Prédica: Lucas 14.25-33
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: 5º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 03/07/1983
Proclamar Libertação – Volume: VIII
I
Há nos evangelhos sinóticos todo um grupo de textos que fala do seguimento. É conhecida a narrativa de Mc 1.16-20. No centro dela está o agir soberano de Jesus. Vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homens. (v.17) E é destacada a obediência incondicional dos que são chamados. Então eles deixaram imediatamente as redes, e o seguiram. (v.18) Seguimento acontece quando ressoa o chamado soberano de Jesus. Seguimento é vocação. A decisão própria dos discípulos passa para um segundo plano. Importa a graça da vocação. Sem dúvida, o acento nesta narrativa de Marcos está no agir de Jesus. Aproxima-se como Senhor de Simão Pedro e André, de Tiago e João e os torna seus discípulos em incontestável autoridade. Tudo o que passa disso parece não ser de interesse.
Quando, porém, olhamos para o nosso texto, verificamos que aí está colocado um acento diferente. Em Lc 14.25-33 recai bastante peso sobre a decisão daqueles que querem ser discípulos de Jesus. Conforme este texto a decisão deve, inclusive, primeiro ser muito bem refletida! Isso não é um acaso. O termo PRÕTON até aparece duas vezes. Deve estar em relação com a mensagem central da nossa perícope. Jesus não quer discípulos que não consideram as consequências do discipulado. As colocações são vigorosas e penetrantes. Bultmann observa bem, quando diz: A palavra da proclamação que convida é, ao mesmo tempo, palavra de intimidação. (R. Bultmann. Jesus. 1926, p. 33)
Mas não podemos entender o nosso texto, sem levarmos em conta que ele está intimamente ligado á parábola da Grande Ceia, que o precede. Certo homem deu uma grande ceia e convidou a muitos. (v. 16) No final, é feita a constatação de que o convite continua até que fique cheia a minha casa, (v.23) O convite do Senhor é o pressuposto!! Assim, o discipulado é sempre resposta. Em uma narrativa a decisão soberana de Jesus pode estar sendo destacada, em outra, a decisão dos que lhe querem seguir. Mas, de qualquer modo, trata-se de uma unidade. Ser discípulo significa decisão, a decisão de Jesus a respeito de certos homens, embora depois não se dispense menos a decisão deles em relação a Jesus. (Bornkamm, p. 137)
O que esta decisão significa concretamente em termos de seguimento? Quais as exigências do seguir a Jesus? Com estas perguntas queremos aproximar-nos da perícope do Evangelho de Lucas, prevista para o 5° Domingo após Trindade, .iniciemos com as duas parábolas que nela se encontram. Elas não são muito extensas. Ao contrário, são bastante breves e retratam, cada qual, somente uma pequena cena. Convidam para a reflexão com as perguntas qual de vós? e qual é o rei que…?
II
Vv.28-30: Na primeira parábola Jesus toma elementos da vida diária. Alguém quer construir uma torre. PYRGOS, conforme Mc 12.1, significa uma torre de vigia: Um homem plantou uma vinha, cercou-a de uma sebe, construiu um lagar, edificou uma torre, arrendou-a a uns lavradores e ausentou-se do país, É evidente que, diante de um empreendimento desse tipo, é necessário fazer um cálculo exato sobre as reais possibilidades. Antes ainda de lançar-se as fundações, deve ser feito um orçamento. É a pergunta pelos meios. Quem não leva em conta a preocupação pelas suas reais condições poderá sofrer uma decepção muito grande. Servirá, então, de motivo para zombaria. Para não suceder que, tendo lançado os alicerces e não a (a obra) podendo aca-bar, todos que a virem zombem dele dizendo: Este homem começou a construir e não pode acabar. (vv. 29 e 30) Praticamente se diz: Refuta sobre as consequências!
Vv. 31 – 32: Esta cena não é extraída tão diretamente da vida diária, mas também nela é descrita uma situação que todos conhecem ou podem, facilmente, imaginar. Vemos um rei envolvido em uma guerra. E vale aí, como na cena anterior, o imperativo de calcular friamente as chances. O rei precisa verificar com exatidão qual é o seu potencial bélico! Eventualmente negociações diplomáticas sejam o mais indicado. Se o rei constata que não poderá enfrentar o inimigo que o ataca, envia-lhe uma embaixada, pedindo condições de paz. (Versão de Almeida) W. Grundmann chama atenção para o fato de que ERÕTAN TA PRÓS EIRËNËN pode, também, ser traduzido por render-se. Parece-me, no entanto, que a tradução pedir condições de paz é bastante feliz e se enquadra bem no contexto. Seja como for, a advertência do texto é esta: Primeiro devem ser consideradas as consequências! Aventureiros se dão mal.
III
Vv. 25-27: Lucas colocou essas parábolas em uma moldura, com a temática bem definida do discipulado. Isto significa que a sua mensagem central coincide com a das palavras sobre o discipulado. E, realmente, ali se adverte contra uma decisão irrefletida, aqui se fala da abnegação que o discipulado exige.
