I — João e os evangelhos sinóticos
O Evangelho de João representa um tipo de evangelho diferente dos demais. Nenhum outro traz cunho tão próprio como este. Existem algumas semelhanças com os sinóticos, mas as diferenças predominam.
Também João apresenta a sua obra em forma de um relatório sobre atividade, morte e ressurreição de Jesus. O conteúdo lembra, em alguns casos, episódios conhecidos dos sinóticos (ex.: Jo 2.13ss — Mc 11,5ss; Jo 6.1 ss — Mc 6.30ss; etc.). O número de narrativas paralelas, entretanto, é muito reduzido. O mesmo se constata com relação aos pronunciamentos de Jesus. Do rico material sinótico apenas umas 15 (!) palavras de Jesus se reencontram em João (ex.: Jo 2.19 — Mc 14.58; Jo 4.44 — Mc 6.4; etc.). As maiores convergências registram-se na história da Paixão. Mas também aqui, como em todos os demais casos, João apresenta o material da tradição fortemente amalgamado no todo da sua teologia. Somente fragmentos da tradição sinótica, ajustados à interpretação tipicamente joanina, foram acolhidos nesse evangelho.
A ausência da maioria do material sinótico não deixa de surpreender. Faltam todas as parábolas, todos os exorcismos e grande parte dos milagres de Jesus. Nada ouvimos da companhia de Jesus com os pecadores, e o anúncio do Reino de Deus, mensagem central de Jesus conforme os sinóticos, não tem analogia em João. Em compensação temos outros relatos: as bodas de Cana (2.1ss), o diálogo com a mulher samaritana (4.1ss), a ressurreição de Lázaro (11.1SS), etc. A maior diferença, porém, se faz notar nos longos discursos de Jesus, desconhecidos dos sinóticos e característicos de João.
A tradição sinótica é tradição de pequenas unidades literárias claramente delimitáveis. Inclusive os sermões de Jesus nada mais são do que composições de palavras originalmente isoladas. Em João é diferente: os discursos formam verdadeiras unidades temáticas, com as quais, em muitos casos, as próprias narrativas se conectam. A história da multiplicação dos pães, por exemplo (cap. 6), desemboca num discurso em torno do pão da vida, que é o próprio Jesus. Coisa análoga no observa no cap. 3, onde o diálogo com Nicodemos se transforma gradativamente em monólogo de Jesus (cf. também cap. 4; 5; 9; etc.). Ou sermões de Jesus interpretam as narrativas, e estas ilustram a sua prédica, centrada, aliás, à dissemelhança dos sinóticos, na auto-revelação de Jesus como enviado de Deus. Nas palavras eu sou… (H 3fj, 8.12; etc.) se resume o conteúdo principal do Evangelho.
Outra diferença fundamental reside na estrutura. O esquema dos sinóticos é abandonado. Conforme João, Jesus esteve várias vezes em Jerusalém antes da crucificação. O período da atividade de Jesus, pois, se estende por um espaço de tempo bem maior (2 a 3 anos) do que nos sinóticos. Enquanto em Mateus, Marcos e Lucas o ministério de Jesus inicia após a prisão de João Batista, no quarto evangelho ambos atuam por algum tempo lado a lado (cf. Jo 1.19ss — Mc 1.14). Também na cronologia da morte de Jesus não há unanimidade.. Todos concordam em dizer que Jesus morreu numa sexta-feira. Mas esta, de acordo com os sinóticos, era o primeiro dia da Páscoa; de acordo com João, a parasceve, isto é, o dia da preparação, quando eram abatidos os cordeiros pascais. Diferente é, enfim, o esboço geral do evangelho.
Distinguimos seis blocos:
I. O prólogo (1.1-18)
II. O testemunho de João Batista e a vocação dos primeiros discípulos (1.19-51)
III. A atividade pública de Jesus: ele revela a sua glória perante o mundo (2-12)
IV. A última ceia e os discursos de despedida: Jesus revela a sua glória perante os discípulos (13-17)
V. Paixão, morte e ressurreição de Jesus (18-20)
VI. Epílogo (acrescentado posteriormente) (21)
O esboço é claro nas linhas gerais. Nos detalhes, porém, falta, não raro, uma disposição diagnosticável. Observam-se algumas rupturas. Tudo leva a crer, por exemplo, que o cap. 6 originalmente seguia ao cap. 4. Não poucos especialistas explicam a desordem interna do Evangelho, mediante a hipótese de uma troca de folhas, supostamente ocorrida já muito cedo.
