Mas se tu mesmo não nos seguras, nós não podemos persistir. Por isso nós te suplicamos: segura-nos, tu mesmo, em tuas mãos. Abre nossos olhos para vermos os teus caminhos na nossa história. E abre os nossos ouvidos para ouvirmos o teu desafio, o qual tu nos lanças hoje através da tua Palavra. Amém.
3. Assuntos para a intercessão: por todos os cristãos em todas as Igrejas, pela compreensão correta do desafio de Cristo na realidade concreta; por todos os que não compreendem os caminhos de Deus com eles; por todos os que sofrem por nossas ações injustas.
V — Bibliografia
– BERTRAM, G. HYPSOÕ. In: KITTEL, G. e FRIEDRICH. G. ed. Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. Vol. 8. Stuttgart, 1969.
– BULTMANN, R. Theologie des Neuen Testaments. 4. ed. Tübingen, 1961.
———. Das Evangelium des Johannes. In: Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament Parte II. 18. ed. Göttingen, 1964.
– COLPE, C. YIOS TOU ANTHROPOU. In: KITTEL, G. FRIEDRICH, G. ed. Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. Vol. 8. Stuttgart, 1969.
– DELLING, G. HYPAGÕ. In: KITTEL, G. FRIEDRICH. G. ed. Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testa-mtnt. Vol. 8. Stuttgart, 1969.
— RENGSTORF, K. H. APOSTELLÕ (PEM-Pô). In: KITTEL, G. ed. Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. Vol. 1. Stuttgart, 1966.
– SCHULTZ, S. Das Evangelium nach Johannes. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol. 4.12. ed. Göttingen, 1972.