Série: Quer seja oportuno, quer não
Março
Tema: Quaresma: dor solitária ou solidária?
Explicação do Tema:
A quaresma é um dos pontos altos na vida religiosa. A lembrança do sofrimento de Cristo desperta, em muitas pessoas, uma religiosidade individualizante e saudosista. É importante que cada pessoa encontre espaços para a meditação. Mas a dimensão comunitária deve tornar-se concreta. O sofrimento do mundo deve ser visto à luz da dor de Cristo. A cruz do Filho de Deus nos carrega com nossas cruzes, tratando-se inevitavelmente de um processo comunitário e social. O jejum, lembrado nesta época, pode tornar-se um exercício que leva à consciência solidária e à partilha.
Texto bíblico: Isaías 58.1-12
Autor: Bertholdo Weber
I — Observações preliminares
O mês de março representa anualmente um marco incisivo na vida de largas camadas do nosso povo. Terminam as férias na serra ou nas praias, as famílias voltam aos seus lares e os adultos aos seus deveres e afazeres profissionais. As escolas de todos os graus retomam suas atividades do novo ano letivo e a vida pública em geral parece retornar depois da folgança e do carnaval, ao seu ritmo normal e definitivo do ano. É verdade que nem todos tiveram o tempo e o privilégio de gozar uns dias de férias e de descanso merecido, enquanto outros estão em condições de até prolongar o período recreativo por mais algumas semanas. Muitos regressam de bolsos vazios ao trabalho duro do dia-a-dia, sabendo que seu salário, além de já escasso para a subsistência da família, não chega para comprar o material necessário e uniforme escolar para os filhos ou para saldar a primeira prestação a pagar só depois do carnaval como lhes sugeriu a ganância comercial nas festas do fim do ano passado.
Também o calendário da Igreja (o ano litúrgico) registra neste mês um início importante para a vida da comunidade: com a quarta-feira de cinzas começa a época da Quaresma ou tempo da Paixão. Os nossos antepassados costumavam chamar este período de tempo de jejum – quaresma, e na maioria das comunidades observa-se certos costumes e práticas religiosas em reverência à comemoração da Paixão e morte de Jesus. Evitava-se na época quaresma! toda espécie de festejos (Kerbs, bailes, casamentos, festas de comunidade, etc.), dependendo a observância menos ou mais rigorosa da tradição e do espírito de piedade em que se criaram os fiéis.
Para muitos cristãos hodiernos, entretanto, o jejum quaresma), além de tradição respeitável, perdeu seu sentido, reduzindo-se ao mero costume de comer peixe em lugar de carne, sem conhecerem a razão desta prática. Ao menos na Sexta-feira Santa o mercado de peixe floresce e enquanto os mais abastados compram seu filé, os de menos poder aquisitivo têm de contentar-se com uma qualidade mais barata ou então deixar de comprar.
Perguntamos com o nosso texto: Seria este um jejum aprazível ao Senhor?
Existe, sem dúvida, além do jejuar ritual, um jejum mais espirtual com o qual os fiéis procuram corresponder ao chamado de arrepender-se (tema do primeiro domingo da Paixão). Nesta época a vida religiosa é mais intensiva, freqüenta-se mais assiduamente os cultos e devocionais da Paixão e participa-se ao menos uma vez (!) da Santa Ceia. Esta vivência espiritual é para muitos membros mais do que um mero costume. Há nesta época muito exame de consciência, muito reconhecimento sincero de culpa e busca de perdão, bem como sérios propósitos de emendar-se e melhorar a vida para o agrado de Deus. Mesmo assim, esta maneira de jejuar e de comemorar o sofrimento de Cristo por nós, permanece, frequentemente, dentro de uma esfera individualista: tudo gira em torno do próprio eu e se expressa em sentimentos de remorso e dor solitária que se penaliza por uma espécie de auto flagelação espiritual com traços saudosistas. Afligem as suas almas e acham o seu próprio contentamento. (Is 58.3) Esta maneira de jejuar pode-se realizar sem nenhuma relação com a realidade, vivendo, por exemplo, ao lado de gente que é forçada a jejuar literalmente porque não tem o que comer. Comemoramos a Paixão de Cristo e temos compaixão com o homem de dores (Is 53.3) mas não percebemos que ele está presente em seus irmãos sofredores e oprimidos em nossos dias e quiçá à nossa porta.