Contudo, para compreender as peculiaridades de João, e em parte também a referida falta de ordem na apresentação dos assuntos, é necessário considerar o estilo argumentativo do evangelista: João prefere a forma meditativa que, em vez de desenvolver os pensamentos em sequência lógica, gira em torno dos assuntos, ressaltando ora este, ora aquele aspecto. O pensamento de João não se movimenta em linha reta, mas em forma de círculos concêntricos.
O quarto evangelho, pois, é muito autônomo em relação aos sinóticos. Exclui-se, de todo, qualquer forma de dependência literária. Naturalmente, também João se baseia em tradição. Discute-se a possibilidade de ele ter usado uma fonte que reunia milagres (a fonte dos SEMEIA – cf. 2.11; 3.2; 4.54), outra que continha a história da Paixão, e uma terceira que lhe teria fornecido o material dos discursos de Jesus. São hipóteses, sendo provável a existência das primeiras duas fontes, altamente incerta a da última. De qualquer maneira, já a tradição a que recorreu o evangelista, divergiu da tradição sinótica, de modo que as peculiaridades deste evangelho devem ser explicadas não só a partir da individualidade de seu autor, mas a partir de toda uma corrente traditiva.
Permanece a pergunta: João, porventura, desconhecia os sinóticos? Isso é pouco provável, uma vez que reveste sua obra do mesmo gênero literário que Marcos, Mateus e Lucas. A categoria do evangelho, pois, lhe era familiar. Mais do que isso, porém, é impossível comprovar. Seria temerário concluir que João tivesse intencionado completar, aperfeiçoar ou até substituir os evangelhos sinóticos. Não existem indícios para tanto. Trata-se, nesta obra, muito antes, de uma articulação peculiar do Evangelho frente aos desafios de determinado ambiente e época.
II — A revisão redacional
O Evangelho de João não nos foi transmitido em sua forma original, mas, sim, numa versão revista e ampliada. Vai por conta dessa revisão redacional o acréscimo do cap. 21, atestando, entre outras, fidedignidade ao autor do evangelho. Com facilidade descobre-se a conclusão original em 20.30,31. Os revisores, porém, procederam a ainda outros adendos. Pressupõe-se que, a despeito da profunda sintonia teológica entre autor e revisores, estes quisessem ajustar a teologia do evangelista, em alguns pontos, à tradição eclesial. Atribuem-se à redação revisora as referências explícitas aos sacramentos (3.5; 6.51bss, 19.34bs) e à escatologia futura (5.28s; 6.39; etc.). bem como algumas outras observações explicativas (ex.: 4.2). De fato, em sua versão original, o evangelho parece ter silenciado com respeito aos sacramentos e dado forte ênfase à esperança já cumprida (escatologia presente – cf. 5.24s; etc.).
Ainda assim, julgamos ser ilícito concluir que o evangelista, em virtude de sua teologia, ter-se-ia encontrado em situação conflituosa com a Igreja oficial, enquanto que os revisores, através de suas correções, lhe teriam conquistado o imprimatur. Para tanto, a revisão não é suficientemente incisiva.
Até que ponto os revisores podem ser responsabilizados não só pelas inserções, mas também por transposições, é difícil de responder. Entretanto, a revisão do evangelho comprova a existência de uma escola joanina, uma corrente teológica na antiga cristandade, na qual se inserem também as três cartas de João, incluídas no cânone do Novo Testamento.
III — Autor, lugar e data de redação
A revisão redacional identifica o autor do evangelho com o discípulo a quem Jesus amava (21.20ss, 24). Quem é este discípulo? Irineu, por volta de 180 d.C., enxerga nele João, o filho de Zebedeu, um dos doze, recorrendo a informações que teria recebido de Policarpo de Esmirna. Desde então se tornou corrente atribuir a autoria do evangelho a este discípulo direto de Jesus.
A suposição é problemática, todavia. O quarto evangelho, em parte alguma, afirma serem uma só pessoa o apóstolo João e aquela figura de certo modo misteriosa do discípulo a quem Jesus amava (cf. 13.23ss; 19.26; 20.1ss). A única base de tal identificação é a informação de Irineu. Mas ela está hipotecada com tamanhas dificuldades e incertezas que não pode ser invocada como argumento decisivo. Não sabemos se João, filho de Zebedeu, realmente alcançou a idade avançada como o quer a tradição, ou se já muito cedo (44 d.C.), juntamente com seu irmão Tiago, sofreu o martírio (cf. At. 12.2 e Mc 10.35ss). Neste último caso, não entraria em cogitação como autor do evangelho. Ainda outras observações dificultam a aceitação da hipótese de Irineu. João não escreve na qualidade de testemunha ocular. Caso contrário, como se explicariam as graves diferenças com relação aos sinóticos? O Evangelho de João é um impressionante documento da fé pós-pascal, mas não o relato de uma testemunha da vida de Jesus. Além disso, houve resistência contra a posterior canonização desse livro. provocada pelo alto apreço de que gozava em círculos gnósticos. Ela seria estranha se João, o apóstolo, desde o início, tivesse sido considerado o autor inquestionável.
