Prédica: Hebreus 11.1-2,6,8-10
Autor: Martin Dreher
Data Litúrgica: Domingo Reminiscere
Data da Pregação: 18/03/1984
Proclamar Libertação – Volume: IX
I — Nota preliminar
Ordens de perícopes anteriores sempre colocaram nossa passagem dentro de um contexto maior. Queriam fazer do exemplo de Abraão parte integrante da problemática do cap. 11 de Hebreus. Na forma atual, lamentavelmente, o tema de todo o capitulo não está mais salvaguardado. Por isso, sugiro que o pregador não se limite aos vv. 8-10, mas tenha a coragem de assumir também os vv. 1, 2 e 6. Se fizermos isso, teremos alcançado o objetivo do texto: A tradição em torno de Abraão quer servir de parênese à comunidade que é o povo migrante de Deus. Nosso texto de pregação abrangeria, pois, Hebreus 11.1-2,6,8-10.
II — Sugestão de tradução
V.1: A fé é um penhor para o que espera e uma convicção de coisas que se não vê.
V.2: Pois com base nessa fé os antigos alcançaram testemunho.
V.6: Sem fé é impossível agradar a Deus; pois quem quer vir até Deus tem que crer que ele é e que ele é um que recompensa os que o procuram.
V.8: Quando foi chamado a migrar para um lugar, o qual haveria de receber como herança, Abraão obedeceu com fé e migrou, sem saber onde ia.
V.9: Em fé estabeleceu-se na terra da promessa como posseiro, como se lhe fosse estranha, e morou em barracas com Isaque e Jacó, os co-herdeiros da mesma promessa,
V.10: pois ele aguardava a cidade que tem fundamentos firmes, cuja planta e edificação o próprio Deus concebeu.
III — O texto e seu contexto
Acentuo, uma vez mais: o texto quer servir de parênese à comunidade que é povo migrante de Deus. Ele não quer apresentar definições acadêmicas acerca da fé! Quem quiser aproveitar o texto para tais divagações acadêmicas, procure outras formulações. Nosso texto dirige-se a uma comunidade que, após anos de fé ativa no amor, de muita confissão alegre, de muita confissão com sofrimento, cansou e esmoreceu. O contexto imediato do cap. 11 mostra-nos que todos os exemplos nele contidos, que vão de Abel até os mártires dos dias dos macabeus, fazem parle das admoestações de 10.35-39 e de 12.1-3. A nuvem de testemunhas (12.1), que nos cerca, presta seu testemunho também a nós. Para o autor de Hebreus é importante o que nós podemos ver nelas. Mas, por outro lado, elas são também observadoras de nosso combate da fé. Pois, elas não foram aperfeiçoadas sem nós (11.40). As palavras em torno de Abraão, bem como em torno das demais testemunhas, estão emolduradas pela definição de 11.1, pelo v.2 que nos dá o tema do capitulo, e(!) pelo v. 39, no qual nos é dito que as testemunhas da nuvem ainda não obtiveram … a concretização da promessa. Isso é, nós, comunidade do séc. XX, encontramo-nos no mesmo espaço, no qual se encontra a nuvem de testemunhas: encontramo-nos no espaço que vai da criação (v.3) até a consumação (v.40). Da moldura de nossa perícope também fazem parte os vv. 11.39-12.3. Sem ela, a perícope se torna incompreensível. Para o pregador surge desse fato um primeiro grande desafio. Ele tem que evidenciar em sua pregação a moldura e não só o texto. Se ele não fizer isso, não saberá dizer o que é que nos liga, como comunidade de Jesus Cristo, à nuvem de testemunhas, especialmente a Abraão. Esse aspecto não se encontra no texto, mas no contexto, em 12.1-3!
