Prédica: Ezequiel 18.1-4,21-24,30-32
Autor: Rui Bernhard
Data Litúrgica: 3° Domingo após Trindade
Data da Pregação: 08/07/1984
Proclamar Libertação – Volume: IX
I — O texto e sua análise
Temos diante de nós um texto fragmentado, o qual deixa de lado pormenores que não têm maior importância para a interpretação. Mas, por outro lado, não se pode obter uma boa interpretação do texto, se deixarmos totalmente de lado os versículos omitidos do cap. 18. Portanto, os versículos indicados da perícope fazem parte do contexto do cap. 18, e, neste contexto, devem ser considerados. Especialmente, são importantes os vv. 5-18, pois o texto fragmentado, segundo Zimmerli, nada mais é do que um esqueleto, ao qual falta carne (p.43).
Ao mesmo tempo, Zimmerli compara o cap. 18a 33.10-20. Nesta comparação se constata uma semelhança no assunto e na maneira como o mesmo é tratado. A exegese vai nos mostrar a validade desta comparação, pois em ambos os textos temos diante de nós um povo revoltado com sua situação diante de Deus.
A questão da época em que foi escrito nosso texto não é tão fácil de ser resolvida. A única pista que o texto nos oferece para tal poderia ser a afirmação … vós que acerca da terra de Israel proferis… (v.2). Esta afirmação nos leva a crer que o autor não se encontra presente no local indicado. Presume-se que alguém está falando da situação do povo, após a destruição de Israel em 587 (Bic, p.293).
Tomemos como base para a nossa exegese a confrontação dos dois textos, como foi afirmado acima. Veremos que em ambos os casos se trata de uma palavra profética colocada em confronto com a voz do povo, os ditos populares, como é o caso em 18.2. Aqui deparamos com uma palavra de cinismo. Ela deixa transparecer o sentimento de revolta do povo contra sua situação vivencial. Transparece nesta revolta a consciência deste povo de uma responsabilidade coletiva. A consciência coletiva existe, mas, ao mesmo tempo, há revolta contra a mesma. O indivíduo estava intimamente ligado à sua família, ao clã e à comunidade. Ali tudo deve ser assumido numa co-responsabilidade mútua, inclusive a culpa das pessoas através das gerações. Estes valores são questionados pelo povo através de uma palavra cínica: Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos se embotaram. É a mesma coisa que dizer: isso está certo assim?
Em 33.10-20 temos a consciência da culpa e a pergunta: como viver com ela? Pelo menos existe a confissão da culpa, e se pede de Deus uma definição a respeito. Mas, ao mesmo tempo, também há desespero na voz do confessor, pois não vê saída para sua situação.
É a situação típica de pessoas depois da queda, onde não existe mais nenhuma esperança para o futuro. Em ambos os casos lemos, portanto, diante do profeta, um povo em desespero que clama por socorro (Zimmerli, p.44).
Em ambos os casos este povo recebe uma resposta de Já vê, que, nos dois, tem a mesma introdução: Tão certo como eu vivo, diz o Senhor… (18.3; 33.11). Com isso, o povo recebe a certeza de que as palavras que vão ouvir têm fundamento e confiabilidade.
É uma palavra que quer trazer confiança, que pode ser resumida na afirmação: o justo certamente viverá (18.21; 33.11). A esperança está expressa na vida que é oferecida ao homem.
Com isso, Javé não se está referindo apenas à vida física. A palavra tem um sentido mais amplo, ou seja, ela significa ser aceito e confirmado por Javé; ela significa vislumbrar esperança por um novo futuro que se realizará no futuro da História da humanidade. (Zimmerli, p.45). E a expressão tão certo como eu vivo, diz o Senhor, é a garantia para esta afirmação. Deus é o único Senhor da vida, tanto dos pais quanto dos filhos. E ele não é fraco, a ponto de não castigar aquele que merece o castigo, e nem abusa de seu poder, fazendo pessoas inocentes sentir este poder. Deus não é como o homem, por isso o homem pode estar certo de sua proteção (Bic., p. 296).
Portanto, vida quer ser entendido como um caminho no qual podem ser dados passos concretos. E a possibilidade para isso nos é dada por Deus mesmo. Estes passos concretos são mencionados em 18.5-20, onde há uma lista de exemplos de como age um justo e convertido. Pois è nesta caminhada em direção a Deus, no observar dos mandamentos de Deus, que se expressam através de situações concretas, que o homem se encontra no caminho para a vida, mesmo que a situação de sua vida seja aparentemente sem saída. (Zimmerli p.46)
Portanto, diante das indicações concretas de como podemos viver em comunhão com o próximo, abre-se para cada um o caminho em direção a Deus, o caminho para a vida.
Tanto para o justo quanto para o pecador, a indicação do caminho é uma só: Convertei-vos e vivei! Convertei-vos e desviai-vos de todas as vossas transgressões; e a iniquidade não vos servirá de tropeço. Lançai de vós todas as vossas transgressões com que transgredistes, a criai em vós coração novo e espírito novo; pois, por que morreríeis, ó casa de Israel? Porque não tenho prazer na morte de ninguém, diz o Senhor Deus. Portanto, convertei-vos e vivei. (vv. 30-32).
Deus oferece ao homem a vida. É uma proposta gratuita que só precisa ser aceita. E somente quem rejeitar tal proposta precisa continuar no desespero e no desânimo, ou no cinismo. Pois todo o que não escolheu o caminho da vida, oferecido por Deus, já se decidiu pelo caminho da morte.
A palavra profética dirigida a esse povo revoltado, frustrado e sem esperança não é uma palavra que contém rancor como resposta; é uma palavra de amor que quer transformar situações, transformando a vida das pessoas. Por isso o profeta centraliza tudo nesta palavra: Portanto, convertei-vos e vivei!.
II — Meditação
Temos diante de nós um povo revoltado que se dirige a Deus e espera por urna resposta. E a resposta vem através do profeta. Talvez não seja a resposta esperada peio povo. Em todo caso, trata-se da resposta de alguém que está a par da situação deste povo. E isto, por si só, já é uma garantia de ser uma resposta séria, que considera e compreende a situação do povo. É a resposta de amor que oferece vida, como dádiva máxima.
Esta realidade deve estar clara para o pregador, quando iniciar o preparo da prédica. Feito isto, deve-se ter em mente a situação do povo de hoje, do nosso povo sofredor, da comunidade, de seus membros que lutam com os seus problemas do dia-a-dia. Certamente, teremos situações idênticas às do povo de Israel. Aqui também podemos constatar facilmente que há revolta entre o povo, insatisfação com a realidade em que estão vivendo, desânimo, frustração, resignação por não ter mais forças para lutar e resistir contra injustiças. Temos diante de nós um povo encurralado por uma minoria dominante. Um povo que não confia mais nos líderes políticos e até mesmo nos líderes religiosos.
Podemos compreender facilmente que em tais circunstâncias há cinismo. O homem não vê mais saída para sua situação desesperadora.
E é para dentro de tal situação que o pregador deve saber colocar esta palavra profética. Ela quer oferecer também hoje, a este povo, a vida como dádiva de Deus. Mas somente espiritualizar a oferta de Deus, afirmando que um mundo melhor espera por nós no além, seria errar o alvo da pregação.
Neste sentido o pregador deveria considerar os seguintes aspectos na preparação da pregação:
1. Não explorar as palavras de cinismo do texto, respondendo com cinismo e de maneira moralista. Pois em cada pessoa cínica que encontrarmos pela frente teremos diante de nós gente insegura, clamando por socorro, por indicações de saídas para situações de desespero e desânimo. São pessoas que carecem de uma palavra de esperança, ditada pelo verdadeiro amor, assim como querem ser entendidas as palavras proféticas de nosso texto.
O pregador deve considerar que o homem não falha apenas por causa de sua incapacidade de poder ser o senhor de sua vida. Ele falha também por não poder entender o grande mistério do Senhorio de Deus e por causa de sua incapacidade de poder entender, em seu todo, este mundo injusto, e conseqüentemente a ação injusta do próprio homem (Zimmerli, p.48)
Temos, portanto, diante de nós pessoas à procura, pessoas carentes de uma palavra de esperança que só pode vir deste Deus que oferece vida. A vida que se concretizou no seu Filho Jesus Cristo.
2. A palavra profética não dá ao homem uma resposta complicada que ele não pudesse entender e que talvez o faça desesperar mais ainda. É uma resposta que aponta para o Deus vivo, justo, que oferece vida. A resposta aponta para um Deus que não nos quer prender nas malhas de nosso pecado cometido no passado. Este Deus não quer nos fazer sofrer pelos nossos pais. Deus não fica preso ao nosso passado, mas indica para um novo futuro. Sua resposta quer nos oferecer também a libertação de tradições que nos escravizam e que não nos deixam ser cristãos autênticos. Nisto está a oferta de nova vida.
A nossa fé cristã pode estar certa de que temos um Deus diante de nós que sofreu na cruz por causa do nosso passado, e de que nesta cruz ficou manifesta a liberdade de Deus para um novo começo, um novo futuro.
3. Esta esperança para um novo futuro é oferecida através do chamado para a conversão. Mas este chamado não acontece de uma forma abstraía e apenas espiritualizada; ele acontece numa concreticidade que chega a indicar caminhos e possibilidades práticas. Os passos concretos estão contidos em 18.5-9. E nos vv. 10-13 e 14-17 eles se repetem. Encontramos aqui, portanto, uma semelhança com o grande mandamento do amor em Mt. 22.37-40. Vem dai a grande importância destes vv. 5-20. Exemplos práticos locais certamente não faltarão.
Deus não está fazendo um jogo de troca-troca. Mas ele tem interesse em dar nova vida, em pôr a caminho aquele que caiu e está desesperado. Com tal objetivo, ele indica saídas e possibilidades para uma ação responsável, através das quais se recebe esperanças para a vida. Todo homem deve ser confrontado com esse presente da vida A todo homem deve ser dirigida essa palavra profética para que a luta possa continuar, e para que não seja entendida como luta e força do homem, pois atrás de tudo se encontra a força e o amor de Deus.
III — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus, chegamos diante de ti com a confissão de nossa culpa. Passamos a nossa vida à procura de vida. Procuramos encontrá-la através de nosso trabalho escravizante, através do dinheiro que procuramos conseguir a qualquer custo. E sempre constatamos que falhamos. Mas não aprendemos a lição. Tentamos iludir-nos sempre de novo, pois o máximo que conseguimos é o desânimo, a frustração e o desespero. Aí apelamos para ti. Com isso, achamos que tu possas estar satisfeito conosco. Mas ignoramos a tua oferta de vida plena, pois não levamos a sério a tua palavra. Perdoa-nos por agirmos assim. Ajuda-nos a reconhecer a tua mão estendida. Tem piedade de nós, Senhor!
2 Oração de coleta: Atua comunidade está diante de ti, Senhor. Todos nós ansiamos por tua Palavra que nos oferece vida em meio â escuridão da vida. Todos nós ansiamos por vida verdadeira; ansiamos por respostas para as nossas dúvidas; ansiamos por indicações para uma caminhada responsável por este mundo. Ajuda-nos para que tua Palavra possa nos dar respostas e nos ajudar em nossos anseios. Por Jesus Cristo, teu Filho amado. Amém.
3. Assuntos para oração final: agradecimento pelo dia que Deus nos deu e pela pregação de sua palavra; agradecimento pela coragem que recebemos de Deus para proclamar sua vontade de maneira inequívoca e comprometedora; agradecimento pela vida que Deus oferece a todas as pessoas quando elas se sentem desamparadas, desanimadas e frustradas; agradecimento porque Deus coloca pessoas diante de nós que anseiam por respostas para sua vida — que a gente possa ver nestas pessoas o próprio Deus desafiando-nos para uma ação responsável de amor; pedido a Deus por força e lealdade à sua causa, para podermos ajudar as pessoas a encontrarem respostas; para podermos estender nossas mãos em direção aos outros e apoiamos, e promover a vida que Deus oferece a todos; que os líderes políticos e religiosos não tenham medo da verdade e lutem para que ela seja a força motora de seu agir; que a Igreja esteja cada vez mais comprometida com esta verdade e que o seu agir no mundo ajude a comprometer outros para o trabalho do reino de Deus, que a Igreja se torne um sinal vivo do amor de Deus para com os homens, assumindo o desafio em que nos coloca sua vontade; outros assuntos locais.
IV — Bibliografia
– BIC, M. Meditação sobre Ezequiel 18.1-4, 21-24. 30-32. In: Göttinger Predigtmeditationen. Ano 24. Caderno 3. Göttingen, 1970.
– EICHRODT, W. Der Prophet Hesequiel — Kap. 1-18. In: Das Alte Testament Deutsch. Vol. 22/1. Göttingen, 1959.
– ZIMMERLI, W. Meditação sobre Ezequiel 18.1-4, 21-24, 30-32. In: Hören und Fragen. Vol. 4/2. Neukirchen-VIuyn, 1976.