O assunto em questão não se reveste da importância que fre¬quentemente se lhe atribui. A verdade evangélica, em última instância, não depende de pessoas, mas do testemunho e de seu conteúdo, Jesus Cristo. Ele é a verdade (Jo 14.6). Nossa falta de conhecimento é dolorosa. Mas não diminui o valor deste evangelho. João é um autor que, à luz da antiga tradição evangélica, repensou e reafirmou a fé cristã em seu contexto especifico, constituindo-se num dos mais profundos pensadores teológicos do Novo Testamento.
Devido à falta de conhecimentos seguros sobre o autor, também não é possível precisar o lugar da redação. A tradição eclesiástica indica Éfeso, na Ásia Menor, como o lugar onde o velho apóstolo João teria escrito a sua obra. Essa informação,porém, está sujeita às dúvidas que acabamos de mencionar. Muitos comentaristas estão propensos a indicar a Síria como lugar de origem do evangelho, pois a teologia de Inácio de Antioquia (morto em 1 10 d.C.) apresenta certas semelhanças com a teologia joanina. A questão é de relevância secundária.
Pisamos chão mais firme na pergunta pela data da redação. A descoberta de um papiro (P52), o manuscrito mais antigo do Novo Testamento, oriundo das primeiras décadas do século II e contendo alguns versículos de Jo 18, mostra que o evangelho não pode ter sido escrito muito tempo depois de 100 d.C. De outro lado, não se pode situá-lo cedo demais na história da primeira cristandade: a separação de Igreja cristã e sinagoga judaica é fato consumado, e também no mais o evangelho espelha reflexão teológica de uma época avançada. Costuma-se datar a origem do evangelho por volta de 100 d.C.
IV — O valor histórico do Evangelho de João
A maioria dos especialistas é unânime em afirmar que o valor do Evangelho de João como fonte histórica sobre a vida de Jesus é inferior ao dos sinóticos. Os discursos registrados por João não têm as características de protocolos literais. No entanto, existem também notícias históricas muito fidedignas. Por exemplo, a probabilidade de os primeiros discípulos de Jesus serem provenientes do circulo em torno de João Batista (cf . 1 .35ss) é muito grande. Da mesma forma, João parece merecer a preferência no que diz respeito à data da morte de Jesus.
Isto significa que o Evangelho de João possui, indubitavelmente, relevância histórica. Ainda assim, não se pode negar que neste evangelho a história de Jesus foi absorvida pelo testemunho cristão em escala bem maior do que em Mateus. Marcos e Lucas. M. Dibelius Religion in Geschichte und Gegenwart. vol. 3. 2. ed.. p. 350) caracteriza excelentemente a situação, ao dizer que a teologia de João, mais do que a dos sinóticos, apresenta não quem Jesus era, mas o que a comunidade nele tem. Ela tem em Jesus o pão da vida (6.35), a luz do mundo (8.12), o bom pastor (10.11), ela tem em Jesus a presença de Deus. Neste sentido, existe seguramente uma continuidade entre o testemunho joanino e o Jesus histórico, embora não seja visível de imediato, nem consista em identidade verbal. Por essas razões, deverá haver cautela no uso do Evangelho de João como fonte histórica.
V — O lugar histórico e religioso
Perguntamos, neste item, por duas coisas: a) quais são as influências religiosas que se fazem sentir no Evangelho de João?, e b) que podemos dizer com respeito às causas (e os objetivos) que impeliam João a escrever seu evangelho? As respostas são difíceis. Nisso consiste o assim chamado enigma joanino: João parece ser um homem sem sombra nítida. Ouvimos a sua voz que se distingue claramente de outras da cristandade primitiva, mas não vemos precisamente o seu lugar histórico. (KÄSEMANN, E. Jesu letzter Wille nach Johannes 17. 2 ed. Tübingen, 1967, p. 10). Ainda assim, algo — mesmo que seja pouco — pode ser constatado.
