Prédica: Isaías 52.13-53.12
Autor: Milton Schwantes
Data Litúrgica: Sexta-Feira Santa
Data da Pregação:20/04/1984
Proclamar Libertação – Volume: IX
I
Traços básicos de Is 53 (= 52.13-53.12) se justapõem à vida e obra do Servo de Deus, Jesus de Nazaré; o NT recorre, com insistência, a Is 53 para testificar o Messias. Trata-se de uma novidade. O messianismo judaico não estava vinculado à nossa perícope, em todo caso não à sua temática do sofrimento. Bem outra é a postura neotestamentária. Os cânticos dêutero-isaiânicos do escravo(42.1-4: 49.1-6; 50.4-9; 52.13-53.12) são seguidamente retomados: na compreensão da morte de Jesus como expiação vicária, no testemunho de João Batista (Jo 1.29ss), nas curas do Cristo (Mt 8.17), nas alusões à Paixão (Lc 22.37; Mc 9.12; 10.45), na interpretação da Eucaristia (Mc 14.24), nos títulos cristológicos (At 3.13,26; 4.27,30), na pregação missionária (At 8.32s, v.35!), etc. Este recurso a Is 53 não é inovação cristológica da comunidade pós-pascoal. Pelo contrário, Jesus pensou na linha de Is 53 (Goppelt, p.212) ou — para dizê-lo na palavras de C. Mesters (p.135) — Jesus assumiu a missão do Servo. Portanto, nossa perícope vetero-testamentária tem sua analogia no próprio âmago do anúncio neotestamentário: a morte vicária de Jesus, o Cristo.
Ora, tamanha densidade cristológica de um texto veterotestamentário facilita sua pregação atual. Propicia, por exemplo, que se evidencie o enraizamento histórico da cristologja. Disso não há dúvida! Contudo, analogias tão múltiplas e patentes entre passagens do AT e dados do NT também dificultam: tendem a sugestionar uma pregação que, com muita rapidez, acomoda o específico da respectiva perícope a conteúdos neotestamentários conhecidos ou a chavões dogmatizados. Aí tende-se a selecionar aquilo que parece adaptável ao NT. Neste caso uma perícope como a nossa corre o risco de sucumbir em sua especificidade, quando, mui imediatamente, se lhe sobrepõe uma releitura cristã. Por isso, julgo oportuno propor, aqui, uma apropriação de nossa passagem que prime por verificá-la em seu lugar concreto na história de Deus com seu povo. Pretendo alienar, não só aproximar Is 53; leio-o como texto do AT, não do NT. Este projeto — permitam-me repeti-lo — não nega a maravilhosa releitura do quarto cântico do escravo feita no NT. Este projeto, tão-somente, leva a sério que o texto proposto encontra-se no AT.
II
Is 53 conserva as marcas de seus dias; está encardido de sua situação. Como?
Com Is 53 encontramo-nos, indubitavelmente, no exílio babilônico, por volta de 550 a.C. Devemos atribuir Is 40-55 a um profeta anônimo, alcunhado de Dêutero-lsaías, cuja atuação se deu junto à segunda geração de deportados. A pergunta angustiante dessa gente deportada era: o Exílio é a palavra derradeira de Javé (cf. 40.27; 49.14)? Como Javé dará continuidade à sua história com Israel? Estas interrogantes receberam diversas respostas. Muitos se aliaram aos vitoriosos, os babilônios, desistindo de Javé. Uns aguardavam o retorno e a reconstrução do templo hierosolimita. Outros insistiam na restauração do davidismo. Nos cânticos do escravo, em especial no último, é feita uma afirmação escandalosa: Javé se manifesta no sofrimento dos escravos! Esta resposta destoa das demais, isto é, Is 53 não é o consenso da teologia exílica. É voz destoante, em sua época. Is 53 está marcado por dissensão, não por consenso!
Os exilados não eram grandeza uniforme; o Israel deportado não era uma entidade homogênea. Pode-se observá-lo até mesmo na composição da população exilada. Em 597 a.C. é expatriada a elite hierosolimita (2 Rs 24.12,15s). Em 587 a.C., por ocasião da destruição de Jerusalém, são desterrados também aqueles camponeses empobrecidos, que, devido ao sitio babilônico, se haviam refugiado na capital (2 Rs 25.3,13,19). Os deportados não se compunham, pois, exclusivamente de gente da elite; entre eles também havia pobres (cf. Jr 52.15). Somou-se a esta uma diferenciação a mais que surgiu no próprio Exílio. Temos notícias de que parte da segunda geração de deportados passa a integrar-se no sistema babilônico: em 560 a.C. — isto é, poucos anos antes da atuação de Dêutero-lsaias! — parte da nobreza exilada vira comensal na corte babilônica (2 Rs 25.27ss, cf. Jr 29.1 ss; Ed 1). Portanto, há exilados na corte e exilados na escravidão!
