Prédica: Miquéias 6.6-8
Autor: Ulrico Sperb
Data Litúrgica: 22º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 30/10/1983
Proclamar Libertação – Volume: VIII
ELE TE DECLAROU, Ó HOMEM, O QUE É BOM
I — Introdução
Miquéias é contemporâneo de Isaías e agiu em Judá (750-687 a.C.). Pouco se sabe sobre sua pessoa. Seu livro não contém narrações históricas, mas palavras de juízo sobre Israel e Judá (caps. 1-3; 6-7.6), palavras de salvação (caps. 4-5) e parte de uma lamentação popular (7.7-20).
Mq 1.2-7 resume a mensagem do profeta: os povos da terra são chamados como testemunhas; Deus vem para julgar seu povo, por causa dos pecados que partiam de Jerusalém e da Samaria. A acusação de Miquéias tem cunho claramente social: 2.1-2 — roubo de terras e casas e uso da violência; 6.9-16 — comércio fraudulento e acúmulo de riquezas; 7.1-6 — quebra da comunhão, não há mais confiança; 3.1-4 — abuso e exploração por parte das autoridades; 3.9-12 — as autoridades pervertem o direito. Miquéias, em sua pregação, causa estorvo e os poderosos querem silenciá-lo (2.6 e 11). Ele, no entanto, está seguro de sua missão: Eu, porém, estou cheio do poder do Espirito do Senhor… (3.8) Por isso, também se vê compelido a falar contra os profetas que anunciam salvação a troco de vinho (2.11).
II — Contexto
A perícope está inserida nas palavras de juízo sobre Israel (caps. 6-7.6). … porque o Senhor tem controvérsia com o seu povo, e com Israel entrará em juízo. (6.2b) Deus levanta a pergunta sobre o porquê de o povo se ter voltado contra ele: Que foi que te fiz?(6.3) Os vv. 4 e 5 relembram os atos de justiça do Senhor. Os vv. 1 e 2 ameaçam o juízo. Deus anuncia o julgamento. E os vv. 6-8 são a resposta. O profeta reflete como o povo gostaria de escapar do juízo (vv. 6 e 7) e como pode se salvar do juízo (v.8). O que segue (vv.9ss) levanta a questão dos negociantes fraudulentos que são uma afronta ao que é dito no v.8.
III — O Texto
1. Os Versículos
V. 6: Quando Israel sentia o peso da ira de Deus sobre si, pensava em holocaustos para aplacar esta ira (cf. Jz 21.4; 1 Sm 13.9). A pergunta inicial, Com que me apresentarei ao Senhor, e me inclinarei ante o Deus excelso?, encontra uma resposta na pergunta pelos holocaustos. Seriam sacrifícios destinados exclusivamente a Deus. Os animais, então, seriam queimados totalmente. Os ofertantes e sacerdotes não comeriam nada dos holocaustos — ao contrário de outros sacrifícios, dos quais eles comeriam uma parte e a outra seria oferecida a Deus. Bezerros de um ano11 já seriam uma oferta especial.
V. 7: A pergunta de 6a continua a ser respondida com outras perguntas: Qual será a oferta que agradará a Deus? Milhares de carneiros? Dez mil ribeiros (Lutero fala em correntezas) de azeite? O próprio filho mais velho? Será que dá para trocar o fruto do corpo pelo pecado da alma? Do exagero, a reflexão passa para o trágico: do sacrifício de enormes fortunas em mercadorias, passa para o sacrifício humano.
O v. 6 começa com a pergunta: Com que me apresentarei ao Senhor?
O v. 7 termina com a pergunta: Que posso sacrificar pelo pecado da minha alma? O pecado é tão grande que é impossível ofertar algo em troca. A conclusão é que nem o sacrifício do primogênito ajudaria.
