Prédica: Filipenses 4.10-20
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: Ano Novo
Data da Pregação: 01/01/1984
Proclamar Libertação – Volume: IX
Tema: Ano Novo
I — Tradução
V.10: Alegrei-me sobremaneira no Senhor, porque novamente deixastes florescer vosso cuidado para comigo; o qual também tínheis antes, mas vos faltava oportunidade.
V.11: Não que o diga por causa da pobreza, porque aprendi a ser autárquico em todas as situações.
V.12: Sei restringir-me,
sei viver em abundância,
em todas as circunstâncias tenho experiência.
Estar farto e passar fome,
ter de sobra e ter escassez,
V.13: tudo posso naquele que me fortalece.
Vv.14-20: Veja o texto na versão de Almeida. Apresento uma tradução própria somente para a primeira parte da perícope. Achei oportuno dar uma versão diferente para alguns termos e, sobretudo, escrever os vv. 12 e 13 na sua forma de poema.
II — Questões introdutórias
Em Fp 4.10-20 Paulo agradece aos filipenses por uma dádiva que lhe fora enviada através de Epafrodito. Na pesquisa moderna levanta-se, principalmente a partir da repentina entrada de 3.2, a pergunta pela uniformidade da carta.
Afirma-se que a Carta aos Filipenses, como hoje a temos em mãos, é em verdade uma carta composta. Nosso trecho é considerado parte de uma carta independente de agradecimento. (Lohse, p. 81)
A linguagem é muito culta e seleta como já a primeira frase o demonstra. Novamente deixar florescer é uma expressão da coiné elevada que designa o desabrochar das flores, o florescer na primavera. Os vv. 12 e 13 são uma pequena obra de arte. Pode-se, realmente, falar de um poema de duas estrofes. Na primeira, Paulo menciona a escassez antes da abundância. Na segunda, fala primeiro da fartura, depois da escassez. Nesta construção, carência recebe um peso especifico.
Chama ainda atenção que, enquanto a primeira estrofe termina dizendo que nenhuma situação é desconhecida ao apóstolo, a segunda finaliza assinalando as razões pelas quais ele tudo pode suportar.
Vimos que a linguagem nos vv.12e 13 é poética. Nos vv. 15-18, em contrapartida, predominam expressões tiradas do âmbito comercial, da transação bancária (Friedrich). Linguagem poética e expressões técnicas encontram-se lado a lado. G. Barth diz com razão: Mostra-se nisso uma característica dessa carta de agradecimento em que questões bem profanas da vida (envio de dinheiro!) e avaliação espiritual estão inseparavelmente ligadas. (Barth, p. 85) Questões mundanas e espirituais não podem ser separadas!
III — Argumentação e conteúdo
Paulo, antes de mais nada, manifesta sua alegria pelo fato de os filipenses terem-se lembrado dele: Alegrei-me sobremaneira… Apesar de apontar para sua autarquia, aceita o donativo. Conhecemos o seu propósito de não onerar as comunidades. Aos tessalonicenses ele escreve: Porque vos recordais, irmãos, do nosso labor e fadiga; e de como, noite e dia labutando para não vivermos à custa de nenhum de vós, vos proclamamos o evangelho de Deus. (1Ts 2.9) Gratuitamente, portanto, anunciou o Evangelho. Mesmo passando privações, não se fez pesado a ninguém (2 Co 11.9). Sempre recusou aceitar dinheiro ou outras ajudas. Aprendeu a viver contente em toda situação. Mesmo assim, aceitou o donativo dos filipenses! Por quê? Quer-me parecer que aqui nos encontramos no centro da mensagem. O que leva Paulo a receber com alegria a oferta dos filipenses é que a entendeu como sinal de comunhão. Vê no donativo um fruto da fé dos filipenses que lhes será creditado por Deus (v.17), um sacrifício aceitável e aprazível a Deus (v. 18). Por isso, seja glória ao Pai pelos séculos dos séculos! (v.20) O que cai em vista é o acento colocado na comunhão. O donativo dos filipenses é um sinal que os une ao apóstolo. (Confira as formulações associando-vos na minha tribulação, v.14, e nenhuma igreja se associou comigo no tocante a dar e receber, senão unicamente vós outros, v.15). Assim como os crentes são chamados por Deus à comunhão de seu filho Jesus Cristo (1 Co 1.9), assim são chamados também para a comunhão de uns para com os outros. Sem isso não há comunidade cristã. Assim sendo, a responsabilidade de uns pelos outros faz parte da vivência da fé. Não é algo extraordinário. É, muito antes, o que há de mais normal para a fé.