Seria este um jejum aprazível ao Senhor?
II — Considerações exegéticas
A nossa perícope, Is 58.1-12, é parte integrante de Trito-lsaías, uma coleção de textos proféticos de diferentes autores. Para o nosso propósito não é preciso entrar em discussão pormenorizada sobre a autoria dos caps. 55-56 do Livro de Isaias. Trata-se de escritos que datam do tempo imediato após ao Exílio (520 a.C.) e fazem sentir a proximidade e a influência de Dêutero-lsaías, especialmente o seu anúncio confiante da iminente salvação de Deus. A tónica é a situação social precária no país após o fim do exílio babilônico: o nosso texto menciona famintos, pobres, nus, oprimidos e quebrantados. Os humildes e pequenos continuam sofrendo sob o novo domínio das camadas privilegiadas e opressoras e o desnível e as injustiças sociais não diminuíram em comparação com a situação anterior. A perícope faz parte de um contexto maior e em si não é homogênea. É uma parênese composta de vários elementos cujo núcleo central constitui a exortação — vv. 5-7, a resposta à questão do verdadeiro jejum. O povo se queixa a Deus da inutilidade e do insucesso dos seus esforços religiosos (v. 3a): Per que jejuamos nós, e tu não atentas para isto?. Em vez de mandar consolar o povo indignado, Deus encarrega o seu profeta com uma mensagem que acusa o povo e denuncia a sua falsa prática de jejuar. Porque a vida real da comunidade é determinada pela violência e falta de consideração dos mais fortes para com os fracos (vv 3b-5). A resposta inequívoca de Deus à queixa do povo forma a temática central desta mensagem: em lugar do jejum meramente ritual dever-se-ia eliminar a injustiça social de Israel (v. 6s). O verdadeiro jejum agradável a Deus consiste em solidariedade e ação de amor em favor do próximo. (Cf. a mensagem dos grandes profetas anteriores, Amos, Isaías, Miquéias, Jeremias, que censuraram severamente a coexistência incompatível de piedade cultual e ateísmo ético-prático.) Fervor e ativismo religioso não devem tranquilizar a consciência social. O culto se torna inútil enquanto não estiver em estreita relação com o serviço ao próximo mais fraco e necessitado.
O verdadeiro jejum aprazível a Deus não consiste na observância de tradicionais ritos e de formalismo cultual sem consequências concretas para a vida comunitária e social. Não se trata de abolir o jejum e o culto em si, mas trata-se da vida de fé engajada na solidariedade com,os pobres, oprimidos e injustiçados e sua luta pela libertação integral. Os vv. 6 e 7 falam desta libertação sob vários aspectos como o jejum agradável a Deus:
Não sabeis qual é o jejum que me agrada?
Romper os grilhões da injustiça,
desfazer os laços do jugo,
quebrar todos os jugos
e libertar os oprimidos;
partilhar teu pão com o faminto,
hospedar os pobres sem abrigo,
vestir aquele a quem encontrar nu
e nunca te esquivares frente a teu irmão.
Esta exortação e seu cumprimento são a condição da promessa de bênção nos versículos restantes (8 e 9-12). Se o povo praticar a vontade de Javé, de tirar do seu meio o jugo e romper os grilhões da ijustiça, então romperá a luz nas trevas e a vida toda será renovada na presença de Deus, serás como um jardim regado e como um manancial, cujas águas nunca faltam (v. 11). Esta promessa de bênção e de salvação, porém, não se restringe à vida puramente espiritual e individual, mas terá efeitos concretos na vida do povo. O texto fala em reconstrução, reparação dos fundamentos, do saneamento da vida social. Assim, Israel experimentará concretamente a bênção permanente do seu Deus e a terra devastada alcançará nova florescência (v. 12).