Dêutero-lsaías atua entre os que permanecem na escravidão: designa Israel de EBED, isto é, de escravo! A designação EBED corresponde à realidade de uma parte dos israelitas exilados. Sim, a opressão descrita em te 53 não é coisa inventada. É experiência dos deportados: escravos, desfigurados, sofridos, maltratados, massacrados. Portanto, nossa perícope está encardida das dores de seus dias. (Cf. também Kilpp, p. 16ss.).
III
Quem é quem em Is 53? Muitos há que negam a validade desta pergunta. Em todo caso, a resposta é controvertida; não há consenso. Ainda assim parece-me inevitável que tentemos identificar os personagens de nossa perícope:
Ao meu ver, o EBED é o povo oprimido (Mesters, p.126). É uma parte de Israel. Em 49.3 isso é evidente. Em Is 40-55 a identificação do EBED com Israel é uma constante (41.8; 44.1,2, etc). Além disso, -os vv. 10-12 de nossa perícope só são compreensíveis se o EBED não é um indivíduo, mas um grupo de pessoas: o Israel escravizado na Babilônia.
Nos vv. 1-6 aparece um nós. São pessoas que acompanharam de perto o sofrimento dos escravos. O mais provável é que também se¬jam israelitas. Seriam aqueles que se afastaram dos escravos e que colaboravam com os babilônios.
Em 52.14 e 53.11 s fala-se de todos (Almeida: muitos); o termo hebraico RABIM não é excludente (muitos, mas nem todos), mas includente (muitos, isto é, todos). Em 52.15 também são mencionados todos os povos / reis (cf. 42.1,4; 49.6). Não se trata das mesmas grandezas: os todos são a totalidade dos exilados, os israelitas em geral; iodo* os povos l reis são os não-israelitas, a Humanidade toda.
Proponho que se desista de querer ver no EBED um determinado indivíduo: Moisés» Elias, Dêutero-lsaias…
IV
Estamos diante de uma poesia apurada, repleta de figuras, de linguagem dos salmos, de lógica hebraica. Tão-somente posso indicar alguns de seus fascínios poéticos e de sua singular estrutura, convidando, de resto, a meditar pacienciosamente a tradução que, mais adiante, esquematizarei.
Esta poesia não se enquadra entre os gêneros usuais. Alguns designam-na de liturgia profética (Wolff), cantada por coros (von Rad), de oráculo de salvação (Kaiser). Outros chamam a atenção para a diversidade de gêneros ai misturados. Parece que o conteúdo radical desta poesia é qual vinho novo que não cabe em odres velhos.
Em todo caso, verifico um esquema bem transparente: inicio e fim coincidem: ambos são fala divina (52.13-15 + 53. Hb-12). À fala divina inicial (52.13-15) segue uma pergunta (v.1), cuja resposta está nos vv.10-11 a; pergunta: sobre quem se manifestou o braço de Javé?(v.1), resposta: Javé se agradou daquele que moera(v.10). A narração sobre a vida dos escravos, iniciada nos vv.2-3, é continuada nos vv.7-9. E, por fim, exatamente no centro de nossa liturgia profética, encontra-se a confissão: nós não o valorizamos (vv.4-6, cf. v.3 final). Esta avaliação da obra dos escravos é tão vital para o conjunto que a narração (vv.2-3,7-9) já é feita na ótica da confissão: quem narra são os nós, os convertidos pelos escravos. No esquema que segue pode-se visualizar o quão decisiva é a confissão de culpa dos convertidos:
Veja! Meu escravo… (vv. 13-15) fala divina
Quem creu?(v.1) pergunta
“Cresceu…” (vv.2-3) narração
Nossas enfermidades… (vv.4-6) confissão
Foi explorado… (vv.7-9) narração
…aquele que foi moído… (vv. 10-11a) resposta
Meu escravo trará justiça… (VV.11D-12) fala divina
A perícope não só obedece a um esquema mui transparente, como também mantém, na cadência de seus pensamentos, uma coesão mui consistente. Típico é que cada uma das partes remete para a que segue ou retoma o que antecede. Por exemplo, 52.14b traz um resumo de 53.1ss; enquanto isso, vv. Hb,12b condensam o que já fora dito. Para perceber esta consistência poética e lógica da perícope, nada melhor que uma leitura pacienciosa e meditada. Neste propósito segue, agora, o texto. A presente tradução também visa chamar atenção para aquelas partes, em que o texto hebraico lamentavelmente está corrompido (observe os grifos! cf. em especial vv.8,10,11).
l3Veja!