O conceito fruto indica nesta mesma direção. Também nos evangelhos o andar em novidade de vida é designado como fruto. (Lc 13.6-9) Mas, para ficarmos em Paulo, em Fp 1.11 ele fala do fruto da justiça e em Gl 5.27 do fruto do Espírito. Andar em novidade de vida é uma consequência do ser renovado. Ai não se trata de obras meritórias, mas da concretização e exteriorização da fé.
É maravilhosa a expressão deixastes florescer (v.10), que Almeida traduz por renovastes! Florescer aponta para um acontecimento espontâneo. No âmbito da criação de Deus, se uma flor se abre, não é mérito dela. É algo bem natural e misterioso, ao mesmo tempo. Também o donativo dos filipenses é algo bem natural e, mesmo assim, algo maravilhoso.
Esse fruto aumenta o crédito dos filipenses. (v. 17) Alude-se aqui ao dia do julgamento. Somos responsáveis perante Deus. A boa obra não tem um fim em si mesma.'Ela acontece na responsabilidade diante de Deus. Cabe aos crentes exercitarem a auto-entrega. Cristo morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou (2 Co 5.15).
O donativo dos filipenses faz parte desse seu viver para aquele que por eles morreu, e do seu entregar-se em amor.
É concretização da nova existência!
Outro aspecto destacado e que já indicamos brevemente é o da autarquia de Paulo. Ele aprendeu a contentar-se (AUTARKÊS EINAI). Essa autarquia ele expõe no pequeno poema que citamos no inicio. O apóstolo emprega um conceito central da filosofia estóica. Nesta, o ideal é o sábio que vive conforme a natureza, domina os afetos; suporta serenamente o sofrimento e se contenta com a virtude como fonte única da felicidade. (Dicionário de Filosofia) Para procurar a felicidade, portanto, basta a virtude. É aí que ocorre o conceito de autarquia (bastar-se a si mesmo). É um empenho de tomar o homem independentemente de tudo que o envolve e assentá-lo sobre si mesmo. O mandamento máximo é viver conforme a natureza. Para o estoicismo, viver conforme a natureza é submeter a própria razão á razão do mundo. O apelo, portanto, vai no sentido de acomodar-se ao grande todo e à razão divina que o governa, e submeter-se ao destino. Quem procede assim é sábio. Quem resiste ao seu destino, deixa-se dominar por suas paixões. Este é um insensato.
Será nesse sentido da ética estóica que Paulo usa o termo autarquia? De maneira alguma! Conforme a doutrina do estoicismo, é o homem mesmo quem se torna livre. Ele deve conquistar a felicidade. Também Paulo diz tudo posso (v.13), mas a continuação é naquele que me fortalece. Ele não fundamenta sua liberdade, em relação a toda e qualquer situação, em sua própria força, mas naquele que com sua presença o fortalece. Em sua fraqueza se manifesta o poder de Cristo. A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. (2 Co 12.9) Esta é uma diferença fundamental.
G. Barth lembra um outro detalhe: a postura do estóico leva a uma negação dos afetos; evita a simpatia, a amizade e o amor, mas também é incapaz de compaixão e de solidariedade; conduz, em última análise, à desistência de viver uma vida em co-responsabilidade. Paulo, ao contrário, permanece inteiramente homem, fraco, amoroso e sofredor, enlutado e esperançoso. Permanece totalmente nas coisas que o rodeiam… Não necessita negar sua situação, nem sublimá-la, mas conta com o Senhor, cuja presença também aqui o envolve. E porque este Senhor é o crucificado, mesmo tribulações e morte não podem anular esta presença. (Barth, p. 89s) É por isso que nem fartura, nem fome, nem riqueza ou escassez são para Paulo uma tentação. Em Cristo, aprendeu a ser autárquico em todas as situações.
IV — Indicações para a prédica
O nosso texto é sugerido para a prédica de Ano Novo. Estamos vivendo momentos difíceis. O alto índice de desemprego é assustador. No Rio Grande do Sul, 10% da população economicamente ativa estão desempregados. Com os pacotes que nos vêm, podemos esperar um expressivo e generalizado aumento do custo de vida. Sem dúvida, o desequilíbrio social da sociedade brasileira tende a acentuar-se. Os mais atingidos nisso tudo são os fracos. Neste sentido, talvez o Ano Novo não traga grandes perspectivas para muitos.
Qual é a mensagem evangélica para o Ano Novo?
Será de ajuda colocar Paulo como herói que sabia aguentar pacientemente situações adversaé? Constatamos na nossa análise que Paulo e sua prisão, os filipenses e seu donativo, não podem estar no centro das considerações.
Vejo duas possibilidades para a proclamação:
1. Desenvolver a prédica a partir do v.13. Tudo posso naquele que me fortalece. H. Gollwitzer limita a pericope e prega sobre os vv.10-13. Inicia o sermão com estas palavras: Cara comunidade! Cristo fortalece em qualquer situação e para toda situação. Esta é a singela, porém, extraordinária afirmação que, hoje, queremos levar para casa. (Gollwitzer, p. 235) Não é, porém, o exemplo do apóstolo dos gentios como tal que deve ser amplamente desenvolvido diante da comunidade. Paulo mesmo desvia a atenção da sua pessoa e aponta para Cristo. Este é quem o fortalece. Nisso está a promissão! Trata-se do anúncio autorizado da presença de Cristo conosco em toda e qualquer situação. Esta é boa nova para o Ano Novo!
2. Posso também imaginar uma prédica que tematize a comunhão. Não é algo natural que possamos ter verdadeira comunhão. Não é algo natural que possamos ter verdadeira comunhão com os irmãos. Ser irmão de outrem é possível somente mediante Jesus Cristo. Sou irmão do outro através daquilo que Jesus Cristo fez por mim e em mim. O outro se me tornou um irmão por meio daquilo que Jesus fez por ele e nele. O fato de sermos irmãos exclusivamente mediante Jesus Cristo é de significado incomensurável. (D. Bonhoeffer, p. 9)
O fato de verdadeira comunhão entre irmãos ser uma realidade leva Paulo à doxologia do v.20 onde o momento da comunhão ainda é sublinhado pela expressão nosso Deus. A ele seja a glória!
Nesta comunhão são relativizadas as situações. Ter fartura e ter escassez aparecem sob outra luz. Ninguém tem fartura somente para si e, inversamente, ninguém está sozinho quando em dificuldades. Os pobres e os atribulados não são esquecidos! Fizestes bem, associando-vos na minha tribulação. (v. 14) Quem está em cima não explora quem está em baixo. Na comunidade cristã não se ignora as diferenças sociais, mas elas são vencidas na comunhão mediante Jesus Cristo. Onde, por nossas forças, quisermos vencer as barreiras que nos separam, haverá frustração. Onde, porém, simplesmente ignorarmos as diferenças sociais reinará o egoísmo. Em Cristo, porém, acontecerá um dar e receber onde até as diferenças entre o doador e quem recebe desaparecem. Quem dá acaba sendo o que recebe. Nesta comunhão todos são agraciados. Podemos entender a partir dai a alegria que se manifesta em toda essa carta escrita na prisão: Alegrei-me sobremaneira no Senhor… Que podemos ser comunidade de Jesus Cristo, será permanente motivo de alegria para nós no novo ano com tudo que ele nos possa trazer!
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, perdoa-nos nossas muitas omissões durante o ano que passou. Queremos, no inicio deste novo ano, renovar também a nossa vida. Queremos confiar mais na tua Palavra. Temos o firme propósito de olhar mais para o nosso irmão que está em dificuldades. Sabemos que tantas vezes deixamos de ser solidários. Esquecemos que vivemos todos a partir da tua graça. Mais uma vez. Senhor, perdoa-nos nossas transgressões. Sê compassivo conosco. Tem piedade de nos, Senhor!
2. Oração de coleta: Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo e, com isto, também nosso Pai; tudo está em tuas mãos! Tu és o Senhor. És o Senhor também sobre o tempo. Todas as horas e todos os dias do novo ano estão sob teu poder. Isto nos conforta. Quando estamos por desanimar diante dos problemas do dia-a-dia. dá que nos lembremos que tu estás conosco todos os dias até a consumação dos séculos. Amém.
3. Oração final: Senhor, no inicio deste novo ano chegamo-nos a ti com o pedido por tua proteção. Diante das incertezas quanto ao que poderá vir, temos medo. Dá-nos a convicção que tudo podemos em ti que nos fortaleces. A situação em que vivemos é muito adversa. Há tantos que não sabem como enfrentar o dia de amanhã. Somos tua Igreja. Vivemos em comunhão mediante Jesus Cristo. Experimentamos que não estamos sozinhos e que divisões entre ricos e pobres, entre fortes e fracos não têm sentido. Nesta comunhão vemos muros de separação caírem. Senhor, o que experimentamos na comunidade cristã desejamos também para todos os homens. Dá-nos força para que possamos, neste sentido, ser tuas testemunhas. Amém.
VI — Bibliografia
– BACH, U. Meditação sobre Filipenses 4.10-20. In: Goettinger Predigtmeditationen. Ano 65. Caderno 5. Goettingen, 1976.
– BARTH, G. Meditação sobre Filipenses 4.10-20. In: Hoeren und Fragen. Vol. 4/2. Neukirchen, 1976.
– BONHOEFFER, D. Vida em Comunhão. São Leopoldo, 1982.
– GOLLWITZER, H. Zuspruch und Anspruch. Muenchen, 1954.
– FRIEDRICH, G. Der Brief an die Philipper. In:Das Neue Testament Deutsch. Vol. 8. Goettingen, 1962.
– LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo, 1974.
VII — Um texto de Adolf Schlatter
Os filipenses doaram dinheiro a Paulo. Mas ele viu nisso mais do que um presente. Viu nesse gesto um fruto. Tivesse ele somente pensado em termos de donativo, em relação ao que os filipenses lhe enviaram, teria visto apenas as pessoas que carinhosamente se lembraram dele. Nossa visão com frequência somente vai até às pessoas e toma em consideração como elas se posicionam frente a nós e como se lembram de nós. Assim, tornamos nossa comunhão superficial. Ela, porém, recebe profundidade quando não esquecemos que nós, homens, vivemos em comunhão com Deus e que estamos em condições de dar porque recebemos. Se o homem tem amor é porque Deus lho concedeu. Se agradece, fá-lo porque recebeu as dádivas de Deus e sabe do seu valor. Assim, o presente se transforma em fruto que o torna significativo não somente para o destinatário, mas também para o doador. Paulo esperou pelo fruto. Não ocorrendo, ele se entristece. Sendo, porém, produzido o fruto, alegra-se sobremaneira. Com a alegria, o que Deus realizou em nós, atinge o seu alvo. Da graça a nós concedida ela é o final desejado por Deus. Atingiu-nos de maneira que lhe seguimos, e nos moveu a ponto de agirmos. Agora estamos realmente curados e somos verdadeiramente enriquecidos. Para a árvore infrutífera, cultivada em vão, não há lugar no Reino de Deus. Deve ser cortada. Só quando o que nos foi concedido frutifica, o mesmo se torna salutar e nossa propriedade. Por isso, o amor é também para quem o pratica, e não somente para quem o recebe, lucro imprescindível, um passo abençoado que nos conduz para diante e para o alto'. (SCHLATTER, A. Ihr seid teuer erkauft. Berlin, 1975, p. 102).