A exigência é radical. Por isso a conclusão no v.33: Assim, pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo quanto tem, não pode ser meu discípulo.
Neste contexto há formulações duras que nos são chocantes. Talvez seja por isso que tão poucas vezes se ouve uma prédica sobre nossa perícope. Quem gosta de ouvir: Se alguém vem a mim, e não odeia a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos e irmãs e ainda sua própria vida, não pode ser meu discípulo?
Lucas emprega o termo MISEIN. Mateus usa uma formulação mais branda: FILEI N HYPER. Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim… (Mt 10.37). Odiar não deve ser entendido em sua carga emocional, mas no sentido de não atribuir o primeiro lugar. Muito bem lembra Barth que as pessoas aí enumeradas certamente não estão excluídas da exigência do amor ao próximo. O que é condenável è a concentração do amor ao próximo nestas pessoas. (KD IV/2, p. 524) Pois isso seria, em realidade, a negação do mesmo. Com certa ironia Barth fala da falsa paz que se espraia no calor do doce lar, onde, ao mesmo tempo, se prepara uma guerra fria contra todos os outros. (KD IV/2, p. 623) Com o irrompimento do Reino de Deus é anunciado o fim, tanto à família absolutizada, quanto à posse absoluta e à própria honra, quando colocada em termos absolutos!
Neste sentido, discipulado é rompimento. A própria práxis de Jesus é um quebrar das assim chamadas ordens estabelecidas, de todas as pretensas ordens naturais da vida, de todos os poderes da história que, arrogando-se dignidade e validade absolutas, se interpõem diretamente como autoridades — de maneira mitológica, mas com muito realismo, denominadas de deuses — entre Deus e os homens, mas também entre os homens e seus semelhantes ou, melhor, que o homem colocou entre Deus e si mesmo e entre si e seu próximo. (KD IV/2, p. 615) Isto parece um tanto abstraio, mas, como vimos, o nosso texto cita alguma dessas autoridades destronadas pelo nome. Refere-se à família, às posses e à própria vida, quando absolutizados. O discípulo evidencia a queda de todas essas autoridades, negando-lhes a obediência.
Em Cristo, Deus se manifesta como o Deus condescendente, que, sem cessar, busca o homem e lhe quer estar bem próximo. Nada impedi-lo. O que tentava opor-se tinha que ser vencido. Assim, Jesus, como Filho de Deus, precisou transpor o abismo que ordens e ordenanças querem manter aberto entre os homens. Jesus não foi um mero reformista. Ele, de fato, foi revolucionário. Com todo o rigor fez valer a exclusividade de Deus. Nenhum lugar para deuses! !É preciso romper com tudo que se quer tornar absoluto e tomar o lugar de Deus! É isso que se pede no discipulado. Ai não basta que nos contentemos com uma mera doutrina que fale da relativização das grandezas que se colocam como sendo absolutas. Não se trata, igualmente, de uma questão de mentalidade, onde, de maneira intimista, nos contentássemos com a constatação de que tais autoridades foram destronadas. Discipulado é práxis, é uma vivência em que a ruptura com tudo que escraviza se torna visível. Por isso as palavras sobre o sal da terra nos vv. 34 e 35!
Não se pode querer passar desapercebido como participante do Reino de Deus! Discipulado é sempre algo visível e algo público.
Nos termos do 1° Mandamento, Eu sou o Senhor, teu Deus, não terás outros deuses além de mim, destacamos a radicalidade do seguimento a Jesus Cristo. Vimos que pai, mãe, filhos… e a própria vida podem ser tais deuses. Ai me ocorre a tão citada formulação de Lutero:
Portanto, ter um Deus outra cousa não é, senão confiar e crer nele de coração. Repetidas vezes já disse que apenas o confiar e o crer de coração faz tanto Deus como ídolo… Aquilo, pois, a que prendes o coração e confias, isso, te digo, é propriamente o teu Deus. (Catecismo Maior)
Além do que foi citado no v.26 como grandezas que não devem entrar em concorrência com o Deus vivo, há tantas outras! Poderíamos pensar na ânsia por poder, por dominação, por projeção social. Imaginemos a busca desesperada por status. Não esqueçamos do poder com que o dinheiro quer exercer domínio sobre nós! Aqui eu gostaria cie chamar atenção para o v.33. Já falamos do desprendimento, da disposição de deixar tudo que caracterizam a vida do discípulo. Mas, aqui, hái uma referência especial às posses. Expressamente é dito: Assim, pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo quanto tem, não pode ser meu discípulo. APOTASSESTHAI significa renunciar a tudo que alguém possui. Parece que Lucas contava com a desistência de posses como algo típico para a existência cristã. Mas, pelo que tudo indica, não se trata de um desprezo à propriedade privada como tal. A reflexão gira em torno do homem que recusa o chamado ao discipulado, porque se prende a seus bens.
IV
Gostaria de encerrar com um pensamento que, no meu ver, é relevante para a prédica. Pode-se ter a falsa impressão de que ao discipulo tudo é tirado. Parece até que dele somente se pede, somente se exige. Aí tem que ficar bem claro que, na realidade, recebemos, somos regiamente presenteados! Este traço evangélico deve ser desenvolvido pelo pregador. O Deus que não permite outros deuses além dele é o Deus do amor. Sim, conforme 1 Jo 4.16, Deus é amor!
Exatamente para isso A. Schlatter aponta em suas belíssimas explanações do Novo Testamento (Erläuterungen zum Neuen Testament). Jesus falou a partir do amor. E o que ele quer, é dar-nos autonomia e liberdade. Jesus ordena que amemos os nossos inimigos; nossos familiares nos ordena odiar. As duas palavras, em conjunto, expressam a totalidade e a pureza do amor que Jesus exige. Liberta-o de todas as limitações, tanto daquelas que o ódio dos inimigos lhe impõe, quanto daquelas que o amor dos que nos são caros quer lhe impor.
Não de privações devemos falar, mas da verdadeira liberdade que se recebe no seguimento a Jesus. Não lamentar, mas proclamar!
Esta liberdade, porém, coloca suas exigências, como o esboçamos acima.
V
Sugiro os seguintes passos para a prédica:
a) Introdução. Jesus Convida. Convida a todos (parábola da Grande Ceia). Quem decide seguir-lhe está respondendo a este convite.
b) Discipulado, como resposta, não é uma aventura passageira. Duas breves parábolas advertem contra uma disposição imponderada para o seguimento. É necessário considerar a tempo o que esse seguimento exige.
c) Exige abnegação e renúncia (v.33 e os vv. 25-27). No contexto dessa renúncia encontramos formulações que, à primeira vista, são chocantes. Odiar pai e mãe, por exemplo. Não está isto, inclusive, em contradição com o 4° Mandamento? O que significa, aqui, odiar? Proponho uma interpretação no sentido de libertação de tudo o que quer adquirir valor absoluto na nossa vida e de tudo a que nós queremos atribuir valor absoluto. Não terás outros deuses além de mim.
d) Deus, que é amor, não tem interesse em nos tirar algo, mas ele nos quer conduzir para a verdadeira liberdade. Nesta liberdade podemos viver uma vida de entrega e de doação.
VI — Subsídios litúrgicos
1. Salmo 73.14,23-26,28
Pois de continuo sou afligido.
e cada manhã castigado.
Todavia, estou sempre contigo,
tu me seguras pela minha mão direita.
Tu me guias com o teu conselho
e depois me recebes na glória.
Quem mais tenho eu no céu?
Não há outro em quem eu me compraza na terra.
Ainda que a minha carne e o meu coração desfaleçam,
Deus é a fortaleza do meu coração
e a minha herança para sempre.
Quanto a mim, bom é estar junto a Deus;
no Senhor Deus ponho o meu refúgio,
para proclamar todos os seus feitos.
2. Confissão de pecados: Senhor, tu nos deixas saber qual a tua boa e misericordiosa vontade. Perdoa-nos que sempre de novo tentamos fugir da obediência à tua Palavra. Perdoa nossos falsos compromissos, com os quais procuramos nos desculpar. Reconduze-nos para junto de ti, quando nos desviamos. Ajuda-nos a vivermos segundo o teu querer. Tem piedade de nós, Senhor!
3. Oração de coleta: Tua Palavra, ó Deus, muitas vezes se tornou rotina para nós. Por isso, hoje te pedimos especialmente: Dá que percebamos o tão radicalmente novo da mensagem do teu Evangelho. Derrama em nós o teu Espírito Santo, para que abra nossos corações e nossas mentes. Amém.
4. Assuntos para a intercessão: que Deus tenha paciência com a humanidade que não encontra paz, porque não quer aceitar a verdadeira paz; que ele se compadeça dos que se deixam obcecar pelos ídolos, pelos que não conseguem crer e amar; deveríamos também interceder por nós mesmos, no sentido de que Deus nos torne discípulos alegres, que nos faça ver que junto a ele temos liberdade para viver.
V — Bibliografia
– BARTH, K. Die Kirckliche Dogmatik. Vol. IV/2. Zollikon-Zürich, 1955.
– BONNHOEFFER. D. Discipulado. São Leopoldo, 1980.
– BORNKAMM, G Jesus de Nazaré. Petrópolis, 1976.
– GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Lukas. in: Theologischer Handkommentar zum Nenen Testament. Vol. 3. 6. ed. Berlin, 1971.
– EICHHOLZ, G. Meditação sobre Lucas 14.25-33. in: Hören una Fragen. Vol. 3. Neukirchen-Vluyn. 1967.
– SCHELLONG, D. Meditação sobre Lucas 14.25-33. Göttinger Predigtmeditationen, Göttingen, 25(70/71): 298-307, 1971.