Meu escravo é vitorioso, subirá, será erguido, estará muito elevado!
14Assim como todos se horrorizaram diante dele – tão desfigurada era sua aparência,
desumano seu aspecto -,
15do mesmo modo todos os povos se admirarão dele,
reis fecharão sua boca, pois viram o que não lhes foi contado e experimentaram o que não ouviram.
1Quem creu no que ouvimos?
Sobre quem se manifestou o braço de Javé?
2Subiu/cresceu diante de nós como um rebento,
como raiz de terra seca. Não tinha aspecto nem beleza. Nós o víamos,
mas não era espectro que nos agradasse.
3Desprezado!
Abandonado por pessoas! Homem de dores! Habituado à enfermidade!
Como alguém de quem a gente desvia o rosto! Desprezado!
Nós não o valorizamos!
4Na verdade, nossas enfermidades – ele carregou,
nossas dores – ele as suportou. Mas, nós o avaliávamos corno um atribulado, ferido por deus, humilhado.
5Ele, porém, estava traspassado por causa de nossas transgressões
moído por causa de nossas culpas Castigo que é nossa salvação estava sobre ele. Por suas feridas fomos curados.
6Todos nós andávamos desgarrados como a ovelha:
cada qual seguia seu caminho! Mas, Javé fez recair sobre ele o pecado de todos nós
7Foi explorado
e se curvou: não abria sua boca;
como cordeiro que é levado ao matadouro, como ovelha que silenciou diante de seus tosquiadores; não abria sua boca.
8De prisão e tribuna! foi levado.
– Quem se ocupa com sua linhagem? Eis que foi cortado da terra dos viventes.
-Por causa da iniquidade de seu povo foi torturado até a morte.
9Entre malfeitores puseram sua sepultura, entre perversos seu túmulo.
– Ainda que não praticasse violência e não houvesse mentira em sua boca.
10Porém, Javé se agradou daquele que moera,
dispôs sua vida como sacrifício pela culpa: Verá descendência! Prolongará dias!
Por sua mão o plano de Javé se efetivará!
11Após a canseira de sua vida verá a luz! Ficará saciado!
Através de sua experiência, meu escravo, um justo, trará justiça para todos: Suas culpas – ele as suportará.
l2Por isso,
lhe darei parte entre todos, com poderosos partilhará despojo, porquanto entregou sua vida à morte
e foi contado entre pecadores. Ele sustentou o pecado de todos e intercederá pelos pecadores.
V
O conteúdo de Is 53 tem qualidade. Aqui a profecia alcança uma densidade teológica incomum. A isto se agrega a complexidade que esta perícope apresenta em seus detalhes. Por isso impõe-se uma restrição a algumas facetas típicas (cf. também van Kaick, p. 72ss):
1. Na origem da perícope está o martírio dos escravos (vv. 1-11 a). O texto é uma biografia da dor. A vida escrava é sofrimento, desde o nascimento até a sepultura. Do nascimento lemos no v.2, do sepultamento no v.9. Do nascimento fala-se em figura: a origem dos escravos está na terra seca, na miséria. No sepultamento deparamos com concretitude: até o cadáver dos escravos é ultrajado, porque é depositado entre malfeitores. A injúria contra um defunto é o insulto capital, A vida escrava que se desenrola entre a origem miserável e o sepultamento injurioso é marcada por rejeição social. A rejeição é o que mais atenção merece: aspecto repugnante, feiúra, desprezo. Observe o quão decisivo é o atributo desprezado no v.3! Como se vê, a rejeição social é anteposta à opressão concreta. Contudo, esta não falta. Três aspectos desta opressão são ressaltados na vida dos escravos: eles são os doentes, os explorados e os assassinados. Destaque especial recebem doença e assassinato. De gente doente e quebrada lemos nos vv.4-6, de gente injustiçada, torturada e eliminada, nos vv.7-9. Ainda que, no geral, a perícope traga à consciência os efeitos da escravidão (rejeição, doença, tortura), não falta a referência à causa que origina a deformação. Afinal, esta gente triturada é designada de EBED/escravo, um termo que não dá margem á dúvida: a exploração do trabalhador destrói vida e gera morte! Sim, no inicio do v.7 — como cabeçalho à fase final do martírio — é dado destaque à denúncia da exploração. O verbo oprimir, aí usado, no hebraico diz respeito à exploração econômica de escravos (Kaiser, p.l09s). Creio que, sem tematizar o martírio que vitima escravos, trabalhadores e camponeses, não se poderá pregar sobre nossa perícope!