III — Em direção à prédica
A época da Quaresma confronta-nos novamente com a imagem do homem de dores, o sofrimento e a morte de Jesus. Apresentam-se às nossas mentes, nos cultos e nas meditações destas semanas, cenas da história da Paixão relatada nos quatro evangelhos. Testemunham-nos aquele evento salvífico único e definitivo em que o próprio Deus agiu em favor de nós e da humanidade inteira. Por isso não pode ser apenas lembrado como um acontecimento de passado sem importância para a nossa vida real, hoje e aqui. O homem de dores que, na entrega total, se sacrifica por amor a nós, criaturas rebeldes de Deus, está presente entre nós, hoje, como o vivo Senhor. Ele não quer que, comovidos, lamentemos sua morte cruel; não se satisfaz com os nossos sentimentos piedosos de compaixão, com os quais o acompanhamos espiritualmente na sua última via à cruz. Muito antes, ele nos abre os olhos para vermos, à luz da Paixão, toda a realidade do mundo em que vivemos hoje: assim são os homens — não somente naquele tempo, não somente Judas, Pilatos, os sumos sacerdotes e soldados romanos, envolvidos no processo, na tortura, na condenação e execução de Jesus. Assim são os seres humanos, e nós fazemos parte deles. Expulsaram do seu meio e pregaram na cruz aquele em quem o próprio Deus se fez presente entre nós como o amor que procura o perdido, se compadece do aflito e liberta os pobres e oprimidos, oferecendo gratuitamente a todos perdão, salvação e vida em abundância. Esta é a sua oferta gratuita também à nós hoje, na sua Palavra e na sua Ceia, para qual ele nos convida. Sempre quando recebemos este seu amor, seu sacrifício, seu perdão e, com isto, vida nova, somos simultaneamente enviados para os seus irmãos mais pequeninos (Mt 25), onde ele espera por nós. A Paixão de Cristo continua em todos estes irmãos que sofrem por causa do egoísmo, da injustiça e de estruturas iníquas da nossa sociedade, da qual somos parte integrante. Também nós somos culpados neste sofrimento, na medida em que ficamos devendo este amor aos outros, contentando-nos com a nossa própria espiritualidade e religião solitária. O amor de Cristo nos impulsiona para que, por gratidão, nos engajemos por todos aqueles que precisam de nossa ajuda e solidariedade nas lutas e esperanças por uma vida mais justa, livre e digna da pessoa humana, criada á imagem de Deus e destinada a ser filho de Deus.
O Evangelho da Paixão de Cristo é boa nova de vida, de libertação e de esperança, não um convite para celebrarmos exéquias. O mundo em que vivemos hoje, é um mundo de morte. Mas a cruz de Cristo é a esperança de que todas as expressões de morte no nosso mundo serão vencidas, na medida em que nós as denunciarmos e anunciarmos, com palavra e ação, a verdadeira vida, a vida plena a todos os homens. Como podemos contribuir concretamente para isto?
A época da Paixão costuma-se chamar de Quaresma ou tempo de jejum (Fasten). É do jejum que também fala o nosso texto. O povo de Israel que, depois do exílio babilónico, se encontrava na situação difícil de reconstruir sua vida, se chega a Deus com jejuar, para fazer ouvir sua voz no alto. Mas Deus não atenta para este jejum ritual que em última análise só serve aos próprios interesses, a uma religiosidade solitária que visa fins egoístas e faz de Deus um meio para alcançá-los. O profeta enviado por Deus censura esta prática ritual e cultual que visa alcançar a graça e a misericórdia de Deus, mas nega o amor e serviço ao próximo. O jejum evangélico em resposta ao holocausto de Cristo não pode se limitar a obras de caridade e esmolas ocasionalmente dadas para tranquilizar a nossa consciência social. Jejum aprazível ao Senhor é renúncia e sacrifício, é partilha do pão e solidariedade na luta dos injustiçados, oprimidos, pobres e famintos, pela libertação para uma vida mais plena, justa e digna da pessoa humana (leia os vv 5 e 6!).
