Prédica: Marcos 16.9-14 (15-20)
Autor: Carlos Musskopf
Data Litúrgica: Domingo Quasimodogeniti
Data da Pregação: 10/04/1983
Proclamar Libertação – Volume: VIII
I — O texto
Estes versículos, que constituem hoje o final canónico do Evangelho de Marcos, seguramente não foram escritos pelo próprio evangelista. Os principais manuscritos dos evangelhos — o Sinaitico e o Vaticano – não apresentam o texto. Além disso, os vv. 9ss não são continuação de 5-8.0 v.8 fala do medo das mulheres e o v. 9 fala da aparição a Maria Madalena, a qual é descrita sem necessidade, pois já havia sido citada no v.1. Também não fala de alguma aparição na Galiléia prometida por Jesus em 14.28 e 16.7.
Não se sabe se Marcos escreveu um outro final e, em caso afirmativo, o que aconteceu com ele. Também não existe nada de definitivo a respeito do autor (ou autores) do texto atual. O que se pode afirmar é que se trata de uma composição de textos já existentes, que foram coletados e, posteriormente, anexados ao final do Evangelho de Marcos. A época mais provável desta anexação é o início do séc. II d.C.
Trata-se, portanto, de uma coletânea de textos que pode ser separada em três blocos:
9-14 (aparição e incredulidade);
15-18 (envio e poderes dos discípulos);
19s (ascensão e ação dos discípulos).
O primeiro bloco tem uma unidade temática dentro de si, mas não a mesma origem traditiva. Os vv.9s estão baseados em Jo 20.1,11-18. A aparição em primeiro lugar a Maria Madalena está em contradição a 1 Co 15.5, onde ele teria aparecido primeiro a Ceias. É relevante o fato de uma mulher ter a coragem de ir ao sepulcro, enquanto os homens choravam e lamentavam a perda do Mestre. Os vv. 11-13 são um resumo de Lc 24.11,13-55. Aqui está um dos aspectos centrais da perícope: o simples relatar não convence. A incredulidade não é apenas de um ou de outro, mas de todos que ouvem falar do ocorrido. Só crêem os que têm um encontro particular, especial com o Jesus ressurreto.
Visto de outro lado, o acreditar não depende da minha boa vontade, ou da ênfase que o transmissor possa dar, mas da decisão que Jesus faz pela pessoa. Quem causa impacto é Jesus mesmo com sua presença. Isto fica claro no v.14, também extraído de Lc 24, que mostra como Jesus conhecia seu povo, sua cabeça-dura, suas impertinências, suas falhas. E ele bota o dedo na ferida, mexendo com aqueles chorões medrosos. Um manuscrito apresenta uma apologia dos discípulos, inserida entre os vv.14 e 15, nos seguintes termos: E eles alegaram em sua defesa: Este mundo (século) de iniquidade e de incredulidade está sob o domínio do Diabo, que não deixa que aquilo que está sob o jugo dos espíritos impuros receba a verdade e o poder de Deus; manifesta, pois, já desde agora tua justiça. Isto é o que disseram a Cristo, e ele lhes respondeu: O término dos anos do poder do Diabo chegou, mas outras coisas terríveis se aproximam. E eu fui entregue à morte pelos que pecaram, para que se convertam à verdade e não pequem, a fim de que herdem a glória espiritual e incorruptível de justiça que está no céu… (Este adendo fica como curiosidade. Não será levado em consideração na meditação).
Os vv. 15ss não são continuação lógica do que antecede, mas um novo bloco da coletânea. Parecem baseados em Mt 28.19, mas deve-se registrar a alteração de pregar a todos os povos, de Mateus, para 'todo mundo, usado pelo redator. Esta formulação, na cristandade, é anterior à de Mateus. A ordem Evangelho-fé-salvação eterna é formulada. O momento chave para o que crê é o Batismo. A partir deste momento, a pessoa está incluída no plano de salvação divina. Mas o que não crê, mesmo que batizado, não tem chance nenhuma diante de Deus; será condenado. Na prática, os versículos parecem até estar em contradição com o precedente. Se os que viram Jesus e o proclamaram aos discípulos não foram ouvidos, como ouvirá todo mundo, para que se salve?
A resposta é dada nos vv.17s. Jesus vai acompanhar os anunciadores (pregadores) com sinais. Neles Jesus se revela, aparece e convence, converte. A presença marcante de Jesus nos sinais não são 'prova de sua existência, mas marca, revelação de sua existência, epifania moderna de seu ser. Importante lembrar que, a partir do envio, algo vai mudar na condição de vida dos ouvintes. Da mesma forma, os próprios transmissores, quando em apuros, terão forças extraordinárias para reagir e neutralizar a ameaça. E isto que os enviados por Jesus são aqueles chorões medrosos que ele encontrou enclausurados em casa.