V. 8: Notamos que não há sacrifício que possa salvar o povo (por maior e mais intenso que seja). A solução vem de uma outra maneira: o caminho do arrependimento, da mudança de atitude, da sujeição à vontade de Deus (Ele te declarou, ó homem, o que é bom). Parar com essa vida gananciosa e egoísta. Retomar o caminho do Senhor. Deus diz o que é bom: praticar a justiça, amar a misericórdia, andar humildemente com Deus. A forma de pergunta sugere que isto é muito melhor e mais acertado do que o maior dos holocaustos. Justiça, misericórdia e humildade são os termos chaves. Vejamos algo sobre eles:
Justiça: É aquilo que è aprovado por Deus. Praticar a justiça significa, por um lado, levar uma vida aprovada por Deus. Mas, por outro lado, para chegar lá é preciso fazer uma caminhada: libertar-se da opressão dos inimigos e da tirania dos próprios pecados. A justiça de Deus é libertadora. Ela é muito ativa. Há três passos nesta ação: a) o homem é prostrado sob o poder de Deus, b) é novamente erguido, c) é conduzido para uma vida melhor. Este é o caminho do arrependimento (veja estes passos em Mq 7.9). Praticar a Justiça é deixar Deus determinar a ação humana.
Misericórdia: Amar a misericórdia é vivenciar o amor ao próximo em toda sua plenitude. É a melhor maneira de se relacionar com o outro. É deixar de lado todas as formas violentas e espoliativas de lidar com o próximo (vide Mq 2.1-2; 6.9-12). Misericórdia também é a maneira correta de se relacionar com Deus: Misericórdia quero e não sacrifícios. (Os 6.6 e Mt 9.13)
Humildade: O profeta está atacando os orgulhosos da sociedade. Os soberbos que desprezam Deus e os semelhantes, que desrespeitam os direitos dos outros. Contra o orgulho, é sugerido o caminho da humildade, o andar humildemente com Deus. Deixar de lado o orgulho e assumir uma atitude humilde faz parte daquilo que é bom e que é declarado por Deus.
2. Seu Significado
A pregação de juízo do profeta Miquéias não se dirige contra o povo, porque desobedeceu a este ou aquele mandamento de Deus. O profeta critica o povo, porque fracassou totalmente diante de Deus. Miquéias faz uma retrospectiva (6.1-5) para mostrar o problema da relação de Israel com Deus. O pecado de Israel é ter menosprezado a direção e as dádivas de Deus. Este é o fracasso do povo: esqueceu a ação salvífica de Deus e assumiu uma vida sem Deus.
Como corrigir essa situação? Como aplacar a ira de Deus? Será que adiantará algum sacrifício? Existirá algo que se possa fazer para reparar o mal? Que se pode dar em troca do pecado? Talvez um holocausto extraordinário, espetacular e inusitado? Os vv. 6 e 7 apresentam o absurdo: não há nada que o povo possa fazer para sanar seu fracasso!
O profeta apresenta no v.8 a única saída: o caminho do arrependimento. Fazer a vontade de Deus: aquilo que é bom. E o bom é definido com praticar a justiça, amar a misericórdia e andar humildemente com Deus. Os três atos só são possíveis para o povo, se quiser se voltar completamente para Deus, deixando determinar-se por Deus. Enfim, se quiser aceitar a ação salvífica de Deus em sua existência. Esta é a solução para o povo, reconhecer que Deus salva e liberta do sacrifício vicioso do pecado. E, após este reconhecimento, viver conforme a vontade de Deus.
O v. 8 é realmente impressionante: resume num esquema simples toda uma maneira de viver corretamente. Numa argumentação lógica e em palavras claras, expressa a solução para a vida e o convívio entre as pessoas, para a inter-relação do povo e para o relacionamento com seu Deus. Simples, sim; porém, fácil, não! Tão claro e ao mesmo tempo tão difícil!
3. Seu Escopo
Nenhum ato humano pode comprar ou granjear o perdão de Deus. Por maior que seja o sacrifício, sempre será menor que o pecado. A única solução é recolocar-se sob a vontade de Deus e fazer o que é bom. Deus declara o que é bom: praticar a justiça, amar a misericórdia e andar humildemente com Deus. Este caminho não é inventado por homens, mas oferecido por Deus.
IV — Meditação
Os vv. 6 e 7, com suas perguntas, expõem todas a situação humana, com seus fracassos e sua insolubilidade. Não há saída para o povo, e não há nada que este possa fazer. O ser humano não conhece e não consegue descobrir um retorno. Esta situação se apresenta reiteradamente na história da humanidade. As soluções apresentadas trazem vantagem para um e desvantagem para outro. Um sempre sai ganhando. O orgulho impede qualquer gesto de reconciliação e humanidade. De arrependimento e pedido de perdão, então, nem se fala (escrevo este trabalho justamente durante o conflito das Malvinas — sem saber como terminará). As pessoas se afastam cada vez mais de Deus e. conseqüentemente, uma das outras. Muitas barreiras e muitos preconceitos impedem uma visão justa do momento histórico. Inclusive preconceitos pseudo-científicos deturpam o relacionamento com Deus. Por um lado, notamos uma ciência que não inclui Deus em suas pesquisas e, conseqüentemente, está a serviço dos caprichos humanos (vide a pesquisa bélica). Por outro lado, uma religiosidade distorcida tenta provar cientificamente a existência de poderes supranaturais que influenciam a vida (vide o espiritismo). No Brasil, os espíritas encamparam a parapsicologia.
O afastamento de Deus ocasiona a situação social vigente: os poderosos cobiçam campos, e os arrebatam, casas, e as tomam; assim fazem violência a um homem e à sua casa, a uma pessoa e à sua herança. (Mq 2.2) Não parece que isso foi escrito há 2.600 anos mas, sim, hoje. Gerhard von Rad fala do fracasso do povo israelita. O povo de hoje também fracassou.
Jamais admitiríamos que carneiros fossem queimados para Deus. No entanto, no mundo dos negócios, muitos rebanhos são sacrificados para manipular os preços. Jamais admitiríamos que milhares de litros de azeite fossem ofertados a Deus. No entanto, milhões de li¬ros de óleo são gastos em competições absurdas e em exercícios ou atos de guerra. Jamais admitiríamos que o filho mais velho fosse sacrificado para Deus. No entanto, muitos filhos mais velhos e mais novos são sacrificados em campos de batalha.
Este é o fracasso: para o bem não se quer fazer sacrifícios, mas para o mal são cometidos os maiores holocaustos!
O v.8 apresenta a solução para o impasse em que o povo se encontra. Ao ler esta passagem, logo me veio à mente a pregação e a ação de Jesus Cristo. Ele anunciou o que é bom, praticou a justiça divina (salvadora), amou a misericórdia e andou humildemente com seu Deus.
Miquéias já anunciou alguém assim (5.2-5a). O Cristo trilhou este caminho que conduz a Deus. Abriu a estrada para que o povo possa reencontrar-se com seu Deus. Em mais ainda: ele é o primogênito (o unigênito) sacrificado pelo pecado da alma.
Não há pedágio no caminho que leva de volta a Deus. Não há meio de comprar uma passagem para o Reino de Deus. Há um só caminho: Jesus Cristo, pois ele te declarou, ó homem, o que é bom. Há uma só verdade: Jesus Cristo, pois o que o Senhor pede de ti, senão que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus? Há uma só vida: Jesus Cristo, pois eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância. (Jo 10.10)
O Cristo sacrificado na cruz é a resposta trágica e vergonhosa para as perguntas dos vv. 6 e 7. Com que me apresentarei ao Senhor? Com Jesus Cristo!
O Cristo ressurreto na Páscoa é a concretização maravilhosa do v.8. Ele mostrou que vale a pena andar no caminho do Senhor e fazer o que Deus declarou como bom.
A verdadeira vida está na vivência do v.8. O profeta Miquéias o anunciou. O Salvador Jesus Cristo, porém, o demonstrou e o tornou possível.
A concretização do v.8 é a tarefa primordial da Igreja, pois, em sua essência, ele resume o Evangelho. A Igreja deve declarar a boa vontade de Deus. Deve praticar a justiça, tanto em seus atos quanto na nua voz profética. Deve andar humildemente com seu Deus, jamais permitindo que outras ideias determinem seus atos.
Esta é a tarefa da Igreja — o povo de Deus. O povo de Israel recebeu, através do profeta Miquéias, a solução para o seu fracasso. O povo de Deus recebe, através de Jesus Cristo, a salvação do seu pecado.
V — A Prédica
Este texto está previsto para o domingo, dia 30 de outubro de 83. Um dia antes do Dia da Reforma — no ano do pentacentenário do nascimento de Martim Lutero. A preocupação principal de Lutero voltou-se para a Igreja — o povo de Deus. Neste ano de comemorações, devemos nos perguntar se a Igreja está caminhando no sentido do v.8. Além disso, constatamos que a situação do mundo atual se assemelha muito à do mundo de então, criticada por Miquéias.
Na prédica sobre esta perícope, pode-se seguir o seguinte esquema:
— Explicação do texto conforme a exegese do item II.
— Atualização do texto conforme a meditação do item III.
— Concretização do texto no exemplo de Martim Lutero: ele visava única e exclusivamente uma Igreja que anunciasse a boa vontade de Deus, que praticasse a justiça, que amasse a misericórdia e que andasse humildemente com seu Deus. E isto a Igreja de sua época não estava fazendo — fato hoje amplamente reconhecido na Igreja Católica.
— O Evangelho do texto para os participantes do culto e o próprio v.8. Como povo de Deus, somos chamados a vivenciarmos estas palavras. Ao mesmo tempo elas são a maior chance, oportunidade, solução para o convívio humano. Elas representam a alternativa ao desespero em que se encontra o mundo. Elas oferecem a libertação do peso do fracasso (pecado) da humanidade que, sem Deus, se encontra num beco sem saída.
Ele te declarou, ó homem, o que é bom; e que é que o Senhor pede de ti, senão que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus?
VI — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Como confissão de pecados, sugiro a oração de arrependimento de Martim Lutero. Transcrevo-a numa linguagem atualizada:
Deus, Senhor Todo-Poderoso, misericordioso Pai! Eu, pobre e mísera pessoa, confesso-te todos os meus pecados e fracassos, que cometi em pensamentos, em palavras e acões, e com os quais a toda hora causei a tua ira, merecendo o teu castigo neste tempo e na eternidade. Todos eles. porém, me oprimem e deles me arrependo de todo coração. Suplico-te, pela tua imensa misericórdia e pela inocente e amarga paixão e morte de teu querido Filho Jesus Cristo, queiras ser compassivo e misericordioso comigo, pobre pessoa pecadora. Queiras perdoar todos os meus pecados e me dar a força de teu Espirito para melhorar a minha vida. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Deus e Pai, tua Palavra expõe todo nosso fracasso como pessoas que vivem sem ti. Mas também ë a tua Palavra que nos mostra o caminho que leva de volta a ti. Pela tua Palavra reconhecemos quem somos e quem podemos ser. Por isso, te pedimos que nos ajudes a ouvirmos tua Palavra com muita atenção e que ela permaneça em nós. Oramos em nome de Jesus Cristo, teu Filho, nosso Salvador. Amém.
3. Oração final: Querido Deus, nosso Pai! Nós te agradecemos que não exiges de nós sacrifícios que jamais poderíamos cumprir. E, sobretudo, te agradecemos que nos mostras um caminho que podemos seguir: teu Filho Jesus Cristo. Ele é essencial para nossa vida e o mundo de hoje. Isto ouvimos mais uma vez neste culto. Ajuda-nos, para que não nos orgulhemos com os grandes feitos do passado, mas que andemos humildemente contigo. Dá-nos força para que amemos nosso próximo como a nós mesmos. Favorece a prática da justiça em todo o mundo, para que haja paz. Faze com que governantes governem segundo aquilo que tu declaraste como bom. Perdoa todos os sacrifícios inúteis que são cometidos em nome do progresso, ou qualquer que seja o nome bonito que lhes seja dado. Nós nos apresentamos a ti em nome de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, o qual nos ensinou a orar com toda a confiança: Pai Nosso…
4. Sugestões para hinos (Hinos do Povo de Deus, da IECLB): para o Inicio do culto, o hino 90 Deus, o teu Verbo guarda a nós…; para antes e depois da prédica, o hino 98, Qual barco singra pelo mar…; para o final do culto, o hino 99, Ide em paz a vossa via….
VII — Bibliografia
– ALMEN. J.J. von. Vocabulário bíblico. 2. ed. São Paulo, 1972.
– KIRCHHEIM, H. Meditação sobre Miquéias 5.1-4a. In: Proclamar Libertação. Vol. 6. São Leopoldo, 1980.
– RAD, G. von. Theologie des Alten Testaments.Vol. 1. München, 1966 e Vol. 2. München, 1965.
– SCHUMANN, B./JERKOVIC, J. Lutero 450 anos depois. Petrópolis, 1967.
– WESTERMANN, C. Abriss der Bibelkunde. Stuttgart, 1964.
– WOLFF, H.W. Anthropologie des Alten Testaments. München. 1963.