IV — O texto
Fiel à observação que fiz acima, estudo, pois, os vv. 1-2,6,8-10. Uma comunidade outrora firme, está vacilante, está querendo retroceder. Ela tem que ser admoestada. A partir daí, o v.1 não é definição do que seja fé. É parênese. A meu ver, A. Schlatter viu muito bem que a aparente definição conclama os ouvintes a permanecerem ali onde eles se colocaram, ou antes, onde foram por ele (Cristo) colocados, e a permanecerem convictos daquilo de que foram persuadidos, mesmo que tenham que continuar a renunciar ao saboreio e à contemplação de suas dádivas (p.526). Schlatter traduz o v.1: Permanecer firme no esperado, estar persuadido por coisas não vistas. (Bestehen bei Gehofftem, Überführung von nicht gesehenen Dingen, p. 523). A fé transforma-se em esperança e é praticamente idêntica a perseverança, firmeza. No entanto, se for difícil crer, a comunidade deve olhar para os que anteriormente se exercitaram na fé. Deve olhar, v.2, para os antigos, pois desde os primórdios a relação de Deus com os homens está baseada na fé. Ninguém podia servir a Deus, a não ser crendo. Os antigos creram, e não creram em vão. Deus prestou seu testemunho em relação a eles e tudo o que os antigos alcançaram foi dádiva de Deus para aqueles que se exercitaram na fé. Essa certeza é reassumida pelo v.6: ninguém pode chegar até Deus, a não ser em fé. A fé é condição imposta por Deus àquele que quer participar do culto da comunidade (quem quer vir até Deus). Este confia na existência de Deus e espera pela recompensa. Crer que Deus é, pressupõe a invisibilidade de Deus (cf. Hb 11.27). O Deus do qual fala o versículo não é objeto, mas sujeito. É o sujeito que responde a uma comunidade cheia de dúvidas. Essa comunidade pergunta: Podemos crer na promessa de Deus? Será que Deus vai cumprir o que prometeu?
A essa comunidade cheia de dúvida, o versículo responde em sua segunda metade, trazendo consolo: Deus existe, ele cumpre sua promessa aos que nele confiam. Ele é o autor da fé. Isso se evidencia em Abraão, do qual falam os vv. 8-10. Se olharmos o exemplo que os versículos nos trazem, temos as seguintes características da fé, em forma de parênese, para a comunidade atribulada: V.8: Obedecendo à promessa, Abraão sai de sua pátria, sem saber para onde. Fé é obediência. V.9: Abraão mora na terra da promessa como um posseiro, provisoriamente, pronto para nova migração, aguardando a cidade vindoura. A fé faz do crente um posseiro e um peregrino na terra. A terra é apenas um local de parada no meio da caminhada para a cidade de Deus. O que foi chamado por Deus nada possui além de urna sepultura, e vive como posseiro em barracas. O v.10 interpreta essa situação: ao contrário da situação terrena, na qual o cristão não conhece lugar fixo para sua barraca, onde não há alicerces para uma barraca, a cidade de Deus, alvo final da peregrinação, tem alicerces, fundamentos, fixos e firmes. Essa cidade de Deus representa o mundo futuro, a morada da Humanidade redimida. Ela foi planejada por Deus e é produto de sua mão criadora. Essa cidade é cumprimento da promessa de Deus. Na narrativa acerca de Abraão, em Genesis, nada consta a respeito dessa cidade de Deus. Ela foi criada pela apocalíptica judaica e acoplada à narrativa de Abraão. A figura é conhecida pela comunidade. Para o nosso texto, a imagem da cidade de Deus traz um componente escatológico. Esse componente não poderá ser deixado de lado na pregação, pois é acento básico para o texto que espera a concretização de promessas que ainda estão por se cumprir.
Mais uma palavra a respeito de Abraão em nosso texto: o autor de Hebreus não reproduz simplesmente a historinha de Abraão; ele a amplia, tornando-a história de sua comunidade. Na forma atual, nosso texto é confissão e esperança da comunidade de Deus. Temos aqui promessa e esperança em interpretação apocalíptica, uma linguagem compreensível para a comunidade em situação difícil. A comunidade recebe consolo para a situação presente a partir do futuro e a partir do passado. Essa duplicidade é importante. Ela é consolada com o além, é verdade, mas também recebe forças da história vivida. O consolo vem da cidade de Deus (futuro) e da testemunha Abraão (passado).
A comunidade é, pareneticamente, convidada a ver nos pais o caminho para ela própria traçado por Deus. A comunidade perdeu a terra dos pais por causa da confissão a Jesus, tornou-se posseira. Sua situação é idêntica à dos pais. Nesses pais a comunidade pode ver o que é fé: não olhar para trás, para aquilo que ficou para trás e que teve que ser abandonado. Crer significa ser posseiro na terra. Crer significa ver a cidade de Deus aberta e ter a esperança de nela poder se alegrar.
V — Para meditar
Em nosso texto não temos um relato histórico a respeito de Abraão. Temos, isso sim, interpretação da tradição bíblica, na qual o autor de Hebreus aponta para a esperança da comunidade peregrina.