Portanto, se o Evangelho é levado com pureza às pessoas, encontra lá um terreno fértil, arado pelo Batismo. Jesus fertilizou este terreno e conduziu o arado, e também fará crescer esta planta em forma de sinal maravilhoso de sua ação. (Problema existe, quando o pregador
quer ser mais importante — mais saliente — que aquele que é pregado, e, com isso, joga pérolas aos porcos). Salvação eterna encontra, pois, seu lugar,desde já, no relacionamento das pessoas entre si. Esta é a consequência imediata e necessária do agir de Jesus.
O v. 19 mostra a necessidade que havia de falar na ascensão. Provavelmente foi inspirado em Lc 24.50-53. Também não tem uma relação temporal com o que precede. Constituí um bloco isolado da composição. Como nos demais versículos, o redator não narra mas, sim, fala da glorificação do Senhor em estilo formulário e conciso da pregação cristã primitiva (Schmid, p. 446). Com exceção de Mc 11.3, Jesus não é chamado de Senhor no Evangelho de Marcos. Quanto à forma como é descrita a ascensão, é tomada da história de Elias (2 Rs 2.11).
Por fim, no v.20, que pode ser continuação de 17s, a missão é pregar. Jesus não fica pregado na parede… ou na cruz. Ele é o Alfa e o Ômega = o objeto e o sujeito da pregação. É ele mesmo quem faz ter fé nele. A Palavra, então, não volta vazia, mas vai sendo confirmada por sinais.
II — Meditação
A fé cristã não existiria, se Jesus não tivesse sido ressuscitado pelo Pai. Esta é uma afirmação aceita por todos os cristãos. Como, então, se poderia entender que o Evangelho de Marcos fizesse uma única alusão à ressurreição (v.6)? Esta pergunta perseguia desde cedo os leitores do Evangelho de Marcos, o qual, por isso, logo ganhou este adendo.
Falar da ressurreição não è faiar de algo vazio, abstrato, teórico. Os relatos da ressurreição surgem a partir de uma relação concreta, direta com o ressuscitado. E as consequências são coragem, disposição, ânimo para pregar a Palavra.
Portanto, hoje só podemos falar da ressurreição, a partir da experiência que nós, pregadores, fazemos com ela. A Palavra de Deus tem nos renovado? Como consequência, temos nós (em conjunto com a comunidade) transformado o meio em que vivemos e atuamos? Temos encorajado os membros a participarem, como seres renovados por Deus, de movimentos e instituições que propõem uma nova sociedade, justa e fraterna, mesmo correndo o risco de serem chamados de comunistas ou subversivos?
Ora, a ressurreição fala de uma outra vida. Uma vida aqui, mas não como esta que está aí. Isto exige uma renovação dialética do mundo e do homem. Tomemos como ponto de partida o homem renovado que, transformando as estruturas em que vive (primeiro as pessoais, depois talvez as do Sindicato ou as da Associação de Bairro e, por fim, toda a superestrutura ideológica), cria novas estruturas para homens novos, que as vão novamente transformando, e assim sucessivamente. Um bom campo de ação para iniciar é também a estrutura da comuni-dade. Aqui se pode experimentar ressurreição quando, por exemplo, o presbitério descobre que de Igreja de atendimento, precisamos passar a ser Igreja missionária. Organizar uma comunidade missionária exige renovação de tudo: desde a localização da casa paroquial e da igreja, até a mentalidade do mais afastado dos membros (sem esquecer a do pastor, que é a mais dura de mudar!).
Mas Jesus não abandona os cabeças-duras. É interessante: os ricos de hoje são aqueles que souberam aproveitar a situação. Investiram na inflação e ganharam. Os cabeças-duras guardaram o dinheiro, ou resolveram não investir em nada, não correr risco… e perderam. Ficaram para trás. Uns mais, outros menos, outros bem para trás. Todos perderam. Penso que esta deve ser a origem dos colonos de Nova Ronda Alta.
Não é irônico que nós reverenciemos a inteligência e a esperteza dos ricos e menosprezemos os pobres, quando é justamente para estes medrosos e chorões que Jesus confia o futuro de sua própria missão? Isto quer dizer que Jesus deseja fazer de cada pobre, de cada assalariado, de todo o que vende sua força de trabalho em troca de dinheiro, um pregador, um mensageiro, um agente da ressurreição, da nova vida. E faz isso com os pobres, por uma razão muito simples, apontada por Paulo Freire: Só os pobres podem ser utópicos. Só os pobres podem pensar o futuro do mundo de maneira diferente do presente. Os ricos só esperam do futuro uma confirmação do que aí está.
Sei que para nós, pastores e pregadores, é difícil compreender isso, da mesma forma como foi difícil para os discípulos que ouviram falar da ressurreição de Jesus. Nós também temos ouvido falar da revelação de Deus nos pobres e oprimidos, nos livros da Teologia da Libertação e outros. Mas viver a realidade que eles vivem, dramática, cruel, diária, e aprender com eles, é outra coisa. Essa situação é muito parecida com a dos discípulos que não acreditaram nos relatos da ressurreição feitos por Maria Madalena e pelos outros dois. Só o contato direto, o envolvimento real e concreto com o Jesus ressurreto é que converteu e deu sentido ao que haviam ouvido falar. A partir desse contato, também passou o medo do futuro, a incerteza com relação ao que havia de vir, e os discípulos se transformam de passivos chorões em ativos anunciadores, proclamadores da Boa Nova que conheciam. Certamente foi um momento de ressurreição também para eles: uma nova vida se iniciou. Um vida sai da casca protetora das paredes e se lança num projeto imenso de levar ao mundo esta mesma possibilidade.
III — A prédica
Nunca preguei sobre este texto, mas proponho uma prédica com o seguinte esquema:
1. Leitura do texto.
2. Apresentar o lugar vivencial: a repressão a Jesus e seus seguidores; o consequente medo; a esperteza das mulheres que lembram a repressão; a coragem que elas têm; a incredulidade dos discípulos, seguramente motivada pelo medo; a transformação que Jesus realiza na cabeça das pessoas (v. 14).
3. Contar a história de uma senhora que vinha às reuniões da OASE para se queixar da empregada, dos filhos e do marido. Mas a Palavra de Deus lhe mostrou que todos estamos sob a cruz de Jesus e que somos igualmente falhos e pecadores. Esta senhora foi compreendendo que não podia tratar a empregada como um ser inferior. Percebeu, até, que já era uma injustiça muito grande o fato de ela poder dar-se o luxo de deixar o trabalho mais difícil para uma outra pessoa, que só o fazia para ganhar uma miséria de dinheiro. Compreendeu também que, em vez de se queixar do marido e do filho, deveria ser mais companheira e amiga deles. A partir desta nova mentalidade, iniciou-se uma nova relação na vida daquela família.
4. A ressurreição não é falar de algo do passado, mas uma experiência de fé. A fé nos faz experimentar a nova vida que Cristo nos legou. Esta nova vida não é algo abstrato, teórico, mas é libertação para a pessoa e, a partir dela, para o meio em que vive. É, ao mesmo tempo, coragem para enfrentar os desafios e as barreiras colocadas pelos que adoram a velha vida.
5. Por fim, deve ser reforçado o aspecto do envio, ou seja, a libertação e a coragem que ficam apenas em mim mesmo não são genuinamente cristãs. O verdadeiro cristão é aquele que aproveita a libertação e a coragem, produzidas pela fé, para agir em beneficio dos outros, e não para satisfazer-se a si próprio. Os ouvintes também são chamados a agir positivamente no mundo, intervindo ali onde se tomam as decisões, lutando para que mais pessoas se acordem e passem a fazer o mesmo.
IV — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Trino Deus e Senhor, com humildade nós reclinamos nossas cabeças para colocar diante de ti e dos irmãos as nossa falhas, os nossos defeitos, os nossos pecados. Tu nos convidas diariamente a uma nova vida, mas nós somos uns cabeças-duras e nos escondemos, nos encolhemos e deixamos as coisas como estão. Por Isso nos sentimos tão culpados pelas desgraças do mundo, pois somos nós quem as provoca. Por favor, olha para nós a partir do sacrifício de teu Filho Jesus Cristo, e tem piedade de nós, Senhor l
2. Oração de coleta: Senhor, nosso Deus! Tu tens sido bondoso e generoso conosco. Agora pedimos que abras o nosso coração e a nossa mente, para que tua vontade, revelada pela Palavra, encontre em cada um de nós um ter-leno fértil, no qual cresçam os frutos que teu amor produz. Isto pedimos em nome de teu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, amém.
3. Oração final: Senhor, tu encontraste os teus discípulos com medo, chorando por tua ausência. Mas, com a tua presença, eles voltaram a ter disposição, força e coragem. Acompanha também a nós, ao sairmos desta igreja, a fim de que cada um de nós experimente um novo vigor, uma nova vontade de viver. Capacita-nos e envia-nos para levar, com esta disposição, a tua Palavra da vida a todos os cansados e desanimados; a todos os que não crêem no teu poder, a todos os que cruzam os braços, pensando que as coisas são assim e que nada vai mudar; a todos os que despertam para um envolvimento com tua Palavra no dia-a-dia; a todos os que se engajaram, em seu local de atuação ou de trabalho, pela melhora das condições de vida e pela transformação das estrutural injustas; aos jovens que são deformados pela propaganda enganosa, pelos vícios e pelas falsas oportunidades; aos jovens casais que estão demasiadamente preocupados com a vida social e muito pouco com Deus, que os uniu; aos velhos que, muitas vezes, são desprezados e outras vezes se desprezam a si mesmos, dizendo que não servem mais para nada…
V — Bibliografia
– NINEHAM, D.E. The Gospel of St. Mark. London, 1963.
– SCHMID, J. El Evangelio segun San Marcos. Barcelona, 1973.
– SCHNIEWIND, E. Das Evangeüum nach Markus. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol. 1. 5. ed. Göttingen, 1949.
– SCHWEIZER, E. Das Evangelium nach Markus. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol. 1. Göttingen, 1967.
– WEISS, J. Die drei älteren Evangelien. Die Apostelgschichte. In: Die Schriften des Neuen Testaments. Vol. 1. 2. ed, Göttingen, 1907