A Paixão de Cristo continua presente em nosso mundo em que 450 milhões passam fome e 42 mil crianças morrem de fome e suas consequências, diariamente, enquanto os gastos para armamento somam US$ 620 bilhões neste ano. Cristo continua sofrendo nestas crianças inocentes, nas famílias dos desempregados que lutam pela sobrevivência, nos idosos e abandonados, no agricultor sem terra, em nossos índios, em todos os irmãos, aos quais se nega o espaço de vida a que têm direito, nos desiludidos, aflitos, solitários, doentes e moribundos. A cruz do Filho de Deus nos carrega a todos nós com nossas cruzes. Isto experimentamos, se ajudamos a levar as cargas uns dos outros. O amor do Crucificado abrange a todos e quer que sejamos instrumentos deste amor solidário, da justiça social e da paz. Amar significa partilhar. Partilhemos os bens e dons que Deus nos presenteou com os que pouco ou nada têm. O amor se torna eficiente e cresce onde estes dons são comunicados de boa vontade e acolhidos com solicitude.
Não está em nosso poder mudar este mundo de estruturas iníquas e necrófilas, mas podemos, isto sim, levantar sinais do Reino de Deus em nosso meio através de exercícios comunitários que buscam concretizar esta solidariedade e esta partilha fraterna. O Cristo que se dá a nós aqui no culto e na comunhão da sua Ceia espera, lá fora, a nossa resposta na vivência do dia-a-dia. Como a nossa comunidade poderia responder a seu amor, por meio de um jejum autêntico e aprazível a Deus? Vamos, juntos, refletir sobre isto!
IV — Subsídios litúrgicos
1. Leitura bíblica: Mt 6.16-18
2. Confissão de pecados: Senhor, nesta época da Quaresma estamos reunidos ao pé da tua cruz e confessamos que nós também somos culpados da tua Paixão e morte, porque não amamos como tu nos tens amado. Em nossa vida religiosa solitária e individualista, buscamos frequentemente os nossos próprios interesses, ainda que de sublime espiritualidade. Por nosso ateísmo prático somos cúmplices de muita injustiça e de muito desamor, contribuindo para o aumento do mal e do sofrimento em nosso meio. Somos acomodados e fugimos da realidade, na qual tu nos esperas nos irmãos famintos, sofredores, injustiçados e fracos. Senhor, perdoa-nos e transforma-nos em instrumentos eficientes do teu amor e da tua paz. Tem piedade de nós, Senhor.
3. Oração de coleta: Agradecemos-te, Senhor, por não precisarmos buscar-te no passado longínquo, mas que prometeste estar presente entre nós, hoje, para oferecer-nos, gratuitamente, perdão e vida nova. Estás presente também na dor, na pobreza e na humilhação dos teus irmãos menores. Faze-nos ver o teu rosto, que transparece neles; ajuda-nos a repartir e compartilhar com eles os dons que recebemos da tua graça e acolhê-los em nosso meio, como tu nos acolheste. Dá que, neste tempo de jejum, não apenas observemos costumes e ritos tradicionais sem conteúdo, mas capacita-nos por teu sacrifício na cruz a renunciarmos ao nosso egoísmo e solidarizarmo-nos com os que lutam pela transformação da sociedade, por justiça, libertação e paz. Renova-nos, a fim de que possamos semear vida e esperança neste mundo da morte. Vem. Senhor, imploramos a tua presença. Amém.
4. Assuntos para intercessão na oração final, por todos que com sua vida e seu testemunho engajado anunciam a mensagem da cruz de Cristo, escândalo e loucura para o mundo, como poder de salvação e sabedoria de Deus; por todos que, motivados pelo amor de Cristo, se empenham por urna vida comunitária mais fraterna, com chances iguais para todos; pelas crianças subnutridas, a quem se nega uma juventude feliz, pela mulher inferiorizada na vida social; pelos idosos, amargando seus dias no abandono e na penúria; pelos deficientes físicas e mentais, consequência de subnutrição crônica; pelos presos por motivos de consciência e fé e pelas vítimas de perseguição, guerra e violência, pelo pequeno agricultor sem terra e pelo trabalhador desempregado e despojado de meios reais de sobrevivência; pelos doentes, solitários e moribundos; intercedemos pela Igreja, pelas comunidades e todos os seus membros, para que o Evangelho da reconciliação na cruz de Cristo seja difundido e vivido com renovado vigor na solidariedade com os anseios e a esperança do nosso povo e na certeza da vinda do teu Reino.