2. Is 53 não se esgota no martírio; se assim fosse, esta perícope nem existiria. Testemunha da experiência de sua superação. Trata-se de uma vitória desconcertante, pois é vitória, em meio á escravidão e à morte. Aliás, este é o intróito de nossa liturgia: meu escravo é vitorioso (neste ponto a tradução de Almeida é insuficiente). Também em outras passagens o AT formula a presença de Deus justamente na fraqueza. No núcleo da fé israelita já se encontrava este testemunho: no Êxodo Javé se solidariza com escravos. Ainda assim Is 53 apresenta novidades em direção dupla: afirma a predileção de Javé pelo doente e desprezado, o que num livro como o de Jó, posterior a Is 53, continua em debate: testemunha a presença de Javé através da morte, o que raras vezes se lê no AT(cf. Dn 12). Morte e ultraje não conseguem tirar alguém do braço de Javé (v.1), do plano de Javé (v. 10)..Através da morte, Deus resiste com vistas à vida, Ò inusitado é que Javé se agrada de escravos desprezados. No NT esta teologia será formulada de modo definitivo. Em Is 53 tão-somente temos sua prefiguração. Convém conscientizar-se de que, de fato, recém se trata de um protótipo, de uma amostra. Pois, aqui, a superação da morte ainda não é formulada em termos de ressurreição, por mais que alguns gostariam de introjetar esta categoria nos vv.10-11a. Porém, exatamente nestes versículos pode-se ver o quanto estamos diante de uma passagem do AT, do séc. VI a.c.. A superação de escravização e morte é expressa em categorias da vida aqui nesta terra: descendência, vida longa e saciada, herança, partilha. Além de serem bem concretas e terrenas, não admitindo demasiada espiritualização, estas categorias também correspondem a experiências coletivas e não são meramente individuais. Aliás, estes versículos que se referem à situação após à morte elucidam que o EBED/escravo é um coletivo, uma parte do Israel exilado: ainda que diversos escravos fossem martirizados até à morte, não estava cortada a possibilidade da descendência, da vida e herança para o grupo, para o conjunto dos escravos. Creio que uma prédica a partir de Is 53 não pode deixar de lado os atuais sinais de superação da opressão. Afinal, no grito sofrido está inoculada a libertação!
3. Os escravos massacrados assumem culpa de outros; sua dor é dor alheia; seu sofrimento e sua morte têm sentido vicário. Isto significa que a atitude dos escravos diante de seus verdugos não é determi¬nada pela prepotência. O vicariato inverte os papéis: quem aparentava ser sujeito da História, através da violência, torna-se objeto dos violentados que passam a ser os verdadeiros sujeitos da História. Esta inversão é escandalosa, por inverter as relações..Os escravos não reagem no nível dos opressores; sua reação tira o sentido da ação opressora. Ao se curvarem e assumirem o martírio, dão uma resposta desconcertante que desautoriza os prepotentes. Curvando-se, resistem! Esta resistência, que conscientemente assume sofrimento e morte, é incômoda. Ao invés de confirmar os vitoriosos, desnuda-os: a dor dos escravos exibe a opressão, publica-a, denuncia-a. A repugnância que causam foi-lhes antes causada; a doença que os isola foi-lhes imposta; a morte que sofrem é assassinato. Sobre o trabalhador feio e desdentado está esfaqueado o fausto; os dentes que lhes faltam estão fundidos nas jóias de alguns poucos. Neles está encarnado o que marca o conjunto. A morte que é produzida num sistema econômico recai sobre os trabalhadores; os raios de uma crise são detectados no topo, mas canalizados para a base. Como se vê, confessar que ele carregou nossas dores implica crer e viver a solidariedade de modo radical dentro de uma história conflitiva. A teologia do vicariato está, pois, longe de nivelar conflitos. Justamente os denuncia e resiste, de modo extremo, em prol da vida. Por conseguinte, não se pode aderir a estes que sofrem por todos, sem entrar em desacordo e desarmonia com os prepotentes e seu sistema. Com esta temática do sofrimento e da morte vicários, Is 53 conduz ao ápice um dos germes da profecia veterotestamentária. Ser profeta é ser intercessor, é subir às brechas (Ez 13.5), é carregar o povo (Nm 11). A intercessão está nas raízes da profecia (Am 7-8). Particularmente, nos profetas da época do exílio de Judá, em Jere¬mias e Ezequiel, vemos o quanto a profecia passa a encarar as dores do povo (Jr 20.l4ss; Ez 4s). Contudo, em Is 53 temos momentos novos: aqui não são os profetas, mas os pobres os que carregam o povo (Westermann, p.212); aqui não só a vida, mas também a morte de pessoas é entendida como expiação para outros. Creio que uma prédica a partir de Is 53 tem o dever de proclamar o sentido vicário de morte e sofrimento dos pobres!