1. João (e as comunidades de que é expoente), sem dúvida, vive num mundo altamente sincretista, no qual se fundem pensamentos judaicos, helenísticos, gnósticos. Verificam-se, no quarto evangelho, influências de todos estes lados. O evangelista se nutre de herança judaica, escreve em linguagem semitizante e pressupõe entre os seus leitores familiaridade com as leis, a esperança messiânica e outras características dos judeus. João está especialmente próximo de algumas concepções teológicas cultivadas na seita de Qumran. Encontra-se nos documentos da mesma um dualismo semelhante ao de João. Sobretudo, porém, chamam atenção afinidades a um certo tipo de gnosticismo (o dos mandeus), que fornece surpreendentes analogias para as palavras eu sou…, em João. Que dizer a respeito disto?
Ora, influências não podem ser negadas. Dependência, entretanto, não existe sob hipótese alguma. João não se vendeu a ninguém. Tomou emprestados conceitos do mundo religioso circundante, e os colocou a serviço de seu testemunho, reformulando-os e dando-lhes novo conteúdo. Um dos encantos da exegese é descobrir como João se apróxima de pensamentos religiosos alheios e simultaneamente deles se distancia.
2. Embora João não seja um evangelho propriamente polêmico, percebem-se claramente problemas, com os quais as comunidades se debatem e frente aos quais o evangelista reage. A comunidade parece sofrer forte oposição por parte dos judeus que, em João, são, por excelência, os representantes do mundo incrédulo (cf. 5.16; 6.41; 10.24: etc.). São, como tais, os adversários de Jesus (e, por isso, naturalmente lambem da comunidade) — um juízo que historicamente necessita de alguns fortes retoques.
Aliás, de um modo geral as comunidades joaninas sofrem sob a nua condição de minoria hostilizada. São como que estranhos neste mundo Apenas poucos acolhem o LOGOS, recebendo com isto a filiação divina (1.11ss). Em João se manifesta uma comunidade que não tem poder político e social, é oprimida pelo mundo em que vive e, ainda assim, desmascara-lhe a mentira. Ao contrário do que pretende e alega, o mundo não pode oferecer o pão da vida, a verdade e o caminho, ou seja, a vida verdadeira.
Outro problema da comunidade consiste, pelo que tudo indica, na demora da parusia. A vida eterna — é ela tão-somente uma promessa? João não se contenta em reafirmar a certeza da salvação futura; ele afirma, como talvez nenhum outro autor do Novo Testamento, a presença da vida eterna (11.23ss; etc.). Fé não consiste apenas numa esperança, ela inaugura uma nova realidade no presente. E, por ultimo, mencionamos o problema da unidade da Igreja, já na época de João fortemente ameaçada (17.20ss). A fim de preservá-la, João não se cansa de, continuamente, reforçar a necessidade do permanecer em Jesus. Não podem viver os ramos nem trazer fruto, se não permanece¬rem na videira (15.1ss). O evangelista revela acentuada preocupação pastoral.
VI — Aspectos da teologia de João
1. No quarto evangelho se fala, com grande freqüência, no antagonismo de luz e trevas, vida e morte, verdade e mentira, em cima e em baixo. É o que chamamos de dualismo joanino. Não que João afirmasse a existência de dois mundos, um mau e outro bom. O mundo é um só, criado por Deus — com o que João se afasta da concepção gnóstica. Ele não entrega o mundo, mas o reclama como propriedade de Deus.
Verdade é, porém, que o mundo jaz em trevas, tornou-se mau, caiu na mentira, rejeitando a verdade, a luz e a vida. Os homens preferem as trevas à luz, o pecado a Deus (1.10ss; 3.19; 8.34; etc.) — eis a sua desgraça. Por isso, o diabo passou a ser o dono do mundo (12.31) E, não obstante, é exatamente neste mundo que a luz começa a brilhar É o mundo que Deus amou de tal maneira que deu seu Filho unigênito em seu favor (3.16). Em outros termos, o mundo não é condenado ou declarado mau em principio. Embora seja dominado pelas forças das trevas, é o lugar da revelação de Deus No antagonismo de luz e trevas, as pessoas são chamadas à decisão a favor da luz, que lhes proporciona a vida. O mundo não precisa ficar assim como está. Pode voltar a ser o mundo de Deus.
2. Quem o possibilita é Jesus Cristo. A cristologia de João se destaca pela forte ênfase na divindade de Jesus. Embora ele não seja diretamente identificado com Deus (cf. 5,19; etc.), sempre é realçada a intima união entre o Filho e o Pai (cf. 8,55; 10, 30; etc.). Jesus é o LOGOS pré-existente. Ele vem da parte do Pai e, após concluída sua missão no mundo, para lá retorna (13.1; 14.3; etc.). Isto não impede que João fale com grande naturalidade da humanidade de Jesus. Ele é o filho de José (1.45; 6.42), é o Verbo encarnado, o homem (19.5). Que Deus se revela logo neste homem, é constantemente motivo de escândalo (5.14ss; 8.48; etc.).