As figuras nos são estranhas, pois não (?) usamos imagens apocalípticas e não estamos mais acostumados a ver a existência da comunidade cristã com o conceito da peregrinação. No entanto, no texto é apontado para algo básico em nossa existência: o estar a caminho. Peregrinação é algo que faz parte de nossa existência. Cada geração tem que sair de seus pagos e há de se ver diante do fracasso nessa caminhada, ou, em tardando, quando vier a morte. Nenhum de nós pode estabelecer-se na terra. Somos hóspedes e posseiros, como diz Hb 11. E, o que os seres humanos jamais alcançam — construir cidadelas inexpugnáveis, viver apenas de tradições, deixar de pensar no futuro para ficar com o passado —, tudo isso os cristãos nem sequer podem pretender querer. Todos nós somos chamados a reencetar todos os dias o êxodo, assim como o teve que fazer Abraão, em Gn 12, ao sair da casa paterna. Quem não quer acompanhar esse êxodo perde o contato com o povo peregrino, mesmo que esteja todos os dias sentado dentro da igreja. Essas observações, feitas em relação ao indivíduo, valem muito mais em relação à Igreja como um todo. Também ela é constantemente chamada para o êxodo e deve deixar para trás valores perecíveis. Caso contrário não será Igreja dirigida pelo Espírito, mas regida pela tradição. A liberdade cristã inclui o êxodo contínuo. Livre é apenas aquele que está em condições de abandonar as coisas antigas, assim como o fizeram os antigos, para encontrar-se ou confrontar-se com a vontade de Deus. Nesse projeto uma coisa parece ser certa: a caminhada sempre leva ao deserto. Não se chega à terra prometida sem passar pelo deserto. Não se chega à cidade de Deus sem sofrimento. A peregrinação da fé, em todos os tempos, é passagem por região de luta e de morte. (Käsemann, p. 24) Infelizmente a Igreja, assim como o velho Adão, só raras vezes está disposta ao êxodo e à passagem pelo deserto, preferindo ficar no berço esplêndido, mesmo que Jesus a esteja chamando para a festa. Típico é para a Cristandade que, em sua caminhada, sempre de novo tenha ficado cansada e, assim, tentada a abandonar a fé. Para ela tem que se falar do que é fé e contar de Abraão.
VI-— Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor Deus, somente tu compreendes e conheces nossas dificuldades. Quando as colocamos diante de ti no culto e as confessamos, sabes quem de nós teve uma semana cheia de dúvidas e tentações atrás de si. Fomos tentados e fracassamos. Tudo isso confessamos diante de ti como nossa culpa e pedimos teu perdão, por Jesus Cristo, nosso Senhor Tem piedade de nós. Senhor.
2. Oração de coleta: Amado Pai, sob a luz da Paixão de teu Filho Jesus Cristo percebemos o que fizeste por nós. Queremos confiar em teu amor, para que nossa fé se torne ativa e para que teu Espirito Santo opere em nós, assim como prometeste. Amém.
3. Assuntos para a oração final: invocação; graças pela Palavra; intercessão pela Igreja local, nacional e universal; tentações, negação, auto-segurança, confirmandos, perseguidos, os que desconhecem a Cristo; governantes, paz, participação para todos nas riquezas e bens, técnica e cultura, pão, discriminação, justiça social, leis justas; relacionamento de patrões e empregados, índios, povos perseguidos e sujeitos ao extermínio; doentes, idosos, deficientes, solitários, angustiados, prece por pessoas que se ocupem com eles; pais e filhos; marido e mulher; famintos, diáconos e diaconisas; pessoas que nos são antipáticas; pelas nossas misérias; pela liberdade que Cristo nos dá; pela desinstalação da Igreja; que tudo seja pedido em nome de Jesus Cristo, com o Espírito Santo e o Pai.
VII — Bibliografia
– KÄSEMANN, E. Das wandernde Gottesvolk. Eine Untersuchung zum Hebräerbrief. 2.ed. Göttingen, 1957.
– MICHEL, O. Der Brief an die Hebräer. In: Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament. Parte XIII. 12. ed. Göttingen, 1966.
– SCHLATTER, A. Der Glaube im Neuen Testament. 5. ed. Darmstadt, 1963.
– STRATHMANN, H. Der Brief an die Hebräer. In: Dos Neue Testament Deutsch. Vol. 4. Göttingen, 1968.