4. A morte vicária dos escravos tem significado universal Isto não implica que, de imediato, conte com anuência geral. Pelo contrário, a aceitação se desenvolve como que em círculos concêntricos. Os primeiros a aderir aos escravos são os nós, isto é, os israelitas que já se haviam deixado iludir pelo brilho dos babilônios vitoriosos, que, na linguagem do v.6, se haviam desgarrado. Um segundo círculo é constituído pelos todos, isto é, os israelitas em geral. Mas estes ainda não foram além do espanto; continuam horrorizados com a fraqueza dos escravos (52.14). Ainda assim, é justamente para eles que vale a morte vicária dos escravos (vv.11-12). Um terceiro círculo é composto por todos os povos e pelos reis. Estes são o alvo distante do que é celebrado em Is 53 (Cf. também 42.1,4; 49.6); ainda não foram atingidos; 52.15 está no futuro! Portanto, a anuência aos escravos progride em círculos concêntricos. Em sua extremidade mais afastada aparecem os reis. No centro deparamos com Javé que está com o ferido e assassinado e dele se agrada. Não há como descolar o sentido universal do feito salvífico, do sentido concreto encarnado nos escravos! Creio que um sermão cristão teria que radicalizar tanta o sentido universal quanto o sentido concreto de Is 53: no crucificado o próprio Deus se concretiza como escravo; está é a vitória universal e derradeira sobre o poder da morte.
5. Em !s 53 o falar de nosso Deus tem sua analogia no falar do escravo; fala-se de Deus a partir da feiúra, da dor, da morte. A partir do NT se impõe que falemos de Deus a partir desta óíica; aí teologia necessariamente é Teologia da Cruz. O AT prefigura-a. Contudo, não se pode dizer que no AT a linha da teologia a partir do sofrimento seja tão inequívoca. Há também muita exaltação teológica da saúde e da vitória, do esplendor da vida abençoada e do exercício do poder. Estes, não raras vezes, passam a ser conteúdos espirituais programáticos.
Não se pode verificá-lo já em Gn 12? Bênção e glória tendem a se sobrepor ao sofrimento real. Corre-se o risco de sancionar saúde e bem-estar de ta! modo que doentes e pobres passam à marginalidade. Ainda assim, já nos textos mais qualificados do AT, a teologia é formulada a partir da libertação de gente sofrida. É o que se lê nas narrativas do Êxodo. É o que está em Amos. É o que se ora nos salmos. Há uma afinidade toda peculiar entre a história de Deus e a dos injustiçados. Is 53 encontra-se nesta trilha: rebusca o rosto de Deus no rosto dos desfigu-rados. Creio que a prédica deveria ser um auxilio para evocar a imagem de Cristo no rosto empobrecido.
VI
Propus ler Is 53 a partir de sua situação. Enquanto localizávamos a pericope no distante séc. VI a.C., também a fomos trazendo para perto. Ao aliená-la, aproximamo-la! Neste vai-vem por certo permaneceram em aberto muitas questões; por exemplo, conviria delinear uma maior explicitação cristológica. Ainda assim, o exposto já permite traçar algumas linhas para a prédica:
Inicialmente recoloco o texto. Reconto o texto em sua situação. Narro algo da história do Israel escravizado no Exílio: a elite está expatriada, alguns sucumbem no transporte, são feitos escravos em terra estranha. No início predomina a ilusão da recordação, depois vem desânimo. Morrem de tanto trabalhar. Até Deus parece distante.
A partir daí vou passando para as dores de hoje. Sexta-feira Santa é memória do Cristo assassinado e martirizado por nossas enfermidades. A memória deste Cristo é a presença dos enfraquecidos. No sofrimento com as realidades presentes, sofre-se com o Cristo. A criança nasce fraquinha em nossa terra, por falta de distribuição de alimento. A opressão da mulher é muito evidente, também em nossas comunidades. As filas de doentes são intermináveis. A dor do mundo lê a dor de Deus morrendo por nós.
Com isso já estou anunciando Cristo. Marca presença no extremo de pobreza e angústia. A partir dai provoca o mundo e minha fé. Falo dos sinais de esperança que Cristo cria. Há muitos destes sinais. Encontro-os dentro da comunidade e fora dela. É hora de evocá-los e proclamá-los. Sexta-feira Santa também é a memória da resistência, pois Cristo morreu por nós.
VII
Proponho as seguintes formulações e temáticas a titulo de subsídios litúrgicos:
1. Confissão de pecados: Senhor, os sofrimentos deste mundo e de nossa vida são muitos. São pesados demais para nós. Aliás viramos a cara, quando vemos alguém mal vestido e sem dentes. Queremos estar satisfeitos, bem arrumados. Não temos jeito para meter nossas mãos nas dores que nos cercam. Isso não te agrada, nós te decepcionamos. Com razão não te conformas conosco. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Nosso Deus, agradecemos-te por esta reunião. Em nossa vida existem tão poucos momentos de silêncio e calma. Queremos concentrar, hoje, nossos pensamentos em Jesus, que morreu por nós. Queremos olhar para os sofrimentos ao nosso redor. São tantos. Doentes, pessoas idosas, pobres, desempregados, crianças. Abre nossos olhos para o que está ai. Inquieta-nos para Cristo e para os irmãos. Amém.
3. Assuntos para intercessão na oração final: pela liberdade em nosso País e em outros países: os jornais continuam censurados; os cárceres arruínam vidas; as crianças são educadas para a submissão, não para a liberdade; pelos sofrimentos em nossa vizinhança: falta de harmonia nos lares; doenças incuráveis; pelos desempregados: direito ao trabalho; pela organização do povo: os sindicatos continuam submetidos ao Estado e não aos trabalhadores; as cooperativas estão presas aos bancos; pelos povos da América Central: a reconstrução na Nicarágua; a paz em El Salvador; a retirada dos Estados Unidos; pelos países ricos: para que se dêem conta da pobreza que geram; para que se convertam à justiça; pela nossa salvação.
VIII
Existe muita literatura sobre Is 53; restrinjo-me a algumas publicações:
– GOPPELT. L. Teologia do Novo Testamento. Vol.1. São Leopoldo, 1976.
— JOSUTTIS, M. Meditação sobre Is 52.13-53.12. In: Göttinger Predigtmeditationen. Vo!.57. Güttingen, 1978.
— KAISER, O. Der königiiche Knecht. In: Forschungen zur Religion und Literatur des Alten und Neuen Testaments. Vol. 70. 2.ed. Göttingen, 1962.
— KAICK, B. van. Meditação sobre Is 52.13-53.12. In: Proclamar Libertação. Vol.5. São Leopoldo, 1979.
— KILPP, N. Introdução a Dêutero-Isaías. In: Proclamar Libertação: Vol. 8. São Leopoldo, 1982. — KUTSCH. E. Sein Leiden und Tod – unser heil. In: Biblische Studien. Vol. 52. Neukirchen-VIuyn, 1967.
— MESTERS, C. A missão do povo que sofre. Petrópolis, 1981.
— PERLITT, L. Meditação sobre Is 52.13-53.12. In: Göttinger Predigtmeditationen. Vol.62. Göttingen. 1973.
— RAD, G. von. Teologia do Antigo Testamento. Vol.2. São Paulo, 1974.
— SOBRINO, J. Cristologia desde América Latina. México, 1977.
— WESTERMANN, C. Das Buch Jesaja. In:Das Alte Testament Deutsch. Vol. 19. Göttingen, 1966. — WOLFF, H.W. Jesaja 53 im Urchristentum. Berlim, 1952.