Mas é nisso que consiste a missão de Jesus: em revelar o Pai, trazê-lo para dentro deste mundo, possibilitar a fé. O mundo, em última análise, è extremamente sedento por vida. Infelizmente ele a busca onde não está nem pode ser encontrada. Confunde o pão e o pão da vida (6,1ss), segue pastores que na verdade são miseráveis mercenários (10,11ss) e trilha caminhos que, em vez de conduzirem à vida, terminam na morte (14.6). Conforme João, existe vida apenas na fé radical em Deus que, por amor ao mundo perdido, envia seu Filho. A vinda de Jesus Cristo ao mundo, a encarnação do LOGOS, cuja glória é testemunhada pela comunidade (1.14), é o acontecimento salvífico por excelência. João é, assim por dizer, o evangelho do Natal.
Também a história da Paixão se subordina a este aspecto. Diversamente dos sinóticos, Paixão e morte de Jesus não são o caminho da sua humilhação, mas o da sua vitória. Por isso, ele morre com as palavras: Está consumado. (19.30) A missão de Jesus chegou a seu termo; ele volta para de onde veio. A morte de Jesus é o ponto final e culminante da encarnação, pois ela a encerra e ao mesmo tempo a confirma Deus não apareceu entre os homens qual relâmpago no céu; ele sacrificou a vida de seu Filho, chegou próximo das pessoas, assumindo a carne, ou seja, a condição humana. Jesus assume inclusive a necessidade de morrer. Certamente não se tornou idêntico (!) aos homens. Encarnar-se não significa sacrificar a própria identidade. Também como encarnado Jesus permaneceu sendo o LOGOS. Ele não é qualquer homem, mas, sim, o novo homem. Como tal, é vitimado pela oposição do mundo a Deus e morto na cruz. Mas aquele que é a ressurreição e a vida (11.25) não permanece na morte. Ele ressuscita e promete: Quem crê em mim, ainda que morra, viverá.
3. A partir destas observações se explicam também as particularidades da escatologia de João. Já salientamos a ênfase colocada pelo evangelista na presença da salvação. Quem crê, passou da morte para a vida (5.24; etc.); tem em Jesus o caminho, a verdade e a vida (14,6). Isso vale também para o tempo após a morte e ressurreição de Jesus. Pois, apesar de Jesus ter voltado ao Pai, não deixou seus discípulos órfãos no mundo. O Paracleto, o Espírito da verdade (15.26; 10 1388), o substitui. Ele assiste a comunidade (14.16s), lembrando-a de Jesus (14.26) e guiando-a a toda a verdade (16.13). Nele, o próprio Jesus se faz presente João não elimina a esperança. Sabe que o cristão ainda vive no mundo em aflição (16.33), aguardando tomar posse da morada que Jesus lhe foi preparar (14.1ss). Mas quem crê, está acompanhado por aquele que venceu o mundo, razão para poder viver a vida eterna já no presente momento.
4. A ética do Evangelho de João, enfim, corresponde a essa cristologia e escatologia. O discípulo de Jesus vive numa nova realidade que se caracteriza essencialmente por fé e amor. João praticamente conhece apenas um mandamento normativo: … que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei… (13.34s). Nova vida é vida no amor, bem como na verdade, na luz e na fé. Esse amor tem em Deus a sua fonte (cf. 1 Jo 4.16), recebendo ilustração e concretização por Jesus que, como um servo, lava os pés dos seus discípulos por ocasião da última ceia (13.1SS) e dá por eles sua vida no Calvário (10.11).
O Evangelho de João, de modo particularmente insistente, compromete a pregação cristã com a tarefa de articular, ao lado da esperança, a realidade da nova vida que, com Jesus, despontou em meio a um mundo cheio de trevas e dor. O que mudou desde que Jesus nasceu? O pregador deverá dar resposta.
VII — Bibliografia
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– KÜMMEL, W. Síntese teológica do Novo Testamento. São Leopoldo, 1974.
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– SCHREINER, J. / DAUTZENBERG, G. Forma e exigências do Novo Testamento. São Paulo, 1977.
-VIELHAUER, P. Geschichte der urchristlichen Literatur. Berlin, 1975
Proclamar Libertação 08
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia