Prédica: 2 Coríntios 4.3-6
Autor: Manfredo Siegle
Data Litúrgica: Epifania
Data da Pregação: 06/01/1984
Proclamar Libertação – Volume: IX
Tema: Epifania
I — O texto no seu contexto
A legitimidade do apostolado de Paulo está em jogo. A comunidade de Corinto, por ele fundada, está passando por sérias dificuldades. As disputas com os adversários são o pano de fundo das suas colocações em nossa perícope. Todo o bloco, desde 2 Co 2.14 até 7.4, gira em torno da apologia do apostolado de Paulo. Será que o apóstolo necessita de uma recomendação especial que lhe conceda autoridade suficiente para pregar em Corinto? Há necessidade de cartas de recomendação (2 Co 3.1), de credenciais, ou de pistolões que tornem possíveis os caminhos aos coríntios?
Quem são os adversários de Paulo? O apóstolo não os define. Trata-se, aparentemente, de missionários e pregadores itinerantes, cristãos de nacionalidade judaica. Estes impressionam a comunidade com seus atos espetaculares e prodígios miraculosos (2 Co 12.11s); chamam atenção sobre si por intermédio dos seus carismas espirituais (12.1ss). Paulo taxa o evangelho que tais apóstolos pregam como um evangelho diferente. O serviço dó apóstolo é desconsiderado (10.2s) pelos adversários que se consideram ministros da justiça (11.15); seu fim, porém, será de acordo com as obras que realizam. Desprezam o apóstolo por se revestir de fraqueza e simplicidade (10.10). Sedentos de poder e de influência, os adversários procuram desfazer o trabalho de Paulo.
Apesar de ser considerado um falto no falar (11.6), o apóstolo pode recomendar-se, diante de Deus, à consciência de todo homem. A sua única credencial é a própria maneira de ser e de viver o Evangelho da graça que lhe basta (12.9).
O apóstolo não sente a necessidade de impressionar, mas serve a comunidade através do Evangelho da glória do Senhor. Sua preocupação exclusiva é de colocar a descoberto o tesouro contido em vaso de barro (4.7). Não importa o vaso mas, sim, o seu conteúdo, por isto ele descarta a necessidade de pregar-se a si mesmo. A defesa do ministério que o apóstolo faz não visa a auto-preservação. Seu único objetivo é preservar a glória de Deus, visível na face de Cristo.
II — O texto
Paulo, o apóstolo do Senhor, defende o seu apostolado. Sirvo sem adulterar a verdade do Evangelho. Não por méritos próprios, mas a partir da misericórdia de Deus ele realiza o seu trabalho.
O apóstolo não quer mercantilizar o Evangelho em Corinto (2 Co 2.17), não pretende tampouco explorar ninguém (12.16ss). Deus mesmo aprovou o seu ministério; por esta razão a sua existência como pregador não se concretiza através de linguagem de bajulação ou de intenções gananciosas (1 Ts 2.4).
Seu ministério torna-se repreensível por parte dos adversários. Em busca de defesa, procura tornar a palavra do Evangelho transparente por intermédio de conduta pessoal. Sua própria vida, seu modo de agir, é um espelho da pregação. Palavras e ações harmonizam entre si dentro da sua existência; por este motivo o seu ministério é irrepreensível.
Desconhecemos o exato porquê das acusações contra Paulo. Também não nos é dito com clareza o que torna obscura a sua pregação (v.4) e o que permanece encoberto no evangelho que está anunciando (v.3). Com muito carinho Paulo fala do seu ministério. Está até mesmo disposto a submetê-lo ao juízo de Deus e dos homens (2 Co 5.11).
Outrossim, ele sabe da cegueira dos incrédulos (v.3s). Estes decretam a sua perdição a partir da descrença que subscrevem, a próprio punho (Jo 12.40; Is 6.9s). O apostolado de Paulo traz vida aos crentes e morte aos descrentes. O véu da descrença (3.14) permanece, enquanto não houver transformação por Cristo mesmo.
Paulo inclui os seus acusadores no rol daqueles que não enxergam a luz do Evangelho.
V.4, deus deste século: quem será este deus?
O Anticristo, Satanás, diabo — o esculhambador? Este deus, com letra minúscula, que age através dos seus adversários, é desmascarado, sendo um ídolo deste século, portanto, passageiro, Ele age através da cegueira que semeou na vida daqueles que não são capazes de enxergar a luz do Evangelho da glória de Cristo. O apóstolo é testemunha do único e verdadeiro Deus, o qual é, em Cristo, o Pai e Salvador de todos.
Jesus é identificado como a imagem de Deus (v.4). Imagem de Deus ele é, sendo o Senhor de todo o universo.
Glória é um termo que expressa uma qualidade de Deus. Agora, porém, a glória de Deus se torna manifesta na pessoa do próprio Filho. Na face de Cristo é possível enxergar o Deus invisível; os filhos de Israel, por outro lado, não puderam fitar a face de Moisés (3.7), diante do esplendor de Deus que sobre ela era projetado.
No v.6 o apóstolo traça um paralelo entre a criação da luz, conforme Gn 1.3, e a nova luz que resplandece em Cristo. Se antes éramos trevas, agora, com a sua revelação, somos luz no Senhor. (Ef 5.8) No inicio da criação, Deus iluminou, com o brilho da luz, o mundo. Agora ele faz brilhar, com a glorificação de Cristo, a sua luz em nossos corações.
Na antiga aliança o resplendor de Deus se fez notar no rosto de Moisés; na nova aliança este mesmo resplendor é exclusividade na face de Cristo. Diante da glória deste Senhor, o apóstolo Paulo sente-se pequeno e humilde.
Jesus Cristo é o Senhor exclusivo, o apóstolo não passa de servo (v.5). A consequência direta desta constatação é que ele não prega a si mesmo, mas sente-se um instrumento na mão de Cristo. Seu ministério é legitimo, porque é qualificado por Cristo mesmo.
III — Associações
1. Apologia do nosso pastorado?
2. Redescoberta do Evangelho.
3. Deus deste século — quem será?
4. É tempo de Jesus — as trevas cedem à luz.
A pericope apresenta peculiaridades que tornam sua predicabilidade nada fácil. Por um lado, observamos que a situação toda especial do apóstolo Paulo difere da nossa. Apesar da pluralidade e dos gostos teológicos para, quem sabe, justificar posições ou paixões próprias, não nos vemos numa necessidade premente de partirmos para uma apologia do nosso ministério, à semelhança de Paulo, em Corinto.
Uma segunda dificuldade decorre da variedade de tópicos de relevância hermenêutica.
Estamos diante de um daqueles textos clássicos que nos animam a uma sequência de prédicas, cada uma abordando um tópico de peso. Ao pregador sugere-se que não faça uso de todas as possibilidades, tentando esgotar o texto numa única oportunidade. Lembrando que o texto está previsto para a Epifania — o Festival da Luz — torna-se evidente que a melhor proposta de prédica poderia partir da última parte do texto, com o v.6: de trevas resplandecerá a luz.
Justificando a abordagem de outros tópicos importantes do texto, gostaria de realizar algumas associações com base no todo da perícope.
1. Apologia do nosso pastorado?
Muitas foram as portas que se abriram, no decorrer da curta história da IECLB, dando chance a uma pluralidade teológica, por sinal, nem sempre fácil de ser digerida pelos teólogos e muito menos pelos membros. Estes são sacudidos por colocações e posicionamentos, quando o pastor de uma linha X é substituído por outro da linha Y.
É evidente que a situação de Paulo diante dos coríntios, influen¬ciados por pregadores sedentos em levantar poeira naquela comunidade, revela uma situação peculiar.
Pluralidade teológica — isso é coisa fina, pressupondo que seja, de fato, teológica. Feliz a Igreja que pode amadurecer dentro de uma pluralidade teológica autêntica! Isto significa autocorreção e complementação mútua. Estou convicto de que até Deus há de bater palmas, se assim o for.
Pluralidade teológica, porém, tornar-se-á barra pesada que separa e machuca, quando paixões e ideias pessoais estiverem acima de uma responsabilidade teológica maior. Devo confessar que andei, nestes últimos tempos, meio desconfiado das nossas diferentes linhas disputadas arduamente, até no Jorev, entre grupos antagônicos (MEUC, evangelicais, sociais, normais); e todos pregam em nome de Cristo.
Onde a causa (ou a ideia) própria estiver em jogo, ali o diálogo e os corretivos mútuos são praticamente impossíveis, e a apologia do próprio ministério passa a ser uma consequência lógica. Nesta situação, não estamos longe de, nós mesmos, encobrirmos o Evangelho de Cristo. Quanto mais investimos em favor de uma defesa própria, pregando-nos a nós mesmos, tanto menor será o tempo á disposição do ser humano que Deus nos confiou.
2. Redescoberta do Evangelho
Toda pessoa que ouve e aceita a pregação distorcida demonstra, conforme o apóstolo Paulo, que se desvia do verdadeiro Evangelho; para ela as boas novas continuam encobertas (v.3). Paulo empenha-se em descobrir (redescobrir) o que está encoberto. A redescoberta do Evangelho é uma realidade e necessidade dentro da história da Igreja. Essa redescoberta consiste em tirar, continuamente, a tampa que os homens, a partir de ideias e tradições, tendem a colocar sobre a panela eclesiástica. Paulo na Cristandade Primitiva, Martim Lutero no séc. XVI, são exemplos de servos de Cristo a serviço da redescoberta do verdadeiro Evangelho. Nos dias atuais, quem está botando a mão na massa, seguindo os exemplos da história passada? Vamos lembrar-nos, com certeza, de nomes que auxiliaram e ainda estão auxiliando na redescoberta do Evangelho. Tomara que Cristo use também a nossa pregação para colocar a descoberto o tesouro valioso que se apresenta em vasos de barro tão simples e quebradiços.
A redescoberta do Evangelho tem como consequência a redescoberta do próximo. Vivência evangélica não acontece de forma introvertida, mas desabrocha em favor do outro. Sinais possíveis que nascem com a redescoberta evangélica: envolvimento da comunidade cristã na defesa do meio ambiente; denúncia do sistema desumano e injusto que explora desenfreadamente o homem, privando-o de uma vida digna; empenho em favor da paz nacional e mundial; alegria em proclamar libertação aos cativos; pressa em apontar para a plena luz que brilha em Jesus Cristo; renascimento do homem para servir de luz dentro de um mundo obscurecido pelas trevas do ódio, ambição e do egoísmo.
3. O deus deste século — quem será?
. O apóstolo denuncia a cegueira humana, como sendo fruto da ação do deus deste século. Pelo fato de ser uma divindade passageira, obra da projeção humana, este antideus precisa ser desmascarado.
O deus deste século — quem será ele hoje? O leque de divindades assume em nossa sociedade um colorido muito interessante. Começando pela busca desenfreada da auto-realização, motivados pelo consumo e produção, a idolatria segue a sua trilha através do poder econômico, continua firme na escravidão do horóscopo, manifesta-se na técnica (fonte de salvação e felicidade) e até dentro das praças de esporte, onde pessoas são idolatradas. Os orixás e os pretos velhos, certamente, contribuem para preencher a lista dos deuses deste século.
Todos estes ídolos não passam de lamparinas, faíscas acesas pelo próprio homem, e, lamparinas se apagam com facilidade, basta que sopre um vento mais forte.
A luz de Deus que brilha em Jesus, porém, não é obra engenhosa do homem!
4. É tempo de Jesus — as trevas cedem à luz No início da criação, Gn 1.3, a primeira obra criada pelo Senhor foi a luz. Sem ela nada existe e nada sobrevive. Luz é imprescindível ao desenvolvimento da natureza, das flores, árvores e plantas; vida animal e vegetal, sem luz, não é possível. O estado de caos, no qual se achava mergulhado o universo, só poderia ser colocado em ordem, havendo claridade. Não se arruma uma sala em desordem, à noite, se não houver luz. A partir dela é que a criação de Deus deixou transparecer toda a sua beleza, e os seus contornos tornaram-se visíveis.
A luz, posteriormente denominada dia, reforça o poder criador de Deus, ao passo que as trevas da noite refletem o estado caótico do universo. Dentro do universo de Deus nada se assemelha, porém, à luz que brilha na face de Cristo. Esta luz revela a glória de Deus. presente na vida de um homem. É a glória de Deus que se torna conhecida no pastor que dá a sua vida pelas ovelhas (Jo 10.11). Jesus se apresenta e revela que ele mesmo é luz: Eu vim como luz para o mundo, a fim de que todo o que crê em mim não permaneça nas trevas. (Jo 12.46) De própria iniciativa nem teríamos condições de enxergar esta luz. O mundo dentro do qual vivemos, é revestido de trevas. Jesus se apresenta como a luz do mundo; nisto consiste o grande milagre de Deus, um sinal de graça e amor. A luz de Cristo, que brilha e descobre a glória de Deus, tem consequências:
a) amolece corações endurecidos pelo egoísmo;
b) enche a comunidade de entusiasmo e de forças, pondo-a a serviço dos outros;
c) derruba muros que homens constroem entre si;
d) consola desesperados e solitários, concedendo esperança;
e) anima-nos a conduzir outros à verdadeira luz.
A luz de Cristo faz de cristãos, também, uma luz. Somos filhos da luz. A luz tem um sentido funcional; dentro da lata fechada ela não tem sentido. Luz precisa alumiar, será útil a partir do momento em que outros forem beneficiados por ela.
É tempo de Jesus — as trevas cedem à luz! Discípulos são luz no mundo Nesta qualidade, poderão ser alvo fácil de ataques inimigos. A História é rica em evidenciar exemplos de ataques a cristãos, luzes dentro de uma sociedade discriminadora e violenta.
Dietrich Bonhoeffer, Martin Luther King, além de inúmeros cristãos anônimos acusados levianamente de subversivos, perigosos à sociedade ou revolucionários, são alguns exemplos.
A luz pode tornar-se perigosa, porque põe a descoberto o que, aos olhos dos influentes e poderosos, deveria permanecer no escuro e encoberto.
Uma luz pode ser extinta, mas a Luz do Mundo jamais!
IV — Observações finais
Frisei acima que na elaboração da prédica, o pregador terá de fazer a sua própria opção. Através de algumas associações procurei abrir portas, dando dicas que deverão ser aprofundadas.
A situação de cada comunidade e a situação existencial da pessoa do pregador indicarão a melhor pista a ser trilhada. A meditação esboçada talvez possa ser um auxilio.
Importa que não nos preguemos a nós mesmos mas, sim, que deixemos a luz do mundo, Jesus Cristo, brilhar com intensidade!
V — Subsídios litúrgicos
1. Intróito: Eu vim como luz para o mundo, a fim de que todo aquele que crê em mim não permaneça nas trevas. (Jo 12.46)
2. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus e Pai misericordioso, somos tentados a acomodar-nos na escuridão do egoísmo. Desprezamos a tua luz e amamos mais as trevas. Afastamo-nos de ti e buscamos não a tua, mas a nossa glória através de realizações próprias. Perdoa-nos, Senhor! Com humildade confessamos o quanto temos projetado os holofotes da vaidade e do orgulho sobre as nossas vidas. Sê compassivo, tolerante, e tem piedade de nós, Senhor!
3. Oração de coleta: Ó Deus e Pai, das trevas nos aproximamos a ti. Necessitamos da tua luz que brilha em Jesus Cristo. Participamos deste culto porque estamos dispostos a ouvir a tua Palavra e a enxergar novas luzes em nossos caminhos. Abre os nossos ouvidos e corações, a fim de que entendamos a tua mensagem e aprendamos a ser uma luz neste mundo que nos abriga Em nome de Cristo, nosso Senhor e Salvador. Amém.
4. Assuntos para a oração final: agradecer por Jesus Cristo, a luz do mundo; abordar o significado da luz para os desesperados, aflitos, solitários, perseguidos, abandonados e desconsolados; interceder para que a luz de Cristo abra os olhos daqueles que têm poder para decidir; que. em suas decisões.
sejam considerados aqueles que não têm voz nem vez; pedir para que as auto¬ridades e os políticos tenham sensibilidade com relação ao bem-estar e à vida digna de todos; que a luz de Jesus Cristo abra os olhos daqueles que, apesar dos seus olhos, não enxergam o próximo; lembrar que nossos lares, os matrimônios, os jovens, a Igreja toda, necessitam do resplender e do brilho da luz de Cristo; esta luz nos anima a brilhar, com esperança e confiança, no novo ano. Que jamais se apague!
VI — Bibliografia
– ADE, G. Meditação sobre Isaias 60.1-6. In: Gottesdienst — Praxis. Vol. 1. Gütersloh, 1982.
– BAESKE, A. Meditação sobre Isaías 60.1-6. In: Proclamar Libertação. Vol. 6. São Leopoldo, 1982.
– WENDLAND, H.D. Die Briefe an die Korinther. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol. 7. Göttingen, 1965.